segunda-feira, 28 de julho de 2008

LUZ DEL FUEGO ASSIM COMO A POESIA NÃO TEM HORA PRA CHEGAR


“Por que se congregam as recordações da história nos resíduos sobreviventes? Por que as pesquisas do homem procuram sempre reconstruir o passado, reconstruir a origem, saber de onde saímos, para calcular para onde vamos...e os resíduos sobreviventes são os únicos pontos de apoio capazes de agüentar com suficiente segurança a animosidade pesquisadora do homem” Flávio de Carvalho, em Ossos do Mundo

Uma luz de fogo nunca precisou de mais de um copo de mais de um corpo uma cantilena pra chegar a uma luz del fuego sem papas na língua um caco da história por mais que os pêlos por entre as pernas denunciem o tempo sem apagar e aparar a luz do fogo e do corpo de uma natureza antes da natureza a luz reza até que a réstia da câmera flagre e o cinema acenda outro fogo de uma luz não menos fogo Lucélia poderia ser todos os Santos ser um fogo mas a sombra do telhado não deixa que a luz se expanda em plena praia e um bando de naturebas fazendo do corpo um suporte uma bandeira um partido de toda orgia sempre fica no corpo o resto de uma réstia uma cicatriz um corpo ferido se fosse tempos anos antes décadas atrás Noel ficaria gago só de olhar a luz del fuego fazendo estrago moribundo e vagabundeando pleitearia uma vaga de garçom só pra servir as pernas pegando fogo fazendo um samba em plena ilha no Espírito Santo a arte é uma cobra boba que faz travessuras em torno do pescoço de uma vedete - o poeta é uma vedete – e o leitor uma criança que com lixo constrói o seu templo brinquedo – um caco da história - uma Lucélia atrás da tela nos traz um tal de fogo mas na foto a luz de luz del fuego não acende a Lucélia mas pensando bem quem sabe os pêlos e Santos da Lucélia acendam o fogo da luz del fuego do Espírito quase Santo

Caio Ricardo Bona Moreira

segunda-feira, 21 de julho de 2008

ENFIM, UM FILME SEM FIM!
MESMO TUDO ESTANDO DITO; OU EMPALHANDO CADÁVERES

Enfim, um filme sem fim
Mesmo tudo estando dito
Talvez um final assim
seja a sua melhor forma de ser infinito
PARTE I

Será possível falar de um filme sem extrair a poesia que sustenta o seu corpo, que comanda os seus gestos? Será possível nele entrar e sair sem roubar-lhe a sensibilidade que o faz ser o que é? Ao falar sobre o filme serei um suicida, um soldado, um seminarista ou um taxidermista? Como roubar-lhe a poesia e ao mesmo tempo deixá-lo intocado, imaculado, constelado aos olhos de quem o vê por meio dos meus olhos?
Será possível preenchê-lo com a mesma força que antes lhe dava a vida que meus olhos roubaram? Talvez o leitor esteja pensando que exponho segredos desnecessários, palavras demais. Mas é preciso começar por aqui. A cada texto escrito me pergunto se seria preciso repetir essas palavras; elas poderiam servir para todos. Mas é impossível falar sobre um filme que nos toca sem tocar em questões como a impossibilidade de reconstituí-lo no comentário, lugar onde o texto parece muitas vezes dormir à espera de um sapo que beije a boca do príncipe na expectativa de que tal ato romântico possa enfim despertá-lo da tumba. Sim, essas palavras nos levam ao cinema. Bom filme é aquele que faz com que o espectador nunca saia ileso da tela.
Meu desconhecimento sobre o cinema iraniano tem boas e más conseqüências. As más não convêm assinalar, basta dizer que o desconhecimento é uma forma de melancolia. Concentro-me nas boas conseqüências. Quem nunca comeu uma cereja, quando come experimenta sensação semelhante ao menino que descobre pela primeira vez o prazer e o sabor do sexo. Por exemplo: nasci em um país que já conhecia João Gilberto. Não consigo lembrar qual foi a primeira vez que ouvi “Chega de Saudade”. Convivi desde cedo com a idéia de que o mundo sempre foi assim. Fico imaginando as pessoas que ligaram o rádio em 1959 e escutaram pela primeira vez o hino da bossa nova. Acostumados com Vicente Celestino, Orlando Silva e Carlos Galhardo, a maioria dos ouvintes provavelmente tiveram experiência semelhante à mordida da primeira cereja. E a cereja nunca foi um fruto proibido como a maçã.
O cinema iraniano tem sido para mim uma feliz descoberta. Uma descoberta que se repete com diferença - redescoberta. Depois de assistir ao brilhante “Salve o Cinema”, de Mohsen Makhmalbaf, fiquei curioso para ver os filmes de Abbas Kiarostami, um cineasta que possui a qualidade de reinventar o cinema a cada filme que produz.
“Gosto de Cereja” (Ta`m e Ghilass – Taste of Cherry), de 1997, é maravilhoso não apenas do ponto de vista narrativo, mas pela força intrínseca das imagens. O filme toca em dois tabus do mundo islâmico: o homossexualismo e o suicídio. O primeiro tabu é apenas sugerido e está presente implicitamente na primeira parte do filme, quando ainda não sabemos do que trata. Sr. Badii (Homayon Ershadi) nos aparece como uma espécie de “gay desiludido” à procura de um homem nos arredores de uma cidade do Irã. Ele passeia de carro e tenta convencer um jovem soldado a acompanhá-lo em um passeio a fim de possa contar com sua ajuda em um importante trabalho – trabalho que aqui ainda é um mistério. Depois de saber de que se trata o jovem foge como quem se deparasse com uma serpente prestes a convencer Eva a morder uma maçã-cereja. Mas Kiarostami frustra expectativas pré-moldadas. O pecado é outro. Sr. Badii pede que o soldado o ajude a cometer suicídio. Ao soldado falta coragem e sobra humanidade. As outras duas pessoas que Sr. Badii tenta convencer são um seminarista, que fundamentado no Alcorão não aceita desumana proposta, e um velho taxidermista que promete ajudá-lo apesar de não concordar com a atitude do motorista. Basta dizer que o Sr. Bagheri (Abdolrahman Bagheri) é figura central no filme. Não convém falar mais para não estragar a curiosidade do leitor que talvez sinta o desejo de assistir ao filme.

PARTE II

Taxidermista é aquele que concentra em si duas atividades no mínimo corajosas: presenteia o corpo morto com uma espécie de sobrevida, ao conservar-lhe o aspecto de ser ainda vivente. Expor o corpo morto dessa maneira a outros olhos é fazer da fantasmagoria uma espécie de alegoria da vida. Ao mesmo tempo que presenteia o cadáver com a fantasia ululante de ainda existir, permite àquele que mira o morto uma experiência impactante de vida, como se a morte pudesse nos dizer: “você ainda está aí”. Esse contato com a faccies hipocratica da morte talvez seja um dos grandes presentes que alguém possa nos oferecer. Curiosamente, no filme, o contato do Sr. Badii com o taxidermista é a possibilidade de contato com a vida. Cabe descobrir de que vida se trata, se é a sobrevida de um cadáver, ou se é uma vida reconstituída pelo hábil “empalhador”. Arrisco dizer que o próprio Sr. Bagheri também ganha um presente. Acostumado a empalhar cadáveres, o taxidermista tem agora em suas mãos a possibilidade de conservar a vida. Isso o velho faz com palavras. A história que conta a Sr. Badii dá nome ao filme e justifica uma das cenas mais bonitas, o passeio de ambos. Se a história funcionar, é possível que o homem não cometa o suicídio, se não funcionar, saberemos o resultado. Eis a força de uma história. A capacidade de um taxidermista transformar a vida de um homem que nem conhecemos faz com que todas as cenas posteriores sejam tocadas pela conversa anterior.
Encomendar a própria morte a outrem não é a novidade do filme. Basta lembrar do filme “A Igualdade é Branca”, da trilogia das cores, de Krzysztof Kieslowski. A novidade não está na história, está na capacidade de Kiarostami operar com a força intrínseca das imagens, com a capacidade de frustrar expectativas pré-moldadas e fazer de seus filmes um instrumento de reflexão sobre a realidade e sobre o próprio cinema, é o que penso sobre o final (sem fim, por isso infinito) de “Gosto de Cereja”, uma cena inusitada. Contar histórias é uma maneira eficaz de lutar contra a morte.

PARTE III

Um final feliz ou triste talvez seja ainda muito pouco. Sr. Badii deita na cova, conforme o combinado. Espera o taxidermista. A decisão ainda não está tomada. Se levantar o braço, o velho o salvará da morte; se permanecer quieto, o velho o enterrará. Amanhece. Kiarostami corta. O que vemos agora são as câmeras, o cineasta, a equipe de filmagem que se prepara para guardar o equipamento. O filme está chegando ao fim – sem final. O ator se levanta da tumba. Seria esse um fim que versa sobre a própria impossibilidade de um fim? Em que momento um determinado filme começa ou termina? Será possível um final feliz ou triste quando o filme se debruça sobre a vida e a morte? Kiarostami consegue tematizar sobre o próprio cinema neste final curioso? Histórias que nos trazem mais perguntas que respostas parecem concretizar melhor a própria idéia de um infinito que talvez começa quando o diretor grita: “Corta!”.
Caio Ricardo Bona Moreira - publicado no jornal O Comércio - agosto de 2008