domingo, 28 de dezembro de 2008

VIDA QUE INSISTE:
CONSIDERAÇÕES SOBRE “O VENTO NOS LEVARÁ”, DE ABBAS KIAROSTAMI
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O vento nos levará a todos (perdoem-me a silepse). Pode acreditar, meu amigo. A não ser que encarcerem nossas cinzas em um esquife lacrado, o que seria lastimoso. Se tudo existe para acabar em vento e em cine, deveríamos prestar mais atenção em Abbas Kiarostami. Contar uma história ou fazer um filme pode ser uma forma de vencer a morte. É o que pensei quando assisti ao Gosto de Cereja e O vento nos levará, desse brilhante cineasta iraniano. Uma das cenas que mais gostei de Bād mā rā khāhad bord (O vento nos levará) é quando o engenheiro, responsável por fazer uma filmagem numa aldeia do Irã, vai até uma das casas do vilarejo em busca de leite. Desce até o porão, um estábulo subterrâneo, e encontra uma jovem disposta a tirar para ele leite de uma cabra da família. O homem começa a declamar um poema: "Se vier à minha casa /oh, bom senhor,/traga a lâmpada/e uma janela pela qual/eu possa ver/a multidão na rua feliz." A moça não entende o instante poético, quase senil, por excelência. A poesia perpassa toda a aldeia, mas os moradores nem percebem. O filme dá uma dimensão poética a essa ausência.
Sim, o cinema de Kiarostami é mesmo poético. Mas essa poesia não está apenas no poema que o personagem declama no porão da casa. Ela está na árvore solitária que está fincada na paisagem quase desprovida de vegetação. Ela está no passeio de motocicleta preenchido com um fundo natural que faz lembrar “Corvos no Trigal”, de Van Gogh. Está no gesto do menino que guia o engenheiro e sua equipe pela comunidade que começa a fazer parte da vida do forasteiro. Ainda na cena do leite o homem pergunta para a jovem se ela conhece Forough. Ela diz que sim, é a filha de Gohar. Não, ele se refere à Forough Farrokhzad, uma poeta iraniana. Poeta que por sinal inspirou o filme de Kiarostami. O próprio título do filme alude ao poema “O vento nos levará”, que é também é declamado pelo engenheiro na cena, e cuja beleza me impele a transcrevê-lo:

Em minha noite, tão breve, oh pena
o vento vai de encontro às folhas
minha tão breve noite completa-se de atroz angústia
ouve! escutas o sopro das trevas?
dessa felicidade sinto-me estranho.
o desespero já me é costume
ouve! escutas o sopro das trevas?
ali, na noite, algo se passaa lua é vermelha e de angústias
e presas a esse teto,
que ameaça desabar a cada instanteas nuvens,
tal qual turba de choradeiras, esperam o deitar das chuvas,
um momento e nada mais.
por sob a janela, é a noite que treme e a terra a não mais girar
por sobre a janela, um estranho
inquieta-se a mim e a ti
e tu, verdejante, estendes tuas mãos – essas lembranças ardentes –
sobre minhas mãos apaixonadas e confias teus lábios,
cheios que são do calor da vida,
às carícias dos meus lábios apaixonados
o vento nos levará! o vento nos levará!

tradução da versão francesa(original em persa) por Ruy Gardnier


A menina parece indiferente à declamação do engenheiro. Esse desprendimento, que dá o tom de “O vento nos levará”, marca presença em quase todas as cenas do filme. Se me perguntassem sobre o que é o filme, eu diria: sobre a vida. Poderiam intelectualizar com mil e uma e outras colocações: “Não, é um filme sobre o próprio cinema”, etc e tal. Tudo bem, pode pensar o que quiser, uma leitura fascista é a pior das leituras. Vamos por partes, rebobinemos a fita. O engenheiro é incumbido de visitar uma pequena aldeia. Lá, deve aguardar que uma velha morra e filmar o ritual fúnebre que a comunidade ainda mantém no seio de uma secular tradição e nas lágrimas de dedicadas carpideiras. O caso já é mote para Kiarostami desenvolver uma reflexão antropológica sobre as tradições de comunidades periféricas, bem como a relação entre periferia e centro.
Mas poderíamos ir além, mesmo que esse além signifique somente um mergulho no próprio filme. O fato é ocultado da comunidade. O engenheiro conta para seu guia, um jovem iraniano, que a equipe estaria ali para escavar destroços – um grupo arqueológico, por que não? – Cavar a morte significa cavar uma ruína. Mas o inusitado acontece. Aliás, o cinema de Kiarostami é repleto de inusitado, o que não se espera e sempre espreita os bons roteiros cinematográficos. O inusitado é que a morte não acontece, o que impacienta toda a equipe, com exceção do engenheiro, que parece ter aprendido a conviver com a vida e com a aldeia. Acredito que poderíamos “ler” o filme a partir da leitura do poema de Forough Farrokhzad. Em meio ao sopro das trevas, o calor da vida. O cinema como aquele estranho que inquieta-se entre mim e ti. Depois desse contato, um outro que se precipita numa lembrança ardente sobre mãos apaixonadas: em Kiarostami, somos reféns de uma poesia que nos chega estranha e, ao passo que acontece, nos incendeia. São poéticas as palavras? Talvez. Até a morte pode ser poética quando está a serviço da vida.
Por isso um título tão sugestivo: “O vento nos levará”, como leva o osso que o engenheiro mergulha sem sentido no pequeno riacho. Acho que o poema é uma síntese do filme, assim como o filme pode ser uma síntese do poema: É a vida que insiste em sobreviver, como as imagens do cinema de Kiarostami. Perdoem-me o discurso apaixonado. É que, mesmo hesitando, só consigo falar sobre as coisas que amo.
c.moreira

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

AMANDO O SÉCULO XIX NEM SEI SE COM CARÍCIAS:
O IDO E O VIVIDO COMO SEMENTE DO PRESENTE, OU MESMO VICE-VERSA



Em agosto de 2004, numa entrevista ao jornal Rascunho, Wilson Bueno afirmou que com o livro Amar-te a ti nem sei se com carícias, lançado naquele ano, pretendeu se aventurar pela lentidão do final do século XIX e início do XX justamente para inventariar o ido e o vivido e assim lançar uma ampla visada a este “nosso mais que aflitivo início do terceiro milênio”. No livro, um dos mais criativos escritores contemporâneos do Paraná, além de recriar o ambiente carioca dos tempos de Machado e da transição da Monarquia para a República, faz aquilo que poucos literatos têm coragem para fazer: um amplo mergulho na linguagem. Isso não significa que Wilson Bueno reconstitui apenas o vocabulário da época. O mergulho é mais profundo. Ele reconstrói um certo ritmo, uma cadência sugestiva, por meio de um manejo magistral na sintaxe da época. Nesse sentido, Bueno poderia ser considerado um exímio pesquisador da língua. Algo semelhante ele já havia feito em Mar Paraguayo, belíssimo livro que tive o prazer de ler em 2008. Nele, o autor desenvolve uma hibridização entre a língua portuguesa, espanhola e guarani. Tal mistura, pungente na fronteira entre o Paraná e o Paraguai, incitou Bueno a “dar uma resposta estética ao histórico isolamento em que se encontram submergidas as línguas do continente hispano-americano”, segundo o próprio autor. E agora que acabo de ler Amar-te a si nem sei se com carícias, sinto necessário anotar aqui alguns apontamentos de leitura. Numa espécie de prólogo, o escritor afirma ter encontrado um manuscrito na demolição de uma aristocrática casa no bairro de Botafogo. Um legítimo manuscrito do final do século XIX que retrata memórias do narrador situadas entre 1850 e 1914, aproximadamente, e que trazia como assinatura apenas duas iniciais: L. P. Escrito provavelmente por Leocádio Prata. Mas é justamente aí que o grande jogo, proposto por Bueno, inicia. A começar pelas duas outras grandes personagens que compõe o enredo: Lavínia Prata, esposa do “possível” narrador, e Licurgo Pontes, conhecido de Leocádio e “possível” amante de Lavínia. Triângulo amoroso escrito à maneira de Machado de Assis, a quem se atribui a epígrafe do livro, extraída de Dom Casmurro: “O maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado”. Aliás, Machado poderia servir de pano de fundo para a nossa leitura do livro, não apenas pela presença de capítulos curtos, à maneira de um de seus guias, Xavier de Maistre, mas porque, em vários momentos, o narrador interpela o leitor, mesmo defendendo a idéia de que nunca haverá tal leitor, pois o manuscrito seria queimado logo após a sua conclusão. Quem já leu Machado sabe que tais vocativos não são despropositais. O jogo proposto por Bueno se dá por criar uma narrativa cujo autor é tão incerto quanto o próprio século XIX. Não sabemos por qual L.P. o texto foi escrito. E mesmo sendo escrito por Leocádio Prata, o livro bem poderia ter sido corrigido por Licurgo Pontes, ou Lavínia Prata. Cada um retratando-se aos olhos de Leocádio da maneira como bem quisesse. De maneira que todas as memórias que compõe a narrativa devem ser tomadas como uma ficção que não sabemos de onde vem. Os acontecimentos bem poderiam ter sido recriados por cada um dos três. Cabe ao leitor optar por um caminho, mesmo sabendo que tal caminho pode ser inútil, talvez não nos levando a lugar algum, tal como os mistérios da dissimulada Capitu.

Atente-se para o fato de que no livro, há certo exagero no uso de determinados termos que já não eram comuns na literatura do final do século XIX. Mas isso é proposital, afinal de contas, pelo que parece, o escritor não pretende reconstituir o tempo e a língua como um historiador, ou um filólogo, mas sim criar um certo “clima do séc. XIX”, que não deixa de ser também caricatural. Assim, o livro passa a ser não só sobre o século XIX, mas também sobre o século XX, sua transição para o XXI, o nosso tempo, o que fundamenta o argumento de Bueno apresentado no início do texto: “lançar uma ampla visada a este nosso mais que aflitivo início do terceiro milênio”. O que se mostra, então, na narrativa, é um tempo dúbio, para usar uma expressão do narrador do livro: “Ora, ora – os tempos são dúbios e é deles a inconseqüente matéria com que nos agarramos, filhos diletos do século XIX”. Ainda na entrevista concedida ao jornal Rascunho, Bueno esclarece a questão: “Por mais que eu, um autor do século 21, intente reproduzir, digamos, a linguagem dos oitocentos, estarei invariavelmente traindo esta mesma linguagem, introduzindo, queira ou não, a dicção de meu tempo. (...)”. Se tomarmos a afirmação ao pé da letra, concluiríamos que o tempo e a língua formam a matéria do escritor. Mais importante que a “história-estória”, propriamente dita, é a maneira como Bueno opera a linguagem em sua literatura, sem desconsiderar a interpenetração de tempos e línguas – o que poderia enquadrá-lo numa estética neo-barroca (perdão,não gosto muito do termo!) - numa proposta literária. Isso,a meu ver, não é pouca coisa.

c.moreira

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

A VOLTA AO DIA EM 80 CORTÁZARES

Tenho para mim que títulos de textos e livros sempre dizem muito sobre seus escritores. Revelam, muitas vezes pelo avesso do que dizem, pelas beiradas, algumas margens de indecisão, posições, perspectivas, toques, sussurros e dicas sobre aquele a quem não temos acesso, senão pela mão de um fantasma maligno. Manoel Carlos Karam, por exemplo, sempre foi ótimo em títulos: Comendo bolacha Maria no dia de São Nunca, Pescoço ladeado por parafusos, ou simplesmente Cebola, não menos original, como Encrenca. Muitas vezes, o mais simples revela o mais complexo, assim como um universo pode caber numa simples cabeça de alfinete: Metamorfose, O estrangeiro, A Náusea, O castelo, A Montanha Mágica. Com títulos, Julio Verne foi capaz de evidenciar sua imaginação, convidando o leitor a viajar com ele pela lua, pelo mundo num balão, pelo centro da terra. A partir de A volta ao mundo em 80 dias, Julio Cortázar, esse enormíssimo cronópio, elabora A volta ao dia em 80 mundos. Em ambos, a viagem. Que há em comum? O extraordinário. O título parodiado por Cortázar explicita uma das noções básicas da literatura para o mais francês dos argentinos nascido em Bruxelas (esse fato causa uma mescla de surpresa, riso e estranhamento: creio que los hermanos, no fundo, nunca perdoarão o mago de O Bestiário por isso. Argentino é só quem nasce na Argentina? E o filho dos astronautas, que veio ao mundo, ou melhor, à lua em uma estação espacial? É humano aquilo que não nasce na terra?)

O título, de certa forma, nos revela o que é a própria literatura, para Cortázar: Vários mundos em um. A literatura como criação de novas e mágicas passagens,outras realidades. Novo sistema do pensamento que pode ser encontrado no mais cotidiano e banal dos acontecimentos. Ou não seria assim, o sobrevôo de uma mosca, que espevitada invade nosso quarto, a guiar-nos os olhos com espanto pelo gesto quase vazio de suas asas, ou o miado macabro de nosso gato preto escondido dentro da parede, prenhe de mistérios e vinganças – poderíamos chamá-lo de Theodoro Adorno, sim, por que não? O louco Gregório, não o papa, mas a barata limpando seu corpo depois de retornar do inferno, o escritório em que Kafka batia cartão.

Em 1967, Cortázar reuniu vários textos, muitos dos quais já publicados em livros, jornais e revistas. São contos, ensaios, poemas, frases, fotos, sustos, lembranças, assombros, ocasiões, encontros; e montou o que poderia ser reconhecido hoje como um projeto precursor dos atuais blogs, ou mesmo a literatura visual que foi amplamente valorizada no final do XX e início do XXI. É claro que nem todos os blogueiros escrevem com a força de um Cortázar, nem todos são bruxos, o que fazer? No entanto, todos, por mais fracos que possamos ser, cedo ou tarde, acordamos de madrugada soluçando e sorrindo assustados e nos descobrimos um pouco Cortázar. Somos estrangeiros no próprio país, desde que optamos por perder tempo nesse puro gasto (dispêndio) que é escrever sem eira, nem beira, por puro deleite, como quem joga uma bela pelada no sábado à tarde, e continua jogando durante quase todos os dias durante a semana. Não temo mais que isso não nos leve a lugar algum. Mas voltando aos idos de 60, década muito significativa, não apenas para a América Latina, mas para todo o mundo (veja A sociedade do espetáculo, de Guy Debord). Foi nessa mesma época que esse cronópio maluco - falo de Julio Cortázar - inventou uma estranha máquina capaz de nos levar aos 80 mundos que se escondem sob a capa de um só dia.

Mas vamos ao mundo, ou melhor, aos mundos. O livro foi composto em parceria com ilustrador Julio Dias, outro cronópio que tem como primeira letra de seu nome um J, como Cortázar, como Verne, como Cristo, como Lennon, como Hendrix, como Joplin. A lista é grande. Será obra do acaso? Agora nos chega a publicação, em dois tomos, que ganhou tradução para o português, juntamente com O último round, carinhosamente preparada por Ari Roitman e Paulina Wacht. O trabalho, lançado pela Civilização Brasileira, procurou reconstruir o cenário de textos e ilustrações, tal como o próprio Cortázar tinha organizado, na década de 60.

Louvores para um belíssimo ensaio, talvez o maior do livro, sobre Lezama Lima, etrusco de la Havana vieja, por quem Cortázar nutria uma extensa admiração, tão grande quanto o número de páginas de Paradiso. O argentino nascido em Bruxelas sabia muito bem do potencial das associações. Com magistral capacidade de inventar os próprios escritores que admirava, reuniu Verne e Lezama num universo cósmico e telúrico onde se faz alquimia com palavras. Fala de Paradiso: “E por que subitamente Jules Verne num livro em que nada parece evocá-lo? Mas é claro que evoca; para começar, não é o próprio Lezama que fala das vivências oblíquas, não foi ele quem disse em algum lugar que é como se o homem, evidentemente sem sabê-lo, ao girar o interruptor do seu quarto inaugurasse uma cachoeira em Ontário?”.

Nem todos os textos fazem uma referência direta ao autor de Cinco semanas em um balão, todavia ele esta lá, mesmo que escondido por traz de uma ou outra diabrura capaz de ser suscitada apenas por uma literatura fantástica – tomo o sentido literal da palavra (apesar de não acreditar na existência de tal sentido - imagino que a única coisa literal que existe no mundo é o nascer e o morrer). Isso porque Cortázar, mesmo falando de Thelonious Monk, Carlos Gardel, Louis enormíssimo cronópio, ou das crianças de Calcutá, ou do sol de Saigon, ou de Jack, o estripador, está viajando com Philleas Fogg. Nesse sentido, talvez fosse necessário reler A volta ao mundo em 80 dias, não para encontrar Verne ou Cortázar, mas para entender que uma volta ao mundo ainda é muito pouco. É possível surpreender os olhos com a seguinte descoberta: Viajo sem sair do quarto, como Xavier de Maistre, ou mesmo aquele jornalista de Rear Window a espiar curioso seu vizinho, assassino em potencial. O título não poderia ser melhor. Melhor que o título só os 80 mundos em que o mais francês dos argentinos nascido em Bruxelas mergulha para uma viagem sem medo de não voltar.

c.moreira

domingo, 14 de dezembro de 2008

FILHA DE PEIXE PEIXINHA É

Só essa imagem já vale o filme!


Um amigo me falou com atenção sobre Sofia Coppola, a herdeira de um poderoso chefão. Tal pai, tal filha, ou filha de peixe, peixinha é! Esse amigo falou muito bem de Virgens Suicidas. Assisti e gostei. Não só do roteiro, mas de outras coisas que, direta ou indiretamente, estão ligadas a ele. Depois, curioso, aluguei Maria Antonieta, que achei uma jóia tão rara como os diamantes que a digníssima de Luis XVI usava com prazer. Não sei se Maria Antonieta era tão bonita quanto Kirsten Dunst. Acho muito pouco provável, tendo em vista as imagens da rainha que sobreviveram até os dias atuais. E olha que muitas vezes os pintores reais faziam um esforço sobre-humano para melhorar seus modelos. Mas nem Debret conseguiu deixar Carlota Joaquina mais bonita. Aliás, assistindo ao filme, lembrei que tanto Luis XVI, quanto D. João VI são figuras que, segundo os biógrafos, eram medrosos e muitas vezes incapazes de satisfazer sexualmente suas mulheres. O que levava Maria Antonieta e Carlota Joaquina a alimentarem relações extra-conjugais com cavaleiros, amos, conselheiros do rei. Coppola criou uma leitura bastante subjetiva – ora, todas são! – da vida da rainha. Tal fato permite que a cineasta, ao mesmo tempo que instiga uma leitura anacrônica da história (as músicas contemporâneas são mescladas às peças clássicas da época), proponha uma des-leitura da história. Tome nota da cena em que os pés de Maria aparecem em close-up. Ela está experimentando um sapato. Ao fundo, aparece, sutil, porém retumbante, um belo all-star azul. O filme toca com "precisão" os fatos “reais”, pois qualquer tentativa de reconstrução histórica seria fracassada se não se partisse da premissa de que tudo isso é uma grande “leitura”, a história como própria ficção. O que estou querendo dizer é que não vejo com maus olhos as transgressões de Coppola. Pelo contrário, é essa provocação uma das coisas que mais me chamou a atenção no filme, ao lado de um preciosismo visual colorido e sedutor, muito diferente da maioria dos “filmes de época” que pululam no cinema americano, geralmente repletos de um cinza e de uma sisudez que quase todos imaginam ser o traço principal das “pessoas de antigamente”. Outro detalhe que chamou minha atenção é que o filme “pinta” uma Maria Antonieta muito diferente de como foi retratada pelos historiadores. Na película, que parece tocar mais de perto a realidade, - mesmo sendo ficção, ou justamente por sê-lo -, a rainha não é uma vilã que se aproveita do povo carente de pão. É apenas uma jovem sedutora que descobre os prazeres da realeza e por ela está disposta a morrer, perdendo a cabeça ou curtindo a vida adoidada.
Agora, acabo de assistir ao Encontros e Despedidas. Poderia se chamar também Delicadeza, como o filme de Jean Pierre Jeunet. Como diz um amigo, só a seqüência inicial já vale o filme. Mas é muito mais do que isso. O que os três filmes que assisti da Sofia têm em comum? O olhar feminino sobre a realidade. Não me enquadro naquele grupo que defende uma literatura ou um cinema de gêneros; Literatura gay, literatura feminina, etc. Posso estar errado, mas tudo isso me parece pura babaquice. Que sentido tem dizer que a literatura de João Gilberto Noll é gay? E daí? O que isso significa? A literatura dele é literatura e isso basta. E é fabulosa, por sinal (mas deixemos Noll pra outro dia ou para outra noite). Falo que o que há de comum entre os três filmes de Sofia é um profundo olhar feminino sobre a realidade porque as mulheres, bem mais que os homens, têm esse poder. Poderão questionar-me: “Mas e o Almodóvar, também faz isso e não é mulher!”. E quem disse que só mulheres podem lançar um olhar feminino sobre a realidade? Em Virgens Suicidas, percebemos que o universo feminino é bem mais complexo do que parece. E tal complexidade vem de berço. Em Maria Antonieta, descobrimos um personagem que pode não ser a REAL, mas que é demasiado humano. Em Encontros e Despedidas, só um homem maduro e delicado para entender uma jovem carente e delicada. Em ambos os filmes, as mulheres aparecem como sedutoras e carentes. É claro que dizer isso sobre os filmes ainda é muito pouco. Talvez fosse melhor revê-los.

c.moreira

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

TABLEAU PARA VALÊNCIO


Hoje à tarde, quando decidi escrever sobre o Valêncio Xavier, que partiu na semana passada, perguntei para mim mesmo: “Por que sinto tanta necessidade de escrever sobre as pessoas que amo justamente quando elas vão embora?”. Mas, pensando bem, não é a primeira vez que escrevo sobre ele. Imagino que de tudo o que escrevemos sempre fica algo a ser dito, algo que nos escapa, ou mesmo algo a repetir, pois tudo aquilo que se repete, ao mesmo tempo que traz de volta algo que já parecia perdido, traz um pouco daquilo que ficou a ser dito. Preciso contar uma rápida história. No primeiro semestre, que passei em Florianópolis, perdi – ou ganhei, não sei dizer – várias tardes em torno de Valêncio. Não, ele não estava em Florianópolis. Mas a sua presença se impunha dentro de uma biblioteca. Descobri no acervo da UFSC a estranha biografia que Valêncio escreveu sobre Poty. Descobri também uma pesquisa que trazia todas, ou quase todas, as matérias que ele escreveu para a Gazeta do Povo. Que delícia essa descoberta. Passei muitos dias lendo seus textos enquanto deveria estar imerso nos simbolistas. No entanto, curiosamente, estabeleci muitas relações entre as duas coisas. Mas não falarei disso agora, pois estou tomado de um luto feroz. Poucas vezes lamentei tanto a morte de um artista – falo artista porque Valêncio não era apenas um escritor. Não cheguei a chorar como chorei com um amigo e com duas dúzias de cerveja a morte de George Harrisson (TAMBÉM PERDEMOS JAMELÃO). Mister Xavier acharia extremamente careta da minha parte. Mas lamento profundamente, pois Valêncio era um artista notável, que ainda produzia muito, apesar de doente, além de ser uma pessoa muito querida pelos amigos e familiares. Tentei algumas vezes, todas em vão, entrar em contato com o escritor com o pretexto de adquirir uma cópia de uma crítica que escreveu sobre o Agora é que são elas, do Leminski, num pequeno jornal paranaense, na década de 80. Mas acho que no fundo era apenas para conhecê-lo. Ouvi-lo falar apaixonadamente sobre cinema e literatura. Guardo um raro exemplar de A propósito de figurinhas, autografado por ele e por Poty. Nunca liguei para edições autografadas, são fetiches que para mim não fazem sentido. Mas guardo com carinho, como um neto que guarda o canivete do avô, para sempre lembrar que teve um avô. Há alguns meses, escrevi um artigo em que lia os ready-mades do livro das figurinhas como construções da memória, um arquivo de assombros: Valêncio, feito Baudelaire, sempre foi um bom trapeiro. Em seu último livro, o escritor se apropria de uma reportagem do programa Aqui Agora para escrever um conto sobre uma menina morta nua. Mas seus textos que mais me fascinam são aqueles que reconstroem, ou melhor, reinventam um tempo há muito perdido, como Maciste no inferno, em que conta ao mesmo tempo, magistralmente, duas histórias, a do filme que é projetado na tela do cinema e a de um telespectador. O livro me faz lembrar de Pathé-Baby, do Alcântara Machado, que é contado também a partir de fotogramas de um filme de cinema mudo. Aliás, Valêncio escreveu na antiga Cult um artigo sobre esse livro de 1926, uma proposta bastante inusitada e diferente de outras propostas modernistas. Eu queria homenageá-lo nesse texto, mas me faltam palavras e imagens. Talvez bastasse uma colagem de suas fotos, como faz aquele projetor de cinema, em Cine Paradiso. Eu, pequeno como Totó, correria para o cinema para assistir Valêncio e suas histórias. Ele sairia da tela e trocaria figurinhas das balas Zequinha comigo. Espiaríamos a mãe no banheiro, choraríamos a mãe morrendo, tal como Flávio de Carvalho desenhou, contrataríamos uma prostituta japonesa, nos perderíamos bêbados no labirinto do Minotauro, fugiríamos do fantasma de Curitiba, aquele estranho monstro da madrugada, ficaríamos seduzidos pelas musas do cinema pornô paranaense, e abriríamos a porta e apagaríamos aquela vela que se esconde por trás dela e, afoitos, revelaríamos os mistérios do mágico. E tudo seria cinema. A morte apenas uma ficção. Eu encontraria o Valêncio dois dias depois e ele desabafaria: “Estou com as costas doloridas, pois caí de mal jeito depois de ser metralhado e morto por James Lilibrown, o gângster”. “Preciso tirar umas férias e terminar o meu novo livro”. Valêncio sonhava filmar a visita de Che Guevara a Curitiba. O filme começaria com um close-up no pênis de Che, mijando no banheiro da rodoviária. Só Valêncio mesmo!

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

DIGA-ME O QUE VÊS E TE DIREI QUEM ÉS



Escrevo este texto tocado pela leitura do post do Luisandro M. De Sousa - http://beatbossa.blogspot.com/2008/11/blindness.html - sobre o filme Ensaio sobre a Cegueira, do Fernando Meirelles, inspirado no livro do Saramago. Diz o Luisandro: “Senti que faltou um pouco da densidade que os diálogos têm no livro, minha impressão é que se fala muito pouco no filme, é um filme que valoriza o visual, é um filme pra ver, não para ouvir”. É o que pensei. Quase um paradoxo o fato de um livro como esse migrar para um cinema que prioriza o visual, já que ver não é tão importante quanto DAR A VER, como diria João Cabral de Melo Neto, que aliás, sofreu com a cegueira. J. L. Borges soube muito bem disso, tanto é que louvou a própria cegueira. Outro escritor que no fim da vida parou de ver, mas não de enxergar foi o Padre Antonio Vieira, que por sinal, alimentou uma obsessão pela metáfora do VER em vários de seus sermões. O tema da cegueira é uma constante na literatura portuguesa. Basta lembrar que reaparece quatro séculos depois do nascimento do imperador da língua portuguesa, como Fernando Pessoa chamaria Vieira. Falo do livro A Eternidade e o Desejo, de Inês Pedrosa, que recria Vieira, nos olhos de uma professora cega apaixonada por sua obra, a partir da leitura do Sermão de Nossa Senhora do Ó, um dos meus prediletos.
Faz uns 5 anos que li o livro do Saramago. Provocou em mim um choque semelhante ao que causou Kafka, em Metamorfose. Lembro que uma vez emprestei o livro a uma aluna, que se apaixonou pela literatura, e confessou que depois de ler o livro, começou a temer apagar a luz do quarto antes de dormir. Tenho certeza que se tivesse assistido ao filme antes não teria tido a mesma impressão. Lembro que uma das coisas que pensei na época foi na impossibilidade de uma adaptação de qualquer livro desse escritor português, sem que se perca um pouco ou muito, isso depende da VISÃO de cada um. Por isso achei perfeito o nome escolhido por Meirelles: BLINDNESS. O filme é outra coisa. Não é Saramago. Talvez por isso o único Nobel português tenha gostado tanto, já que qualquer tentativa de copiá-lo seria fada de imediato ao fracasso. E profanar o livro deve ser também um dos objetivos de uma adaptação (profanação). Pior cego é aquele que só quer ver o filme. Por isso gostei tanto.
O leitor que não vá ao cinema pensando em comparar as coisas, pois são bem distintas, com exceção da história ser a mesma, o que não quer dizer quase nada.
De todas as passagens do livro, para mim, a mais impressionante é aquela em que a mulher do médico se depara com uma igreja onde os santos estão com os olhos vendados. Impossível VER isso no filme (apesar de que a cena aparece), senão DANDO-A a VER, como no livro:
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“(...) não podia ser verdade o que os olhos lhe mostravam, aquele homem
pregado na cruz com uma venda branca a tapar-lhe os olhos, e ao lado uma
mulher com o coração trespassado por sete espadas e os olhos também tapados
por uma venda branca, e não eram só este homem e esta mulher que assim
estavam, todas as imagens da igreja tinham os olhos vendados (...) Não me
acreditarás se eu te disser o que tenho diante de mim, todas as imagens da igreja
estão com os olhos vendados (...) pode ter sido o próprio sacerdote daqui, talvez
tenha pensado justamente que uma vez que os cegos não poderiam ver as
imagens, também as imagens deveriam deixar de ver os cegos, As imagens não
vêem, Engano teu, as imagens vêem com os olhos que as vêem”.
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Mas o que quero dizer para finalizar é que o filme, para mim, é ótimo. No que é possível ver e fazer, com a lente da câmera como uma prótese do nosso próprio olhar, Meirelles tocou com presteza os olhos do livro de Saramago. O que vemos no livro e não vemos no filme pode ser um sintoma de uma profanação, ou mesmo de uma inquietação do VER, que, às vezes, só um livro traz.
SOBRE “THE DREAMERS”, DO BERTOLUCCI


Você tem dois minutos para fazer um poema antes que a revolução exploda e tudo vá pelos ares. Há duas maneiras de fazer uma revolução:

* Trancafiar-se com dois loucos numa casa cheia de portas, vinhos de um pai poeta, discos e livros: um corredor fantasiado de biblioteca – fazer amor com a menina na cozinha enquanto o irmão dela frita um ovo e espia indiferente seu gemido de gata no cio.

* Sair para a rua e enfrentar a polícia francesa.
Na certa, a segunda opção parecerá mais válida para os camaradas. Além dos infortúnios, causará a impressão de que tua vida não foi em vão. Os pobres homens acreditam que a primeira opção não é revolucionária. Che e Fidel nunca quiseram ficar em casa ouvindo Buena Vista Social Club ou mirando el malecón. Os sonhadores acreditaram que estavam transformando o mundo em maio de 68. Mas não transformaram? Mas e o bom cinema, mesmo aquele que o mais engajado não consideraria de longe revolucionário, também não transformou o mundo? Todo bom filme é uma bomba prestes a explodir. Aí pergunto: “Que revolucionário é esse que pega em armas para transformar o mundo antes mesmo de transformar a si próprio?” Lamento dizer, mas toda ARTE, com letras maiúsculas, mesmo sem ser engajada numa causa particular (as causas são todas tão estranhas a ela) é REVOLUCIONÁRIA.
Já paraste para pensar que em “Os sonhadores”, do Bertolucci, os protestos de 68 aparecem somente no início e no fim do filme? Que revolução é essa que se opera entre sexo, drogas e livros no apartamento do casal de gêmeos siameses que abriga o jovem americano enquanto o mundo pega fogo lá fora?
Muitas coisas a falar sobre esse filme, que ainda está fazendo um eco aqui na minha cabeça (faz uma semana já que assisti ao filme):

* A câmera dança como Josephine Baker pela casa. Não, pensando bem, é a casa que dança, não desenfreada como a exótica Josephine. Dança sutil, como uma bailarina numa passagem do Lago dos Cisnes. O apartamento, um labirinto que dança, assim como a própria História. Vamos e venhamos: 1968, como disse Zuenir Ventura, foi o ano que não terminou.

* Pequenas coisas, detalhes que fazem a diferença: um cinzeiro da década de 60, o bico do seio grande e rosado de Isabelle, seu choro convulsivo depois de uma transa casual, os três corpos na banheira, a luva preta que usa quando finge ser Vênus de Milo. O contraste que se explicita em Isabelle entre o despudor da época e a pureza virginal de uma menina quase santa. A história é bem mais que um protesto.
Por que digo tudo isso? É simples: porque insistem em ler uma obra de arte como essa (The Dreamers é uma obra de arte) a partir apenas de uma perspectiva sócio-política. PORRA! Não será possível ler o mundo de outra maneira?

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

PROFANAÇÕES

(Ilustração: Rene Portocarrero)


Para Dante
Tinha um poeta nel mezzo del camin,
Nel mezzo del camin tinha um poeta

Para Pessoa
O que em mim escreve está mentindo.

Para Maiakóvski
Depois de duas doses de tua poesia
já me sinto embriagado.

Para Leminski
Com quantas palavras se faz um louco?
Rimar com classe a classe gosta,
Mas ser assim ainda é muito pouco

Para Mallarmé
Lanças os dados
E esperar as rimas

Para C.D.de Andrade
E agora, Drummond?

c.moreira