segunda-feira, 14 de abril de 2008

O CAMINHO DE SANTIAGO


“Joãozinho, faço parte de uma sociedade de seres malditos” A frase, fortemente marcada por um sotaque portenho, num primeiro momento, poderia chamar a atenção de qualquer documentarista, no entanto, foi desprezada por João Moreira Salles. No momento em que Santiago tentava apresentar algo extremamente íntimo e que considerava importante, João pediu que o mordomo falasse sobre a história do “embalsamador”. Imediatamente, Santiago abandona os “seres malditos” e fala sobre o que o cineasta lhe pede. A cena serve para ilustrar algumas considerações importantes sobre Santiago (2007), o mais recente documentário de João Moreira Salles.

Em 1992, o documentarista filmou imagens de Santiago, o antigo mordomo da família Salles. O objetivo parecia ser o de produzir um filme sobre uma figura romântica e curiosa, dificilmente passível de ser encontrada nos dias de hoje. Santiago era um argentino que apreciava a cultura clássica,os grandes personagens da história, motivos que o levaram a copiar mais de 30.000 páginas e pontuá-las com comentários sobre figuras importantes para ele – personagens muitas vezes esquecidos pela história. Numa das cenas, Santiago aparece tocando castanholas e em outra criando uma dança para as mãos, por sinal uma das passagens mais bonitas do filme. Durante os depoimentos do mordomo, fica explícita a condução agressiva do diretor, que censura passagens abordadas por Santiago, chegando a transformá-lo numa espécie de marionete. Nota-se o desconforto de um e de outro. E essa é uma das questões que gostaria de comentar rapidamente aqui. Foi justamente o que me fez gostar do filme.

João inicia o documentário falando sobre um filme que nunca aconteceu, o filme sobre Santiago. Depois de muitos anos, o documentarista, num momento de crise pessoal, decidiu retomar o projeto. Ao rever as imagens que havia produzido, descobriu que a maneira como conduzira os depoimentos afastara Santiago. João chegara a ser rude com o antigo mordomo e confessou, já no final do documentário, que a sua postura fez com que o mordomo não deixasse de ser o empregado da família e ele, o patrão. Nesse sentido, o documentário passa a ser não sobre Santiago, mas sobre o documentarista. Talvez pudéssemos substituir o título de “Santiago” por “João”. Louvável a atitude do diretor em expor tal questão. O filme acaba implicitamente por demonstrar a maturidade que o documentarista atingiu ao longo dos anos, e foi justamente essa maturidade que, a meu ver, fez com que o filme sobre o mordomo não pudesse mais ser produzido.

Santiago foi uma das figuras mais comoventes que já assisti em um filme. Talvez pudesse compará-lo, de longe, ao Alfredo, de Cinema Paradiso, dirigido por Giuseppe Tornatore. Nos dois casos, a dimensão trágica da vida é apresentada por dois senhores a dois meninos, Toto e João, ambos apaixonados por cinema. Em Santiago, a cena de Fred Astaire, extraída de A Roda da Fortuna, representa com a mesma profundidade que a cena final de Cinema Paradiso, aquela em que Toto assiste à seqüência dos beijos proibidos, reunidos pelo velho Alfredo. Um presente que só seria compreendido quando o menino crescesse. São duas cenas em que a memória perdida da infância parece vir à tona e sussurrar ao ouvido vozes que não estamos mais acostumados a ouvir.

Caio Ricardo Bona Moreira

O PRIMEIRO CHARUTO DA ÚLTIMA CAIXA



No dia 15 de janeiro de 1928, meu avô, o português Manuel Moreira, decidiu embarcar para o Brasil. Pela última vez, abriu a tabacaria, que tinha sido herdada de seu pai. O pai, por sua vez, também herdara de seu pai. No outro dia, o estabelecimento seria transformado numa confeitaria. O que se passou na tarde derradeira marcou profundamente a vida do velho Moreira.O último cliente, um senhor magro, com óculos de aro fino, chapéu preto e terno bem passado, comprou a última caixa de charutos. Meu avô, que não se dava facilmente a conversas triviais, demorou a responder a pergunta do homem. “Sim, estou triste”. Aos poucos, abriu o coração amargo, confessando a sua infelicidade. Portugal não era mais o país do futuro. A esperança tinha sido vencida pelo medo: “Não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada”.O cliente tentou consolar o velho Manuel. Em vão. “Tenho certeza de que este país está falido, pá!”. O freguês sorriu e falou: “Não tenha tanta certeza.
Em todos os manicômios há malucos com tantas certezas. Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?”. Meu avô frisou os olhos, como sempre fazia toda vez que queria enxergar melhor a falta de sentido das coisas, tentando descobrir se Estêves, que estava parado na sua frente, era um poeta, um filósofo, ou algo do gênero. Meu avô não acreditava em astrologia, quiromancia, filosofia, poesia, democracia.
Ele sabia que os homens precisavam acreditar em alguma coisa para que a vida pudesse ser mais do que uma pequena caixa de charutos. Tentou agarrar uma resposta para o cliente, que mais parecia alguém que usava máscaras só para esconder a sua grande melancolia. Por um instante, o velho Manuel pensou que o mundo era uma fumaça de charuto e que toda a vida, de uma hora para outra, poderia evaporar, perdendo-se na imensidão do abismo das horas.O cliente acendeu o primeiro charuto da última caixa. Pela primeira vez, o dono da tabacaria apreciou com prazer o cheiro do tabaco. Ele preferiu não presentear o cliente com uma resposta banal, como todos os seus dias em Portugal. Deu-lhe o troco.
O homem, que não tinha metafísica, mas filosofava, saiu da tabacaria. Sem se despedir, meteu o troco na algibeira das calças. Atravessou a rua e entrou no hotel, que ficava em frente à loja do meu avô.Manuel fechou pela última vez as portas do comércio. Como que atraído por um olhar distante voltou-se para uma das janelas do hotel e avistou um outro cliente, Fernando, o circunspeto. Acenou-lhe. Da janela, o cliente gritou-lhe adeus. No Brasil, a esperança seria reconstruída. Pela primeira vez, sorriu para o cliente. Os dois, ou três, tinham, naquele momento, todos os sonhos do mundo.

Caio Ricardo Bona Moreira
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O FOTÓGRAFDO, O PARQUE, O THOMAS E O CLICK



FOTO 1
O fotógrafo entrará no parque. Ainda será dia. As luzes, paraísos artificiais, ainda não estarão acesas. O fotógrafo ainda não chegou ao parque. Enquanto circulará com o automóvel pelos arredores da cidade, lembrará do Thomas. O Thomas, do Antonioni, aquele que topa a parada de um jogo imaginário. A máquina fotográfica estará no banco de trás. Ele lembrará que decidiu ser fotógrafo depois que conheceu o Thomas. Decidiu “ser”, só isso, como se acreditar que a existência pudesse ser decidida fosse possível. Ser é só uma opção ou um campo de possibilidades, não é assim?

FOTO 2
O fotógrafo não dormirá esta noite. Ele não sabia. Quem morre dorme para sempre ou nunca mais dorme? Ele morrerá esta noite, mas ainda não sabe nem como será. Depende do ponto de vista, pensou ele, lembrando do Thomas. Ele poderia ter decidido outra coisa. Poderia ser estilista, já que gostara bem mais das roupas do filme. Poderia virar um músico, já que gostara bem mais das músicas do filme. Não, ele virou um fotógrafo. Ele não morreria mais esta noite. Pelo menos não por vontade própria. Ele não sabe. Talvez mudasse de idéia.

FOTO 3
O fotógrafo ligará para a mãe lá pelas dez da noite. Pedirá a sua benção, mesmo não acreditando em anjos ou demônios. O céu e o inferno é todo mundo. O fotógrafo falará com a sua companheira de quarto antes de ligar para a mãe. Ela pedirá para ele escolher para ela uma das roupas que deve usar para a sessão de fotos. A mãe ou a moça? A moça. Ele pedirá para que ela tire a roupa e ela tirará, só para agradá-lo. Assim ele pensa. Assim ele tira mesmo as fotos. Será?

FOTO 4
Teria sido um parque da cidade, daqueles só com árvores e namoros escondidos e um possível assassinato? Terá sido um parque de diversões. O fotógrafo pensará que as confusões geradas pelas imagens são sempre menores do que aquelas geradas pela palavra. Quem inventou a palavra parque? Ah, essa palavra fantasia.

FOTO5
O fotógrafo chegará ao parque antes do anoitecer. Contará as moedas no bolso, sem, no entanto, tirá-las. Contará para a sua companheira de quarto que contou todas as árvores do parque, ou os bichos do zoológico, ou os assentos da roda-gigante. Quem saberá? Contará tudo e depois nunca mais encostará seus dedos da sua máquina fotográfica. Preferirá a máquina do mundo, ou a máquina de escrever, ou a máquina de pensar. A máquina repensada. Roda moinho, roda peão. O rei da brincadeira é José, o rei da confusão é o João. Desligará o rádio do carro. Enfim ,entrará no parque.

FOTO 6
É no parque que a vida acontece. Enquanto as fábricas funcionam regularmente, assim como nossa máquina corporal, o parque, naquele seu silêncio quase absoluto, contará todas as novidades para o fotógrafo. Preciso inventar uma fantasia para destruir meu tédio. Que tal um assassinato? Eu vou até ele, estrangulo-o, volto para a entrada, entro novamente, deparo-me com um corpo, assusto-me. Tento descobrir quem é o homem, quem é o assassino, o motivo para tal acontecimento e o motivo que me levou até ele. Depois tiro uma foto. Quem sabe forjando minhas próprias imagens, eu não possa abandonar a minha máquina de pensar. Click!
Caio Ricardo Bona Moreira
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quinta-feira, 10 de abril de 2008

ONDE POSSO ENCONTRAR UM CD PIRATA DO NOEL ROSA?

Caetano Veloso, em “Samba de Paz”, uma de suas primeiras composições, dizia: “O samba vai vencer / quando o povo perceber / que é o dono da jogada”. Digam o que disserem, o samba nasceu entre umbandas, capoeiras e batuques no prato, e batuques na palma da mão. O samba é do povo – assim como a praça. Mas quem disse que o povo não faz poesia?Foi nas casas das “tias” baianas da Praça Onze que o samba ganhou o compasso certo. “Pelo Telefone”, de autoria discutida, mas assinada por Ernesto dos Santos, o Donga, foi o marco inicial do gênero, mesmo que outros sambas menores o tenham antecedido.

Conta-se que a Tia Ciata teve parceria na composição. Aquela mesma Tia Ciata que virou personagem de “Macunaíma”, do Andrade. Mesmo sem nenhum registro da voz de Donga, sabemos exatamente como as músicas eram cantadas. O samba tem essa capacidade incrível de passar de roda em roda como um vírus contagioso e letal. Só mata de alegria, a não ser aqueles do ti-cu-tu-co-no-cutuco, que, de faca e prato na mão, marcam o ritmo frenético do morro, mas depois acabam brigando por causa de uma mulata dengosa que mantinha um caso amoroso com ambos.Não podemos ouvir a voz de Donga, mas podemos visualizar a animação (alma do samba) que regava os batuques em sua casa: Pixinguinha e Jacob do Bandolim só para citar alguns.

O samba-maxixe “Pelo Telefone” talvez seja o primeiro samba engajado da nossa história, empenhado não somente em ser arte de festa, já que a origem do samba como arte só pode ser observada como “arte de festa”, longe dos manuais esteticistas e museus caducos, mas principalmente em criticar corrupção policial que rondava o Rio de Janeiro do início do século XX.Os apaixonados por categorizações e gêneros adorariam classificar: Samba-choro, samba-canção, partido alto, samba de breque, samba exaltação, samba de roda, samba enredo, pagode, e por aí vai. Com a explosão do rádio, o samba desce o morro e penetra sem pedir licença nos lares burgueses, classe A e B, meu pai comprou um rádio, seu pai não tem. Mansamente vem chegando: Francisco Alves, Orlando Silva, Noel Rosa, etc. São lançados os famosos discos de 78 RPM, hoje dificilmente encontrados em sebos e lojas especializadas em antiguidades, êta passado quase presente-remoto-e-careta. Os ouvintes da Rádio Nacional (inclusive os daqui de Porto União – cofrinho do mundo) encomendavam os discos e esperavam ansiosamente para “fazer funcionar a vitrola”.

Cada disco comportava, na maioria das vezes, apenas duas pérolas, uma de cada lado do disco. E falavam para os vizinhos: “Você já ouviu “Linda Flor (Ai, Ioiô)?”, coisa linda: ai ioiô, eu nasci pra sofrer, fui olhar pra você, meus óinho fechou!”. Cada lançamento era uma festa. Hoje, a coisa só não é mais fácil, porque só poderia ficar mais difícil. Milhões e milhões de CDs piratas encontrados em cada esquina. Os títulos são sempre os mesmos: “Bruno e Marrone, Zezé de Camargo e Luciano, Sandy e Júnior. Por que não copiam um CD do Jards Macalé? Nunca vi um CD do Jards Macalé numa banca de CD pirata. E do Cartola? É urgente, onde está a antologia do Noel Rosa pirateada? Quem vai levar?

Caio Ricardo Bona Moreira
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Rápidas palavras sobre
LAVOURA ARCAICA E A ROSA BRANCA DO DESESPERO


Que estranha força é essa das pequenas coisas? Por que tenho o meu olhar atraído em alguns momentos para as coisas aparentemente mais banais? A literatura e o cinema têm para mim forças estranhíssimas. Sou povoado por pequenas imagens, compostas por algumas figuras e sons, alguns tons e movimentos.


Carrego durante algum tempo a imagem inicial do livro “Lavoura Arcaica”, do Nassar, como uma fotografia. Como pode ser? Às vezes não sei explicar o motivo do meu gosto. Por que gosto disso e não daquilo? Alguns textos me tocam pela experiência da palavra. Gosto dos sons, das linhas que se desenrolam na minha cabeça, dos sons imaginários que me conduzem à mágica geográfica do meu corpo. Poderia dizer: “gosto muito de um poeta, porque ele fala de amor, e isso me emociona”; Poderia dizer: “Gosto muito do Guimarães Rosa, não pela estória, mas pelo novelo lingüístico revelado à medida que se ouve”. É isso, pode ser, não consigo explicar.


O motivo que me incita a falar sobre a Lavoura Arcaica é o mesmo motivo erótico – não pornográfico – que conduz o meu sono em noites de calores internos. Mas não é o amor incestuoso de André por Ana, e vive-versa, que me convida aqui. Ana poderia muito bem ser apenas um outro lado de André – ambos são vítimas – ninguém seduz ninguém. Mas não, o que me leva a falar – ou melhor, escrever – estranha é mania de achar que falo quando escrevo – é justamente um motivo quase banal – não para mim. O que me impressionou – e acho que já escrevi sobre isso no meu blog – na narrativa de Raduan foi o compromisso poético com a escritura. Mas o que me impressiona agora é a adaptação para o cinema. Assisti ao filme ontem. Ainda estou "embriagado".


Arrisco dizer que o filme não é uma adaptação – isso é óbvio – o filme é uma outra coisa, massa disforme de pura pureza poética. Quem pesquisar sobre a película descobrirá que o método de filmagem foi estranhíssimo. Os atores foram morar durante algum tempo numa fazenda no interior de São Paulo. Não interpretaram os personagens, viveram. Estas são palavras do Raul Cortez, que interpretou o patriarca, magnífico pai da família árabe, centro onde jaz em perfeito silêncio os valores sagrados da sacro-santa família. Agora, volto ao assunto principal: o que me chama a atenção -penso aqui no filme e no livro – são as pequenas coisas que poderiam "ficar de lado" pelo olhar de um leitor-telespectador indiferente.


Ah, como me impressionou o vestido de Ana. Parece algodão cru, combina com a sua pele. E o lampião aceso, enquanto o pai, feito um ambivalente Deus-ditador discursa calmamente para a família. E a rosa presa nos cabelos de Ana, quando ela dança a cena final. E o muro de pedras irregulares que contornam a casa. E o sapato de André, rapidamente abandonado em momentos de prazer. E o barulho das folhas. Ah, que linda cena primeira do filme, aquela em que André, num quarto de pensão, colhe do corpo a "rosa branca do desespero" (que imagem revelaria melhor a “porra” que sai do seu pênis?). No entanto, não aparece a rosa, não aparece o pênis. Incrível. Mas o melhor foi o som do trem que acelera e desacelera enquanto a rosa é plantada e colhida. Que beleza mística a dança árabe da família! A música parece ter sido composta para Ana, que dança voluptuosamente à procura de um olhar incestuoso do irmão, que se contorce na relva. São esses silêncios que me seduziram. Por isso gostei do filme. Também por isso. Não só por isso.

Caio Ricardo Bona Moreira
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Provocália, de Fábio Cesar
a “desmontagem”da língua e do real em favor de um “satori”

Coisa engraçada é essa de ainda ficar fazendo poesia nos dias de hoje. Enquanto a bolsa sobe ou desce, a gripe vem e vai, e os índices de pobreza aumentam ou diminuem, lá vai o poeta, descendo a ladeira. E não é como antes, e não será como depois: das cinzas renascerá o pássaro-poeta-fênix-flora-fauna-bananeira-tropical. E nada será como antes. O que foi nunca será esquecido. Assim, a missão do poeta, se é que podemos potencializar alguma, não está no gesto “esquecer”, simples adesão ao novo, nem no mero parto do “relembrar”, forjando para si um passado enciclopédico, um tanto quanto medíocre. Ah! Estamos chegando lá!

O livro Provocália, do Fábio César, sabe muito bem disso. Parece que Pound cutucou sua macumba PrOfÉTICA. Tanto é que um dos mais saborosos poemas do livro assume sem vergonha esse passado “sem vergonha”, não como resgate ou abandono, mas como produtividade: vinde orfeu com sua cítara / e cítolas e guitarras distorcidas / pra lembrar a essa gente esquecida / que ainda há aqui beleza / sob a máscara do grotesco escondida. Esse samba-rock-trágico só pode existir em forma de provocação. Impossível pensar a poesia sem provocá-la, ou provocar com ela “o coro dos contentes”. Lembremos a origem da palavra provocar: do latim provocáre: fazer brotar. E essa provocação, parece-me, só pode nascer de uma experimentação que não seja uma mera progressão da poesia brasileira no século XX, com ênfase na década de 60 e 70, onde o tropicalismo e o concretismo assumiram as contradições da nossa cultura por meio de um LIQUIDIFICADOR CULTURAL. Assim, a poesia do Fábio dialoga com esse passado (provocÁLIA – lembra tropicÁLIA), sem negá-lo ou segui-lo compulsivamente, o que por si já faz com que o seu gesto mereça uma atenção carinhosa por parte dos leitores. Essa experimentação é a sua transgressão e começa pela epígrafe, que é um ótimo começo. Gullar foi o eleito, nada mais significativo, ele que sempre foi um defensor ferrenho da experimentação: “estamos todos nós / cheios de vozes / que o mais das vezes / mal cabem em nossa voz” . Vale lembrar aqui que essa transgressão gera sempre uma angústia, mas quem quer viver sem ela? Já dizia o poeta timboense Lindolf Bell: “Palavras são seda, aço. /Cinza onde faço poemas / me refaço.

Lembro-me de Gullar, da sua luta corporal com a palavra para chegar em algum outro lugar, fazer um poema que bastasse a si próprio, como que inventando seu próprio mundo. Ele mesmo mudou de idéia. Era o medo de ser engolido pela palavra. A culpa era daquela hesitação entre o som e o sentido, de que nos fala Valery. Essa impossibilidade de atingir o Neutro, uma espécie de “satori” japonês, fez com que Gullar se voltasse novamente para a realidade. Fábio faz o caminho inverso. Não tem medo. Não destrói a realidade no poema. Mas assume esse “real” entre aspas. Quem é ele senão um efeito de superfície? A realidade não interessa em sua poesia. Ele inventa outra. E ela custa bem barato, talvez um picolé: “É UM REAL - SÓ PAGA É UM REAL”, diz o primeiro poema. Esse real é uma grande miragem, asssim como o “eu”: “alterando alter-egos / eu me faço / e me desfaço / me destruo / e construo / a poesia”. Poema este que me fez lembrar novamente de Lindolf Bell: “Sempre à beira das planícies. /Porque assim nasci /e assim cresci, /e continuo a crescer assim /jamais além de mim, /sempre ao lado de mim”. Como se esse eu fosse sempre também um outro. Essa é uma de suas principais imagens que se reiteram ao longo do livro, como que atirando dardos num "eu" impreciso, já que nossa realidade está em pedaços, e o sujeito em frangalhos.

Nesse sentido, a poesia do Fábio assume, ao meu ver, um grande compromisso com a poesia contemporânea: Com os cacos do passado, ele monta um artefato para o futuro, ora nos seus temperos marginais, ora no seu lance concretista. Mas dizer isso ainda é muito pouco, prefiro não trair a sua poesia, filiando-a em alguma tendência. Prefiro pensá-la assim como um jogo (um jeu tropical), que transcende essa idéia de tendências e características já que essa referência a alguma coisa, em sua poesia, pode ser sempre uma grande brincadeira, eis a rarefação da sua linguagem. Movimento que sempre nos leva para um outro lugar, eis o barato de sua poesia. Cuidado para não cair nas suas máscaras, ou ser engolido por elas. O poeta prefere devorar o livro antes que seja devorado: “coisa e tal assim e assado /disse o livro para mim / antes de ser devorado”. Aquele satori que Gullar não alcança, o Fábio, à maneira de um Leminski curitiboca, consegue: “o dia amanhece / e uma alegre tristeza / já me anoitece”. E aqui já não é o concretismo, nem o tropicalismo que fala mais alto, mas alguma coisa além, o ato mínimo da enunciação, o "satori". Só me resta dizer que ainda estou lendo o livro e me deliciando, tentando em vão adiar o final.

Caio Ricrdo Bona Moreira
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O MISTERIOSO CASO DO SEU NEMES




Seu Nemes era o funcionário mais simpático da repartição. Faltavam dois anos para que se aposentasse. Todos já lamentavam a triste despedida que se anunciava. Antes das férias, nos finais de ano, era sempre o bom velhinho que ganhava a medalha “honra ao mérito-destaque do ano”, idealizada por dona Lizete, a funcionária mais antiga, com o objetivo de incentivar o bom desempenho e motivar o grupo – ela nunca perdia aqueles cursos do Sebrae que a empresa patrocinava.É claro que surgiram boatos quando ela inventou o tal prêmio.


Funcionários públicos adoram café, folgas e rumores. Os mais jovens cochichavam que a solteirona inventara o tal prêmio só para seduzir o senhor Nemes, um sessentão “enxuto”, já que era somente ele quem sempre levava as medalhas. Mas ninguém contestava a unanimidade da escolha, nem a veracidade da apuração dos votos contabilizados por Leonora, filha mais velha do chefe. Era porque só ele, no fundo, era o verdadeiro merecedor de tal honraria, então, ninguém discordava abertamente. Os anos iam passando e ninguém esperava mais levar a “bola da vez”.Quando faltavam seis meses para o seu Nemes receber a aposentadoria, coisas estranhas começaram a acontecer na repartição, e todos sabiam que a culpada era a dona Lizete, que no último amigo secreto, descobriu quem tinha sorteado o nome de seu Nemes. Subornou o Marquinhos, office-boy novato, com um par de havaianas que tinha comprado para o neto e não servira. Comprou o acaso e guardou o papelzinho no bolso.


Desde que conhecera o seu Nemes, ficara sabendo que ele gostava muito de ler. Nemes vivia comprando aqueles livros de caubói (Tex, é esse o nome, ou Ted? Não importa); era assinante da revista Seleções. Era hora de conquistá-lo. A dona Lizete havia lido uma resenha escrita no Diário Catarinense. Pois bem, o cara citava um escritor chamado Herman Melville. Dona Lizete, que era dada à culinária e cruzadinha e não à literatura, anotou o nome “Bartleby” numa cadernetinha que sempre carregava na bolsa. Ela não tinha entendido nada daquela resenha, mas resolveu seguir a intuição. Gostara do texto e mais ainda do nome: “Engraçado, a gente não entende, mas gosta, esses caras do jornal sabem dizer bonito, né?!”, confessou para Inês, sua cabeleireira e confidente. Comprou o Bartleby para o seu amigo secreto.Como de costume, o seu Nemes agradeceu o presente, abraçou forte a velhinha, que quase desmaiou de emoção: “O que a gente não faz pra agradar o ser amado?”. Muito prestativo, o Nemes se ofereceu para levar a dona Lizete pra casa. Chovia muito naquele dia, como poderíamos esquecer?


O que se passou na casa da nossa colega de trabalho nunca nos foi revelado. Só sabemos que ele começou a se comportar de uma maneira muito estranha. Talvez você entenda melhor do que eu.O seu Nemes nunca mais foi o mesmo. A velhinha, que no dia seguinte chegou antes dele, sorria como uma cotia (cotia sorri?). E ela foi a primeira que estranhou o comportamento do homem. Ele resmungava e ela chorava pelos cantos do escritório. Teria sido estuprado pela velhinha?


Teria experimentado os seus dotes culinários? Teria ficado traumatizado ao ver a dona Lizete despida de qualquer aparato ou pudores? Preferia não ter nascido. Quem? Ela ou ele? Talvez os dois, a partir daquela semana. Quando solicitavam algum serviço de banco, ou mesmo o preenchimento de algumas fichinhas de nada, o seu Nemes só dizia: Eu prefiro não!O que estava acontecendo com o bom velhinho? Seria melhor se ele tivesse dito: “Ai, que preguiça!”, como um bom ser macunaímico e malandro que todos somos, frutos desse Brasil imenso de Andrades e Almeidas; ou então: “Vai para aquele lugar!”. Todos entenderíamos e forjaríamos as nossas hipóteses: “Ah, a idade tem dessas coisas!”, ou mesmo: “a dona Lizete depenou o nosso bom e velho Nemes!”. Mas não: “Eu prefiro não!”. E a frase foi para nós uma facada no coração, um soco na boca do estômago. Foi que de tantos “eu prefiro não” o cara acabou sendo demitido por justa causa. Comenta-se que nunca mais saiu de casa. E o pior, depois que terminou de ler o Melville, não quis ler mais nada. No último aniversário, três meses antes de morrer, ganhou do ex-chefe a antologia completa do Olavo Bilac, presente de consideração por tantos anos de dedicação. Olhou triste para todos e lá veio: “eu prefiro não!”. Devolveu o presente. A Leonora, indignada, deu o troco, pegou de volta a caixa com aquelas preciosidades parnasianas e nunca mais voltou a olhar para o seu Nemes. Seu Nemes nunca mais. Ele não quis fazer mais nada.O único que entendeu tudo foi o Marquinhos, que adorava o Melville. Ele costumava dizer que o seu Nemes sofrera de um caso raro de distúrbio literário, uma doença ainda não diagnosticada: “personagium patologicus”. Ei, avante: ‘eu prefiro não!”. E bateu as botas nosso Nemes Bartleby.


Caio Ricardo Bona Moreira
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O senhor maravilha Uma biografia não autorizada de dois negros e um só blues





...O banzo das Américas é o banzo dos habitantes das margens do rio Mississipi. É blues que faz doer. O blues é universal, universal como a dor. O banzo brasileiro vem de Desterro, atual Florianópolis. Quando passo pelo Mercado, próximo à ponte Hercílio Luz, fico sentindo o cheiro de peixe e mar, pensando num poeta, dandy-iorubá, que transitava por aquelas cercanias.

Ele não conhecia o Mississipi, mas sentia “banzo”, o azul mais triste desse mundo, silencioso como um soluço. Já vejo um nego com uma “gaitinha” na boca. O velho com um banjo na mão. Esse banjo é banzo! Quer me dizer onde estou? É blues que faz doer. De onde vem essa tristeza?Num bar escondido, localizado atrás de uma fábrica velha de sapatos de couro, na periferia de New Orleans, David Howphey entra para trabalhar. Assim faz todas as noites. Todos o cumprimentam. David é o feiticeiro da noite. Andar sincopado como o ritmo da música que sente nos seus velhos ossos. Eles já fazem barulho.

Quando um bluesman fica velho é que tem maiores chances de conseguir alguns trocos a mais. É tristeza acumulada. Estojo de banjo na mão, unhas compridas e bem limpas, óculos com correntinha de prata para não perdê-los, e botas, daquelas fabricadas ali mesmo. David senta num banquinho e chora o banjo sem lágrimas. O velho agora é acompanhado por um pianista branco, e um trompetista quase negro, exímio como qualquer um que toca trompete por mais de vinte anos e que mora por ali. Nem precisa do violão. Toda noite, quando termina a última música, David se reúne com os jovens negros para tomar uma cerveja. O velho, que nunca ouviu falar de Cruz e Sousa, aconselha: “Cry, baby, cry...É preciso ser muito triste pra nunca se deixar chorar. Não basta técnica. Esse lamento é o mais triste dos choros, pode ter tristeza maior?”.

Os jovens saem satisfeitos com a performance do “senhor maravilha”, como costumam chamá-lo.Quando o navio negreiro atracou na costa americana, e os negros foram plantar algodão nas fazendas do sul, o espírito do banzo, além do spleen-burguês-capitalista-europeu, abateu o negro, que transformou seus nervos em aço, seus lamentos em blues. Depois vieram outras coisas. Mister Johnson, um saxofonista sexagenário de Geórgia, nem desconfiava que aquela música cantada nos campos de trabalho se transformaria num emblema da raça.O senhor Howphei lava as suas próprias roupas. Mora sozinho desde que a sua mulher Frannie foi assassinada por um membro dos Cavaleiros do Branco Camélia.

Ficou mais fácil cantar o blues e mais difícil viver. Frannie é agora motivo de blues e o nome do velho banjo. Ela costumava chamar o seu grande amor de “My Day”. Agora, a única companhia de David é um cachorro de treze anos, cego de um olho. David está quase cego dos dois. O velho senta na varanda, mira a vizinha gorda e negra que estende roupas no varal, e pega o banjo. Daniel, o cachorro mais rouco da redondeza, se aproxima. É banzo. Todas as almas se entendem na dor. E eles se consolam na música. Cry, baby, cry.Gavita enlouqueceu. Quem é o louco da imortal loucura? Sina de mágoa. Teria que ser assim? Será que ele gostava desse cheiro de peixe e mar? Deixe-me simbolizar. A Gavita enlouqueceu. O mulato tocou banjo e fez um soneto. Depois pegou um trem e morreu. Essa cruz era a do senhor maravilha. Já posso ouvir a música. Vem lá. Não posso chorar, mas estou quase chorando. Vem lá daquele navio. Era um sonho dantesco. Um de raiva chora, o outro enlouquece! É uma voz meio rouca. Chega em Desterro ou no Mississipi? Será a voz de Daniel? Ela traz o negro! Ela traz o blues! Cry, baby, cry.

Caio Ricaro Bona Moreira
publicado originalmente em
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O ARREPENTIDO


Não quero sasaber de mais nanada. Foi um sosôco na boca. Não, não, na barrirriga. Está entendendo? Foi, foi isso mesmo. Não, não. Eu não escrecreve via assim, assim. Mas agora piorou. Tentei proproteger com a mão. O miserarável quebrou meus ossosos. Dededo da Dédalo duro. Não dededuduro mais. Só dededo mole. Mementira. Fafalei que não fui. Didisse que eu era um cacagogo-eta. Quirodác-dác-ti-tilo. Fufura-bolo, o papai de todos. Deu uma a uma trememenda trememedeira. Dedemoro quase umas duas horas pra escrever. O meu mémédidico dididi......disse que é é irrever.........irreversículo. A lin-lingüística ex ex plica. Não expliplica nanada. Não é bibília? Não fafalo mais assim. Só escreeeeeeeeeeeeeeeeeevo assim. Não explica poporra nenhuma. A medicina aindadá não descobriu. Dadá é popoema sem sem sen sentido. Meu textoto ta loloco, mas não é dada. O doudoutor titiroou uma sasarro: “vá cantatar ou escreve ver aquequelala do nono-el, um gagago apaixonado”. Do Rorosa? Eeeeeessa, memesmo! Eeeeeeeeeeta. Quem quem ele pepensa que quem é? Não o Rorosa, o dodoutor. Com quequem ele ta falalando, eu não sou de trololó. Depopois incentivou: “vovocê já leu Jojoyce?” “Jojoca?” “Não, Já James Joyce” “Já”. É claclaro que não falooooooou assim, sim! Fafalou sem rerepetir.Eu é que arrerrepito. É claclaro que sim. Fo-foi depois de le le lo, não é memesosóica, ou meulhor mesosóclise, disso que quebraram minha mamãe, não, mamão, não a frufruita, nem a bibicha fortuita, a mamão do quiqui-ro-dáaaaaaaactilo, de dededo. Agora vai me deixar de castigo? Não a mama-mão, o memédico. O sesenhor é que é o do-dor-doutor tá? Fu fui me me embora. De-deixe que eu guarde os meus pleonasmomos, meus propobleas. Só escrevovo assim, sim! Não fafalo lo assim. Foi aquele que que quebrou o meu dededo. Dá demais dó deles. Não Dele, dedeles, dos de dedos, não de quem quebrou o dededo. Quem sasabe se eu escrever ver só cocomo vê vejo ou como, como não, não de cocomida, como quem falo, sim? Aí alguém me atende, entetende? Se eu ficar fafalando é memelhor, o meu mel do melhor. Ahhhhh, o doutor riu. O meu memeninozizinho lê popoesia? É claclaro que ele não fafalou assim, sim? Ele não arrerepete as papalávoras. Eu é que arrererepito, e já to arrepentido. É claclaro que sim, sim! Eu leio. E o sese-senhor e-e-endente de popoesia, se não me achamaria de popoeta, entende? Ah, que mamandou eu ser tão dededo do duro, minha mamão não taria ta tá tão boboba e tão estutúpida. Me arrerenego.

Caio Ricardo Bona Moreira
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O FANTASMA DA ENCICLOPÉDIA OU A MAIOR HISTÓRIA DO MUNDO



Passou a infância lendo. Dizem que morava no interior do Espírito Santo. Na adolescência, previu que seria um escritor. Não um escritor qualquer. Seria o escritor de apenas um livro. Mas não seria um livro qualquer. Seria o livro dos livros. Como um astrólogo, adorava fazer previsões. Guiava-se pelos astros. E talvez tenha sido essa propensão para astrólogo que levou o jovem a adiar ao máximo o começo de sua escrita. Por onde deveria começar? Pela explosão dos astros? Pela exploração dos fatos? Ou pela formulação dos planos?Enquanto apenas convivia com tal idéia, lia muito. Talvez esse fosse um belo começo. Ele sabia que um livro era sempre um “livro de livros”, como diria Foucault, ou melhor, um fenômeno de biblioteca. Ele lia Foucault. Ele lia outros também. Sem parar. Ele não lia apenas por prazer. Lia por tarefa. Lia. E isso nem sempre dava prazer. Tinha consciência de que esse dever era parte do seu grande projeto. Mas só isso não bastava.
Quem sabe no futuro os pesquisadores também se laçariam a gastar os seus dias, tentando descobrir as relações implícitas, travadas entre os personagens de seu livro e os personagens de outros livros. Feito um monge copista, trabalhava metodicamente no esboço de seu grande livro. Era preciso planejá-lo.Os personagens eram desenhados e descartados. As folhas, com seus esquemas narrativos, logo iam para a lixeira. Partia de premissa de que só o que considerava realmente bom serviria para o seu enredo. Assim, durante muitos anos, várias histórias surgiram e foram embora, o que é lamentável. Alguns personagens que tinham sido enterrados na lixeira, ou queimados no porão da santa inquisição do autor, voltavam para assombrar os momentos da criação, como fantasmas insatisfeitos com a condição de uma estranha morte que nunca esperimentou a própria vida. Desenhava os cenários, pintava as cidades, colecionava objetos que serviriam para as suas descrições. Quanto mais próximo o mundo do livro estivesse do seu, mais fluidas seriam as cenas, mais verídicas as situações. Podemos dizer que inventou o seu próprio mundo a partir do mundo que pensava em criar com base naquele que deveria ser o seu próprio mundo.
O tempo foi passando e sua casa foi transformada numa espécie de laboratório literário. Inspirou-se em Balzac e escreveu nas paredes o nome de todos os personagens e as relações travadas entre eles. E as relações foram tão tamanhas que o escritor precisou construir mais algumas paredes. E quando sobrava parede e faltava personagem, ele inventava os secundários, e os secundários dos secundários. Tudo caminhava para o pleno gozo da mistificação da escritura. A façanha enciclopédica era o seu desejo. Ele buscava a completude.Sabia que agora faltava pouco tempo de vida. Era preciso começar a escrever o texto. Antes, já vinha escrevendo, mas era uma outra coisa. A sua casa era o seu livro. Um livro feito de casa, ou uma casa feita de livros? Precisava agora começar tudo de novo. E quando percebeu isso, foi fulminado pela conclusão de que não haveria tempo.
Precisaria de uma vida inteira, do tamanho daquela que gastou para esboçar toda a obra. Tudo era apenas plano e o plano virou piada. Descobriu que não era nada mais do que um de seus próprios personagens, o principal, aquele que desenhou na parede e que depois percebeu ser muito parecido com ele. Era um personagem que inventava a maior história do mundo. Eu já imaginava que isso acabaria assim. Talvez o escritor tenha previsto que a impossibilidade de escrever o levaria à morte, o que fez com que se ocupasse de uma “entre-escritura”. Forjava a história, rabiscando nas paredes o que seria o livro. No entanto, nunca escrevia. Seu livro era e não era. Apesar de estranhar esse fato, acredito que a história do mundo é e não é, ao mesmo tempo, história. Das estórias, restaram os ratos no porão da santa inquisição do autor e as ruínas das paredes com o rastro de seus personagens.

Caio Ricardo Bona Moreira
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HOTEL STRADA




Quando venho para cá, fico hospedado numa pousada aconchegante, perto da rodoviária. O local é administrado por um simpático casal de velhos paulistas. Hoje, o seu Cláudio disse que não havia nenhuma vaga. Lamentou a minha situação e prometeu ligar para alguns hotéis da cidade. Poderia resolver o meu problema. Eu sabia que não. Sentei e esperei.Alguns minutos depois, o dono da pousada trouxe um papel que indicava: Hotel Strada – rua Xavier Monteiro – número 642.Guardei a anotação, escrita com má caligrafia (por que fico prestando atenção nessas coisas?), agradeci e saí.
Transformei meu trabalho num pesadelo. Cansei de viajar sempre para o mesmo lugar. Cada vez, até chegar aqui, o tempo parece inventar um outro espaço. É a estrada que se expande, ou minha cabeça que não se comporta? Só venho aqui por uma coisa.Entrei no hotel.Para que descrever os lugares nesse texto que deve ser pequeno? Toda descrição é uma economia. Nunca gostei de fazer economias, por isso não descrevo, entendeu?Enquanto espero a velha recepcionista voltar do banheiro (eu já sabia que ela estava no banheiro, ou não sou o escritor dessa história?), escrevo bobagens nesse papel.Voltou. Ofereceu uma xícara de café. “O hotel não existe mais! Fechamos. Muito trabalho”.
Por que é que no sonho sempre sei o que as pessoas vão dizer?Eu tenho uma teoria: as pessoas adoram rabiscar papéis. É uma forma inventar seu próprio mundo. Se não for isso, talvez seja outra coisa. Falta do que fazer. Eu sempre escrevo no primeiro papel que cai na minha mão.“O sinhô não liga de eu botar esse pozinho branco no café não? É pra REAL-çá o sabor”.Sempre achei a filha do seu Cláudio a mulher mais bonita dessa cidade. E ela nem sabe que só estou aqui por ela. Minhas viagens já acabaram. De que adiantava ficar no hotel Strada?
Hoje, o seu Cláudio contou que ela casou com o veterinário da cidade. Vaca! Não volto mais aqui.“Tudo bem!”Enquanto tomo o café, pego o papel e volto a anotar.A velha recepcionista tem uma verruga na testa. Sei que ela está me olhando. Sinto que estou tonto. Não paro de escrever.“Mistérios da meia-noite que voam longe / que você nunca / não sabe nunca / se vão se ficam / quem vai / quem foi”.Quando escuto uma música que gosto, sinto-me em casa. Por isso aceitei o café.Escuto um batuque assustador nos fundos da casa. Eu sei, só pode ser da minha cabeça. Estou tonto, mas não paro de escrever. Sei muito bem o que estou fazendo. Foi essa maldita velha com sua boca de crocodilo, que agora sorri para mim. Acho que estou ... estou, estou sim. O seu Cláudio me mandou para o lugar errado. Já nem sei dizer se sou feliz ou não.“Merda!” Estou suando.
Quando era pequeno, gostava de ler todos os livros da série vaga-lume. Em 1959, Resnais lançou Hiroshima Meu Amor. A palavra pão rima com mão. Eu conferi se a porta lá de casa tava fechada? Preciso terminar de ler o livro de John Fante. Como era mesmo o nome do livro? “O que é isso?”.
Estou zonzo. Eu grito para a velha: “O que está acontecendo?”. De dentro de seu corpo gordo, pula uma voz horrível:“Pergunte ao pó!”.

Caio Ricardo Bona Moreira

NEM VAI DOER!



Mergulho no asfalto
Óleo sobre tela, 1,20 x 0,80
Acervo: família

Um jovem mergulha no asfalto de uma grande cidade. Os braços parecem estar colados no corpo, talvez para cortar o ar, dinamizando o salto. Quem vê o quadro, vê como quem vê o salto de uma vista privilegiada, do macadame próximo ao portão do prédio de dez andares.Quem aprecia o quadro, hoje exposto numa das principais galerias de arte de São Paulo, não hesita em espantar-se com a cena: “parece real, apesar do estilo cubista”. E nem imagina a verdadeira história do jovem que o pintou.Tudo começou quando ganhou dos avós um Curso de Desenho e Pintura, do Instituto Universal Brasileiro. A obsessão pela perfeição, ao invés de o levar ao paraíso da forma, levou-o ao inferno dos sonâmbulos. À medida que decifrava o método, aprimorando o traço de seu trabalho, estudava anatomia nos livros de medicina do irmão mais velho. Feito um pintor renascentista, almejava forjar um mundo real para tapar a sua própria irrealidade.Os pais admiravam cada vez mais a capacidade do jovem.

O gato vinha lamber o prato de leite pintado com tinta acrílica e corria assustado quando descobria o engano. Os admiradores afirmavam a precisão da cópia, porém o jovem pintor mergulhava numa angústia quando percebia que apenas o primeiro mundo é que tinha o poder o julgar o segundo mundo, sempre estranho ao primeiro. Seu mundo era só um simulacro sem sabor ou cheiro.Quando percebeu que a realidade tinha se transformado numa outra coisa, impossível de ser entendida com base no esquema conceitual alimentado ao longo de sua vida, a arte suprema deixou de ser o objeto de seu desejo, pura representação, e passou a ser o seu próprio real. Tudo que já tinha começado a ser um problema despencou de vez. Achava que nunca mais conseguiria pintar com “clareza”. Incapaz de copiar um rosto sem recortá-lo, imaginou estar possuído, não pela vontade de destruir sua realidade, mas pela vontade de traí-la. Foi, então, que descobriu que era a realidade que imitava a arte.

Seus quadros não eram frutos de seu talento, mas a sua loucura é que era fruto daquilo que chamavam de “realidade”. “Copiar uma nuvem é escapá-la”.Descobriu isso quando terminou de pintar “Mergulho no Asfalto”. Tinha sido um erro pintar um suicídio em que ele era o próprio modelo. Não podia mais mudar a ordem, ou a desordem das coisas. “Nem vai doer!”. Era preciso acreditar em algo. Foi bem mais real do que imaginara. Enterrou-se na avenida.

Caio Ricardo Bona Moreia
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A HISTÓRIA QUE NINGUÉM CONTOU OU A VITÓRIA DE OSWALD DE ANDRADE NAS ELEIÇÕES DE 1950



escapulário
No Pão de Açúcar
De Cada Dia
Dai-nos Senhor
A Poesia de Cada Dia
(o. de andrade)

Parte 1

Um amigo costumava dizer que a história se parece com uma anedota. Uma piada. Depois de pensar sobre isso, adotei a premissa de que só posso entender a história se reinventá-la. Levei ao extremo a ideia desse juízo que me encheu de júbilo e frenesi.O passado tem vida própria e segue sozinho. Por exemplo, se estou numa encruzilhada e decido seguir à direita, o caminho da esquerda não existe apenas como um trajeto não realizado. Eu sou dois. Eu me fragmento. Mesmo seguindo um caminho e não o outro fiz as duas travessias. A diferença é que a outra viagem não é tão palpável quanto aquela que trago comigo como um feito realizado debaixo do meu colchão. Sou mesmo desconfiado.

Parte 2
Depois das eleições é comum que os meios de informação noticiem a vitória de um e a derrota de outro, o que é sempre relativo. As vitórias não são essências e muitas vezes se parecem muito mais com uma grande sacanagem. O mesmo vale para as derrotas. Na história do outro caminho, não contada pela história, meu candidato venceu. Oswald de Andrade não tardou a desafinar o coro dos contentes e passou na prova dos nove. Depois da posse, convenceu os correligionários a defenderem um projeto antropofágico. Primeiro deveriam convencer os adversários a adotarem uma medida provisória autofágica. Só pra ver se sumiam do mapa. Deu certo. O Brasil era agora uma tribo pós-nacionalista. Para que pregar o rompimento com o FMI se poderíamos emprestar dele todo o capital necessário? Rejeitaríamos o resto. Regurgitaríamos o excesso do nacionalismo careta e pregaríamos um meta-Brasil sem muleta.Não tardou o sucesso da proposta. Alguns anos depois, Oswald foi eleito Pajé da tribo Tupiniquim. Todos usávamos óleo de urucum, colares e calças jeans. Haveria tecido melhor para bater todo dia? Jogamos fora o hino neo-romântico e todos cantávamos Trenzinho Caipira sob a batuta do maestro. Mário foi para o Ministério da Cultura, de onde só saía com o seu gravador para viagens ao interior em busca de materiais autênticos, ou para trocar palavras secretas com seu assessor dentro do banheiro, mas ninguém ligava. Nas escolas, os alunos aprendiam o tupi, mas também o português, o inglês e o francês. Era preciso conhecer para deglutir – não dá pra comer o que a gente não conhece. Ninguém nunca ouviu falar em “mensalão”.Quando consegui estabelecer uma comunicação com a outra realidade e contei o que era o Brasil desse lado, ninguém acreditou. Apontaram-me arcos e flechas: Só existia um Brasil, o deles. Minha “estória” soou como uma piada. No final, riram e prepararam um caldo com o estrangeiro. Meu “eu” daquele lado tentou me defender. Virou farofa.

Caio Ricardo Bona Moreira
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O ADIAMENTO DA MORTE DE VINCENT MALEICOVITCHI


Deitado na cama, antes de partir, entre um delírio e outro, meu avô, o fotógrafo Vincent Maleicovitchi, sussurrou para mim: “A fotografia é um adiamento da morte, ou o adiamento daquilo que ainda será”. Eu tinha apenas seis anos, mas nunca esqueci. As fotografias passaram, então, a fazer parte de minha vida. Eu costumava frequentar “sebos”, procurando encontrar alguma foto que explicasse as palavras de meu avô. Carreguei esse enigma por muito tempo.Lembro da primeira foto que comprei.

É uma varanda. Um velho conversando com uma velha. Ele aponta o dedo em direção ao fotógrafo. O velho usa um chapéu panamá. A foto lança o casal no abismo do adiamento da morte. O velho repete eternamente o mesmo movimento, como que condenado a não mais sair da foto, preso no purgatório da representação. Mas não foi por isso que comprei a foto. Foi a inscrição do avesso que provocou a minha curiosidade. Em letras garrafais: “Isso-não-foi-isso-será”. O que teria essa frase a ver com meu avô?

Só entendi o que ele falou, assim como o que a frase da foto dizia, quando um amigo sugeriu a leitura de “A câmara clara”, de Roland Barthes. Depois de refletir sobre o pensamento do escritor francês, sobre a foto do casal, sobre a frase do verso da foto, e sobre a fala de meu avô sobre a foto, cheguei à conclusão de que as teorias não conseguem explicar muito. Para Barthes, a foto repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente. Ela atesta o “isso foi”. Mas é nesse ponto que encontrei um grande problema. Agora que estou velho posso pensar melhor. Já tinha quase esquecido da frase: “isso-não-foi-isso-será”.

Tudo ficou claro quando num claro dia fui com minha senhora até a varanda lá de casa. Quando olhei para a rua, vi que um homem barrigudo se aproximava. Tirou uma máquina fotográfica da bolsa e apontou para os dois expectadores da varanda. “É o fotógrafo!”, gritei assustado. Vi o “flash” entrar em meu campo de visão. Não notei que o homem fugira. Eu usava um chapéu panamá.

Depois de reler o texto de Barthes, já não sei se a fotografia é a marca do “isso foi”, ou daquilo que ainda será. Na duvida, parei de olhar para fotografias. Também me recuso a posar para elas. Prefiro não adiar minha morte. Não gosto de fazer pacto com as imagens.

Caio Ricardo Bona Moreira
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PLATÃO, HORÁCIO, E O PROFESSOR GENÉSIO





Meu professor de literatura parecia ser um cara normal. Quando o ano letivo começou, ficamos animados com aquele velho barbudo, que entrava na sala sempre atrasado, suando como um padre no deserto. O professor Genésio Freitas, doutor em Literatura Comparada, apresentou-se como um “desconstrutor”. Cada vez que a aula esquentava, ele colocava em cheque toda a noção razão ocidental. Carregava sempre “The Cantos”, de Ezra Pound, e gostava de declamar Walt Whitman. Sempre tinha alguma frase para calar nossas construções conceituais, nossas grandes narrativas, a nossa inexorável ignorância.

Durante a semana, esperávamos ansiosamente pelas discussões que aconteceriam na aula do nosso miglior fabbro. Saíamos da aula e passávamos no Bar Quintino, próximo ao prédio da faculdade. Lá, as aulas continuavam.Tudo corria normalmente até o dia em que, depois de afirmar categoricamente que a escrita era um remédio, não um veneno, o professor Genésio caiu num transe espiritual, mudou a voz e, falando em grego, negou tudo o que havia dito anteriormente: “Pharmákon sempre será um veneno, não um remédio, eis a alétheia”, a tradução simultânea foi feita por Hermógenes, um descendente de grego, hábil na língua, que nunca faltava às aulas. Falava ele da escrita. No início, achávamos que se tratava de alguma doença. Estávamos errados. Era um caso raro de mediunidade. Ficamos sabendo alguns dias depois que o professor Genésio incorporara Platão.

Quem decifrou o oráculo foi Armindo, colega de classe, que era ligado a esses assuntos metafísicos e estudava o espiritismo.Numa outra feita, Genésio, que era tradutor de poesia latina, dissertava sobre a noção de “est modus in rebus” e “virtus in medio”, em Horácio. Quando começou a declamar suas traduções do poeta “Carpe Diem”, seu olho começou a virar. Era Horácio em pessoa, ou melhor, em espírito: “Eu nunca disse isso, velho miserável” – Hermógenes, que também era versado em latim, traduziu. Horácio esganava o professor Genésio, ou seja, Genésio batia em Genésio. Tivemos que intervir e apartar a briga. Horácio era forte como um cão.Depois daquela aula, nunca mais vi o professor Genésio, que foi afastado pelo departamento. Armindo contou que ele foi viver no campo: “fugere urbem”. O médico atestou impossibilidade para o magistério, causa desconhecida, talvez uma forte crise de depressão. Os alunos sabem: Platão desconstruiu o desconstrutor.


Caio Ricardo Bona Moreira
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FELLINI, OITO E MEIA, SARAVÁ EM COPACABANA



Conta a lenda que Fellini, antes de filmar “Otto e Mezzo”, estava, assim como Guido, vivendo uma tremenda crise existencial que afetou significativamente seu processo criativo. A solução para esse problema não foi encontrada apenas na tentativa de representar no filme o drama da criação. O que poucos sabem é que Fellini encontrou a solução para seu drama aqui no Brasil. Quem me contou a história foi meu tio Marcelo.1961, oito e meia da manhã, Copacabana. Meu tio caminhava pela praia quando encontrou Fellini agachado na areia, preparando o que parecia ser uma oferenda a orixás.

Tio Marcelo reconheceria Fellini a quilômetros de distância. Fellini, arriscando um portunhol meio xucro, sorriu ao encontrar um admirador de seus filmes em plena manhã carioca. Confessou que vivia um drama artístico e que procurou uma mãe de santo brasileira que morava na Itália. Mãe Manuela alertou que o “branco criativo” só findaria com uma viagem secreta ao Brasil. No Rio de Janeiro, Fellini deveria procurar um terreiro. Lá, seria orientado sobre o ritual que deveria realizar oito e meia da manhã, em Copacabana.Antes de partir, Fellini reencontrou meu tio em um restaurante. Tinham combinado de almoçarem juntos. O italiano estava animadíssimo e muito satisfeito com o resultado da “macumba para turistas”. Tão satisfeito que chegou a escrever, em apenas um dia, o roteiro de um filme, que pretendia rodar no Brasil.

“Divina Comédia Tropical” seria uma adaptação do famoso texto de Dante, lido à luz do calor dos trópicos. A história começaria em Rimini, que figuraria o inferno criativo de um escritor, onde o fogo queima a alma, onde o frio congela a imaginação. Em busca de uma solução, Dalton, o personagem principal, viajaria pelo Atlântico, o purgatório, até chegar ao paraíso-tropical-brasileiro, onde várias sequências seriam rodadas com suculentas mulatas, gordas baianas de grandes tetas, e muito carnaval. Felliniano, não? A busca não de Beatriz, mas a de uma boa atriz, a razão da criação, onde tudo faz sentido. Conta a história que o filme fantasma nunca saiu do papel, o que para o meu tio Marcelo nunca fez sentido.


Caio Ricardo Bona Moreira
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UMA GARRAFA DE UÍSQUE E 25 COMPRIMIDOS





A placa indicava: “Entre sem bater”. Foi num sábado. Como poderia esquecer? Tão logo entrei no boteco, percebi que aquilo só podia ser um sonho. Não é em qualquer boteco que encontro Vinícius, Adoniran, Oswald e o João Antônio discutindo música e literatura como quem discute futebol numa sexta-feira depois de um dia estafante de trabalho. João Antônio pediu licença e foi jogar sinuca com um sujeito estranho chamado Bacanaço.Só posso estar morto. Perguntei pro Oswald se ele achava que eu tinha pedido a conta para o garçom. Ele deu risada e disse que eu nem tinha começado a beber, e que eu também não estava com cara de finado. Claro, como não percebi.


Eu ainda ouvia a minha mulher roncar ao meu lado, enquanto o Adoniran cantava o Samba do Arnesto. Eu estava sonhando.Confessei para o sírio de Jequié, que também marcava presença naquela “boemia onírica”, que trocaria toda a realidade para continuar sonhando. “Eu também”. Contou-me que infelizmente sempre acordava quando a conversa ficava boa. E quando dormia novamente, o bar era sempre outro e os poetas também. Por isso estava estudando um manual hindu para aprender a controlar os sonhos. Falou que eu devia me “enturmar” com o pessoal, pois o poetinha já ia começar a declamar “O dia da criação”.Foi quando Marisa me acordou. Queria que eu fosse até a cozinha buscar um copo com água. Tentando esconder a minha irritação, fui até a sala, tomei uma garrafa de uísque, e misturei 25 comprimidos de dormir. Adormeci no sofá.


Fui me aproximando do boteco. Já era um outro boteco. Senti meu peito apertado. Meu coração batia forte. Marisa me chacoalhava e eu não acordava. O boteco estava quase deserto e, sem sucesso, eu me perguntava: “Cadê o pessoal?” A voz de Marisa já estava longe quando ouvi seu grito de pavor. Chamou os vizinhos. Resolvi ficar. Puxei a cadeira, chamei o garçom e pedi a conta.



Caio Ricardo Bona Moreira
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