quarta-feira, 15 de julho de 2009

Dentes de Brancura Igual

Depois de assistir à adaptação de O menino do pijama listrado, de John Boyne, levado para as telas do cinema por Mark Harman, e tendo como um dos roteiristas o próprio Boyne, lembrei imediatamente de um dos Poemas em Prosa, de Charles Baudelaire. Explico. Mas antes devo confessar que não li o livro, por isso não posso julgar a adaptação. Aliás, por que deveríamos pensar que a única coisa que devemos fazer em blogs, artigos, resenhas e outras mumunhas mais, é “julgar”? Não sou juiz, nem padre, nem diretor do tribunal de contas. E esse “espaço virtual” tem vocação para desmesuras medidas e desleixos disléxicos. Quero mesmo é mergulhar no cinema sem sair ileso dele, quero me lambuzar de encantos. Seguindo as trilhas abertas por Benjamin, talvez fosse possível mudar o nome do blog para Caleidoscópio, ao invés de Baú de Fragmentos. Não que não sejam fragmentos, são sim! E é sempre um bla bla blá que por mais (des)periódico que seja, me dá um grande prazer. No entanto, um baú guarda segredos e este blog não. Não guarda nada. Pelo contrário, pretende fazer voar todas as letras. O que está aqui não pode ser contido. Mas enfim, voltando ao “Menino do pijama listrado”. A única coisa que eu gostaria de falar é que quando assisti ao filme, lembrei de um dos poemas em prosa que Charles Baudelaire publicou em 1868, alguns anos depois de lançar "As Flores do Mal" . O poema em prosa é “O brinquedo do pobre”. No filme, o menino rico é Bruno. No poema em prosa, ele não é nomeado, mas parece guardar as mesmas características da personagem do filme: “Numa estrada, por trás das grades de um enorme jardim, no fundo do qual aparecia a brancura de um lindo castelo batido pelo sol, havia uma criança terna e bela, vestida com essas roupas do campo tão cheias de coqueteria”. Mas há um outro menino, sem o qual filme e poema não poderiam existir: “Do outro lado da grade, na estrada, entre os cardos e urtigas, estava uma outra criança, suja, mirrada, fuliginosa, um desses párias de fedelhos em que o olho imparcial, se o desbastasse da repugnante pátina da miséria, como o olho do conhecedor adivinha uma pintura ideal por debaixo do verniz de sejeiro, descobriria a beleza”. Essas são palavras de Baudelaire. Já li comentários sobre esse poema que defendiam a idéia de que o menino rico poderia ser lido como a prosa e o menino pobre como a poesia...e o rato que o menino guardava dentro da caixa (como um precioso brinquedo que ganhara dos pais) poderia ser entendido como o poema em prosa, um gênero que suplanta todos os gêneros, que não cabe em si mesmo, portanto alguma coisa informe, traço fundamental de uma poética da modernidade, que não se enquadra em um determinado gênero, pois sobra, não cabe, não pode ser contido em um baú, em uma concha, em uma gaveta. O detalhe mais interessante do poema de Baudelaire vem no último parágrafo: “Através dessas grades simbólicas entre dois mundos, a estrada e o castelo, a criança pobre mostrava à rica o seu brinquedo, que a segunda examinava avidamente, como um objeto raro e desconhecido. Ora, esse brinquedo agastado pelo sujinho, que o sacudia e balançava numa caixa gradeada era um rato vivo! Os pais, certamente por economia, haviam extraído o brinquedo da própria vida”. As grades simbólicas que aparecem no poema aparecem também no filme, mas nele não são apenas grades simbólicas, que dividem o judeu do menino alemão. São as grades de um campo de concentração. Algo que chama a atenção no filme é que, em tempos em que virou moda a obsessão pelo resgate do passado, a mesma obsessão de que nos fala Beatriz Sarlo em “Tempo Passado”, o filme parece tratar do assunto (2° Guerra Mundial) de uma maneira bastante diferente. A guerra aparece tão somente através dos olhos do menino alemão que fitam a cerca (tal como no filme O ano em que meus pais saíram de férias), os habitantes da fazenda que, estranhamente, usam “pijamas o dia todo”, e os cartazes anti-semitas que a irmã colou na parede do quarto. As bombas, os homens sem pernas, a morte, tudo isso não aparece, e por isso, justamente, ela é tão pungente e assustadora no filme. É a morte horrenda que aparece com a fumaça sutil, densa e fedorenta, que sai dos fornos crematórios do campo. Mas forte do que as imagens de guerra que aparecem geralmente em quase todos os filmes de guerra são os olhos do menino judeu, que oscilam entre a saudade do pai, a inocência, o medo e a incompreensão dos fatos. Tão profundo quando o menino filmado por Benigni em A vida é bela. Para finalizar – muitas coisas poderiam ser ditas, tudo deveria ser dito, no entanto, ando com pressa, fazendo tudo pela metade – vale lembrar que o narrador do poema em prosa de Baudelaire é aquele que sai passear pela rua e se depara com os dois meninos que suplantam diferenças raciais, econômicas, sociais graças ao rato que o menino pobre possui: “As duas crianças riam fraternalmente uma para a outra, com dentes de brancura igual”. É o campo de concentração que separou - uniu - as duas crianças do livro de John Boyne. O menino rico, filho de um oficial da SS sai do centro de Berlim para morar no campo – ao lado do Campo – antes de acabar também no Campo, administrado por seu pai. O menino judeu sai não se sabe de onde e vai também para o Campo, e depois disso não se sabe para onde – o inferno provavelmente era ali. “Dentes de brancura igual”. Lembrem disso! No cinema, somos nós que passeamos, tal qual Baudelaire em algum canto de Paris. E que rato precioso é esse que o menino no cinema guarda com carinho e afeto, e que seduz também o menino rico? A infância, que, tal como o rato de Baudelaire, era a única coisa que o menino ainda possuía. A infância dentro de uma caixa de sapatos. A infância condedada ao campo, como rato à ratoeira
c.moreira