sábado, 31 de maio de 2008

PREFIRO FICAR COM A PALEONTÓLOGA COM CARA DE DINOSSAURO: sobre as críticas


Uma leitura sempre corre o risco de não ser aquilo que pensa que é. Pululam nas prateleiras do comentário todos os tipos de crítica possíveis. Algumas surpreendem por se revelarem o oposto do que pareciam ser. Estariam fadadas a acabar os seus dias escondidas, ganhando o pó da prateleira, não fosse o alegre retorno ao serem (re)descobertas por um olhar atento que não se furta de mergulhar as mãos e os olhos em escombros e outros mafuás. São tão interessantes quanto o próprio objeto que propõem analisar. Fazem lembrar o exótico mineralogista de botas grandes e olhos tão ou mais verdes que a esmeralda colhida no quintal; fazem lembrar o zoólogo que, quanto mais observa o lagarto, mais se parece com ele, a ponto de dizer: “Onde está minha lagarta?”.

Mas nem sempre acontece isso. É comum encontrarmos mineralogistas que julgam serem seus olhos mais bonitos do que a esmeralda colhida no jardim. É mais comum ainda encontrarmos o zoólogo que, quanto mais observa o lagarto, menos quer se parecer com ele, e mais quer domesticá-lo a fim de que possa pregá-lo na cruz do museu – como faz um colecionador de insetos – só para dizer que são bonitinhos e feios.

Prefiro ficar com a paleontóloga com cara de dinossauro. Ela abre o livro e sabe que não há segredos a decifrar. Sabe que pode julgá-lo, mas com a prerrogativa de que será julgada também. Prefere, então, em vez de optar por um ou outro adjetivo unilateral (bom – ruim), fazer da sua expedição uma viagem enlouquecedora, que apaga os limites entre o botânico e a orquídea selvagem. Não seria tão simples como resumir o código das abelhas ou sintetizar a arqui-textura da colméia. Seria mais complexo que resenhar positivamente a tarântula só para aumentar o ego do Deus que a criou. A paleontóloga com cara de dinossauro pode, é claro, gostar ou não gostar da natureza. Mas sabe principalmente que é graças a ela que também sobrevive. Isso não quer dizer que o dinossauro seja mais importante que a paleontóloga. Seria muita pretensão. A paleontóloga não existe só para classificar fósseis. Existe para extraí-los do horizonte do passado, devolver-lhes uma força capaz de transformá-los. Tarefa mui dignificante, como plantar uma árvore. Muitos já plantaram, Benjamin que o diga.

Caio Ricardo Bona Moreira

O FILME QUE VIROU POEMA


Poderia falar mil coisas sobre “O homem que virou suco” (1981). Dizer que é um filme político – como se isso fosse uma particularidade capaz de lhe conferir uma identidade –; um filme sobre a saga de um nordestino na São Paulo do final dos anos 70; um filme sobre a grande metrópole capaz de transformar a vida de um homem; um filme sobre o fracasso de um pobre paraibano. Mas não. Prefiro dizer que é um filme poético. Não esqueçamos que o paraibano protagonizado por José Dumont é um poeta. O fato de fazer poesia transforma Deraldo em um sujeito estranho numa cidade que coloca o “capital” em primeiro lugar. Mas é graças à poesia que o personagem consegue entrar e sair da mesma lógica que o faz um “marginal”.

Por que o poeta não consegue sobreviver na cidade grande? É que cada vez mais sua maneira de ver o mundo não condiz com a anti-lírica dos arranha-céus. Não que não haja espaço para a poesia na cidade (Não é à toa que o concretismo traduziu a urbanidade paulista com a força imagética do concreto armado e do lirismo des-armado). Espaço há, mas estão interditados.

Por que o poeta consegue sobreviver na cidade? É que o poeta paraibano faz da cidade um lugar fora do comum. Não que consiga criar uma saída. Ele consegue encontrar outras entradas. Circula por todos os lugares: do meretrício à luz da lua ao pátio da praça e da construção civil. Neles, vai deixando os “rastros”, as pétalas de fogo, as margens de uma linguagem além linguagem. A palavra do paraibano não mora em lugar nenhum, por isso em todos os lugares. Deraldo não cabe em um mundo sem literatura. O poeta sobrevive porque inverte o jogo. Sobrevive porque veste o "gibão" de um cangaceiro que encara de frente um bando de transeuntes.
Poderíamos também inverter o jogo e abolir o lamento. O nordestino não aceita o jogo selvagem das relações de trabalho da cidade da garoa (lembrar da cena em que chuta pau da barraca na reunião dos candidatos a um emprego no metrô, ou daquela em que se insubordina contra a patroa jogando um vaso precioso na piscina, o mesmo vaso que fora presenteado por um importante coronel do Nordeste).

Deraldo José da Silva (José Dumont), logo no início do filme, encontra uma vizinha, que o questiona: “Você pensa que a vida é só cantar, seu Deraldo? A vida é dura. É garrar no batente”. Ele responde: “Ôh, dona Mariazinha, na sua concepção isso aqui (poesia) não é trabalho, não?” “Isso é diversão, homem! Por que não faz igual o Zé, meu marido, que garra no batente desde as seis horas da manhã e só volta à noite.” O poeta, sem pensar, e vendo a condição miserável da vizinha, dá a Mariazinha um tapa de luva: “Descobri agora porque é que vocês vivem tão bem!”. A cena basta. O poeta esperto percebera que o valor pregado pela comadre não trazia felicidade nem conquistas; o discurso implícito na fala da vizinha, a de que o trabalho braçal dignifica o homem, só poderia soar como uma estranha falácia aos ouvidos do poeta que descobriu cedo que numa cidade como aquela o "trabalho braçal" só possibilitaria ao homem não morrer de fome.

Ao longo do filme, Deraldo é confundido com Severino, o operário que assassinara um rico industrial. As fotos de Severino estampadas no jornal levam Deraldo a sofrer uma série de preconceitos que se somam ao fato de ser poeta e nordestino. Poderia ser pior?
Deraldo, colocando em prática o que Nietzsche chamaria de Amor Fati, transforma a desgraça em graça, talvez por amor ao destino. Procura Severino e escreve o poema contando toda a história: “O homem que virou suco”. O filme virou poema.

"O homem que virou suco", de 1980, foi dirigido por João Batista de Andrade. Ganhou, entre outros, o prêmio de melhor filme, no Festival Internacional de Moscou, em 1981.

Caio Ricardo Bona Moreira

domingo, 11 de maio de 2008

JOÃO GILBERTO: UM ROTEIRO QUE NUNCA SERÁ FILMADO... PORQUE O FILME JÁ EXISTE




Talvez fosse possível escrever um roteiro poético sobre uma cena de cinema. Lembro-me de algumas cenas que são antológicas, como a dança ingênua de Fred Astaire e Cyd Charisse, em A Roda da Fortuna, ou mesmo o nascimento de Macunaíma, protagonizado pelo grande Grande Otelo, na belíssima adaptação (ou melhor trans-criação) de Joaquim Pedro de Andrade. Outras são menos conhecidas, mas não menos interessantes: o momento em que um anjo ganha cor, quando resolve se tornar um humano por causa de uma paixão pela bailarina do circo, em Asas do Desejo de Wim Wenders. A serenata que Vadinho faz para Dona Flor, cantando Noite Cheia de Estrelas, de Vicente Celestino: “Noite Alta, céu risonho...”.
Há uma linda e comovente interpretação de João Gilberto, cantando “Estate”, na Itália. Geralmente um roteiro deve ser escrito antes da filmagem. Neste caso, tomei a liberdade de inventar um depois de assistir ao filme “Bahia de todos os sambas”, de Leon Hirzman e Paulo César Saraceni, gravado em Roma, em 1983. O filme registra um dos maiores shows de MPB que já aconteceu na Europa. Eu, com apenas dois anos na época, nem sonhava com aquilo: “O que é que a baiana tem?”. E o show não era apenas musical. A Bahia baixou em Roma – com seus atabaques e pais-de-santo, suas rezas, acarajés, danças e candomblés. Um encontro para gringo nenhum botar defeito. O encontro foi organizado por Gianni Amico, um italiano que juntou figuras como Caetano Veloso, Dorival Caymmi, Gal Costa, Moraes Moreira, Naná Vasconcelos e o grande João. O roteiro poético que segue não tem pretensão alguma de aproximar-se do formato oficial – até porque nunca será filmado, como o roteiro esquecido de Mário Peixoto, “Outono – jardim petrificado”. Por isso poético. Instruções: Para ser lido ao som de “Estate”.

CENA 1 (Plano de conjunto)
Noite. Um palco, pouca luz, um banquinho, um violão e João Gilberto. O suficiente. Terno azul-cinza, paletó aberto. João olha para o violão. Atrás dele, uma orquestra. Começa.
“Estate sei calda come i baci che ho perduto
sei piena di un amore che è passato
che il cuore mio vorrebbe cancellare”

CENA 2 (corte para Plano médio)

João balança a cabeça. Toda a história da Bossa Nova se resume nesse breve movimento de João, como que hesitando entre uma voz e um olhar, ou mesmo expressando a letra por meio do gesto. Seria o lamento de um brasileiro ou um italiano? João frisa a testa, talvez para alcançar a precisão. Não, seria a perfeição:
“Estate il sole che ogni giorno ci scaldava
che splendidi tramonti dipingeva
adesso brucia solo con furore”

João olha para o céu. Não, olha para cima. Não, olha para cima, mas para lugar nenhum. Um lugar, sim. Só ele pode saber. Torna a olhar para o violão. Quase fecha os olhos. J.Joyce, em Ulysses,diria: “Fecha os olhos e vê”:

“Tornerà un altro inverno
cadranno mille petali di rose
la neve coprirà tutte le cose
e forse un po' di pace tornerà”

Os pitagóricos acreditavam (e acreditam) que o segredo do universo estaria explicado na matemática. A precisão dos números revelaria a ordem de todas as coisas. A música, por incrível que pareça, está mais próxima da matemática do que se pode supor. Se a música pode ser registrada numa partitura é porque sua matemática de tempos e de tons a permite. João volta a olhar para o céu. É, agora é para o céu. Talvez sua partitura esteja registrada na ordem das estrelas.:
“Estate che hai dato il tuo profumo ad ogni fiore
l'estate che ha creato il nostro amore
per farmi poi morire di dolore”

CENA 3 (Zoom-in no rosto de João. Plano de detalhe)
A cena é comovente. Agora, o que se vê é uma seqüência de alguns minutos no rosto de João. Sua testa sua. Seu olhar é suave e contínuo, feito fio de água antes de explodir em rio. O pai da Bossa Nova olha para o violão como quem a ninar o primeiro filho. Como quem olha apaixonado a amada ainda sem saber se tem também o seu amor. Como quem abraça um triste amigo, feliz por sabê-lo um dos seus. Levemente, sorri. E esse sorriso é para o violão, como a agradecê-lo por não estar sozinho. Todo o mistério de João se revela nessa seqüência. E toda a potência de seu comedimento também. João repete a letra. No entanto, sabe que toda repetição traz em seu bojo a força de uma diferença. João nunca repete. Bossa-cancione sempre outra a mesma.
CENA 4 (Zoom-out do rosto de João. Volta para Plano médio)
A música termina. O menino levemente sorri. As luzes se apagam...

(Dedicado ao Mestre J. Gilberto)
Caio Ricardo Bona Moreira

sábado, 10 de maio de 2008

CANTA, CANDEIA


(É assim que o filme começa)
Enquanto o partideiro dá uma aula de samba, o sambista-bailarino ensaia a cadência, demonstrando passos variados e arrastando a faca no prato para marcar o compasso. Quem consegue fazer isso com um prato? -talvez João da Baiana. O partideiro não samba com os pés. Samba com a voz e com o coração. E comove. Não porque está numa cadeira de rodas. Um bom sambista nunca aceitaria a comoção fortuita de alguém que o veja simplesmente como um deficiente: “Pois tristeza feia o poeta não gosta”. A eficiência no samba não se faz só com as pernas. Aos lamentos o poeta responde com um “surdo marcando choro de cuíca”. Comove pelo partido. É que um bom samba é forma de oração. Falo de um poeta. Falo de Candeia.

Um dos mais bonitos registros cinematográficos sobre o samba é o filme "Partido Alto", de Leon Hirszman, de 1982, filmado em 16mm e com 22 minutos de duração. O cineasta subiu o morro para registrar o encontro descontraído de sambistas e cabrochas numa roda bem tradicional. Paulinho da Viola é um dos jovens que aparece tocando cavaquinho e dividindo a cerveja com os irmãos do samba. Paulinho sabia onde estava. À medida que dá uma aula sobre o partido alto - ao lado de três lindas morenas que, com as mãos na cintura, “balançam as cadeiras” e abrem um sorriso como quem sabe que o céu não é longe dali -, Candeia apresenta pérolas como o “Testamento do Partideiro”. Só para citar alguns versos:

“Pra minha mulher deixo amor, sentimento, na paz do Senhor
E para os meus filhos deixo um bom exemplo, na paz do Senhor
Deixo como herança, força de vontade, na paz do Senhor
Quem semeia amor, deixa sempre saudade, na paz do Senhor
Pros meus amigos deixo meu pandeiro, na paz do Senhor
Honrei meus pais e amei meus irmãos, na paz do Senhor
Ao fariseu não deixarei dinheiro, na paz do Senhor
É, mas pros falsos amigos deixo o meu perdão, na paz do Senhor”

O partido alto poderia ser considerado uma das formas autênticas do samba. Nele, impera a improvisação, mas não uma improvisação qualquer. Os partideiros têm a liberdade de inventar os versos no momento em que estão cantando. Em torno de um refrão os participantes da roda alternam-se na cantoria, o que faz com que o gênero transforme-se provavelmente na manifestação mais “democrática” do samba, já que se rarefaz a própria noção de autoria.

O autor do partido alto é toda a roda. Cada membro festeja a sua participação na comunidade. Não há tempo para que esse poeta pense duas vezes antes de colocar as palavras na roda. A palavra, assim, vem do “burio do coração”, usando aqui uma expressão de Lindolf Bell. Diante de um livro, talvez se calasse com medo de que suas palavras ficassem trancafiadas, sem o direito de banharem-se ao sol. Talvez o outro poeta, aquele que pensa antes de sentir e cantar, ficasse calado no meio da roda. Talvez sambasse. Talvez sentisse. (É assim que o filme termina)

Caio Ricardo Bona Moreira

quarta-feira, 7 de maio de 2008

FOGO NO LIVRO


Numa das passagens decisivas do romance “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, o guardião da biblioteca, Jorge de Burgos, decide impor o silêncio por meio do fogo. A revolta é contra o exemplar “A Comédia”, de Aristóteles. Diz Jorge, antes de queimar a biblioteca secreta: “A comédia pode fazer com que as pessoas percam o temor a Deus e, portanto, faz desmoronar todo esse mundo.” A decisão é tomada com a coragem de quem queima uma biblioteca para calar um livro e salvar a humanidade. É em nome dessa salvação que grandes atrocidades ocorreram ao longo dos tempos. No livro, o que faz “desmoronar” não é necessariamente a “rosa” do preceptor de Alexandre, o Grande, mas o veneno (phármakon) inserido em suas pétalas - rosa púrpura de Alexandria, que, por sinal, soube muito bem do fogo que destruiu seu império intelectual.

Eco imagina que o livro perdido do filósofo havia sido escondido em um mosteiro, local que o semiólogo italiano usa como cenário para sua trama, temperada com o traço policial legado por Conan Doyle. Mas a questão não se resume apenas a uma ilustração dos fatos misteriosos que acontecem na trama. É em torno do livro que o fio da história se desenrola. Poderíamos dizer que em “O Nome da Rosa”, o livro sobrepõe-se em relação aos próprios personagens. Algo semelhante acontece no filme Fahrenheit 451, de François Truffaut (1966). Baseado no romance homônimo de Ray Bradbury, Fahrenheit 451 pode ser considerado como uma interessante metáfora do guardião da biblioteca, o cego que queima os livros em nome de uma verdade com V maiúsculo. Aliás, com o personagem Jorge, o cego, Eco rende homenagem ao escritor argentino Jorge Luis Borges, um dos seus escritores prediletos.

Se a história de Eco se passa na Idade Média, a de Bradbury e Truffaut acontece num futuro distante. Nessa sociedade, todos os livros são proibidos. Cabe a um poder soberano procurar os leitores-infratores e puni-los com a severidade de um regime extremamente autoritário. Sobra aos livros, de Sade a Sartre, um fogo que queima a 451 graus Fahrenheit. Mas nem calor tamanho consegue apagar o fogo, aliás símbolo também do conhecimento, alimentado por uma tradição que subsiste apesar da tropa. Ironia: quem acende o fogo é o bombeiro. Sintomática inversão de valores. Das fogueiras da Santa Inquisição à decisão da justiça brasileira, que proibiu a comercialização da biografia não autorizada do Rei Roberto, o fogo parece simbolizar não apenas a tentativa de apagar os rastros do próprio homem, mas também, ironicamente, uma transcendência que lhe confere um poder quase sobrenatural, já que o que se queima aqui é um instrumento que abalou estruturas de um poder determinado, por isso deve ser queimado - por isso não consegue ser queimado. O livro, considerado um veneno, tão maligno quando o de Jorge, o cego, faz lembrar da restrição severa imposta à palavra escrita, em Fedro, de Platão.
Abolir a literatura, em Fahrenheit, levaria a duas consequências imediatas: a primeira é positiva e se personifica no próprio filme. Por meio da abolição, exercitaríamos a mnemotécnica. É o que os personagens fazem nas cenas finais. A segunda consequência seria a perda de toda uma tradição que poderia ser registrada em livro. Entre Toth e Tamuz, o bombeiro e Truffaut.

No entanto, os dispositivos de poder, no filme, são complexos. A cobra morde o próprio rabo. Um dos bombeiros é contaminado pelo gosto da literatura. É obrigado a fugir, refugiando-se num lugar onde os livros não existem na sua materialidade física, todavia são memorizados, a fim de que a humanidade não esqueça que eles podem existir na mente de quem os guarda. Lá, as pessoas já não possuem seus nomes. Restaram os nomes dos livros. Cada pessoa deve memorizar a obra que recebeu como nome. Se você estivesse lá, qual seria seu nome?

Caio Ricardo Bona Moreira

sexta-feira, 2 de maio de 2008



Sophia Loren e Marcello Mastroianni formam um casal polivalente. Uma espécie assim de Glória Menezes e Tarcísio Meira da Calábria. Quem soube explorar (no bom sentido) muito bem a dupla foi Vittorio de Sica, um dos grandes cineastas italianos. A Itália, por sinal, sempre nos presenteou com grandes cineastas, a lista seria gigantesca, como o coração da nona.

“Ontem, Hoje e Amanhã” é um excelente filme, para quem gosta de apreciar a potencialidade de um artista. Falo isso porque a película é composta por três histórias protagonizadas pela mesma dupla: Sophia e Marcello – Sophia, lindíssima como sempre, ainda no tempo em que as musas do cinema não viviam com peitos de mentira, e olhem que os peitos de Sophia ainda podem fazer inveja a qualquer candidata à celebridade.

A dupla é a mesma, mas os personagens não. Na primeira história, Sophia vive Adelina, uma contrabandista de cigarros que descobre que não pode ser presa enquanto estiver grávida. Sucede que os filhos vão sendo concebidos às pencas - Adelina não quer ser presa. Até o momento em que o marido já não é mais o mesmo Sem forças, já não consegue acompanhar o avião amoroso que é a mulher. A solução seria entregar-se à polícia ou aos caprichos do cunhado?
No segundo filme, Sophia protagoniza uma burguesa que, enquanto viaja com seu amante, tenta seduzi-lo com sua riqueza. O amante-escritor tenta dissuadi-la de seu "baixo materialismo".
No terceiro filme, Sophia vive uma prostituta que "assiste" num bairro pobre de Roma. Entre a inocência e o erotismo, Mara é o centro das atenções do prédio. Seduz, mesmo sem querer, um jovem seminarista que desperta o ciúme de Rusconi (Mastroianni). Seduz quase sem querer, como o cinema de De Sica.

Filmado em 1963, “Ontem, hoje e Amanhã” parece marcar uma passagem de um cinema centrado no neo-realismo italiano para uma comédia de costumes que desembocaria nas locuras de Fellini na década seguinte. Vale lembrar que Fellini chegou a trabalhar com de Sica. Despertando uma certa nostalgia de uma boa macarronanda da nona, o filme contou com o roteiro de Eduardo De Filippo, Billa Billa, Cesare Zavattini, Isabella Quarantotti, Alberto Moravia. Já vele pela excelente fotografia e pela bela trilha sonora, assinada por Armando Trovajoli. Ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, mas isso não o faz melhor ou pior.

Caio Ricardo Bona Moreira