segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A primeira, a segunda e a terceira mulher

Apontamentos sobre um livro de Miguel Sanches Neto

Costumam dizer que todo crítico literário e todo professor de literatura é um escritor frustrado. A afirmação é errônea. Bastaria lembrar que grande parte da boa literatura brasileira contemporânea vem sendo produzida justamente por professores universitários. Silviano Santiago, Milton Hatoum, Cristóvão Tezza, Veronica Stigger, Marcos Siscar, só para citar alguns. Todos professores. Mas há um nome que não poderia faltar nessa lista – apesar de que uma lista - todo e qualquer paideuma -, sempre é uma coisa muito questionável. Falo de Miguel Sanches Neto, que além de professor de literatura, da UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa), vem se destacando como um dos principais escritores e críticos do nosso país. Entre 2000 e 2002, o autor desenvolveu um trabalho importante na direção da Imprensa Oficial do Paraná. Ele foi responsável pela louvável reedição da revista Joaquim, publicada originalmente na década de 40, por Dalton Trevisan, e estudada por Sanches Neto em sua tese de doutorado. Outro trabalho que merece destaque foi a organização em livro dos contos que haviam sido publicados na década de 70 em Ficção, uma revista praticamente esquecida pelo grande público.


Miguel Sanches Neto já se aventurou em diversos gêneros literários: escreveu poesias, contos, crônicas e romances. No entanto, como bom escritor que é, sabe que os gêneros são sempre movediços. Os gêneros existem para serem experimentados. Prova disso é o seu mais recente romance, A primeira mulher, lançado em 2008, e considerado por ele como um romance “quase” policial. Segundo Vilma Costa, em artigo publicado no jornal Rascunho, o suspense é um dos fios desse tecido textual, mas não tem um fim em si mesmo, não pretende o grande desfecho de soluções acabadas. Nesse sentido é “quase”: “Não porque fique devendo, mas porque é mais que isso, outros fios sustentam a trama e ganham importância, tanto na constituição da temática amorosa, quanto na discussão da linguagem que experimenta dizer o indizível”. Esse universo do “quase” poderia passar despercebido por um leitor desatento.
Na trama, um professor de literatura, Carlos Eduardo, reencontra uma antiga namorada, Solange, agora candidata à prefeita da cidade. Ela está sendo ameaçada e pede proteção ao professor; pede também que a ajude a encontrar o filho desaparecido. Ao passo que se envolve novamente com a mulher, deixando para trás as aulas na universidade e a vida relativamente comum que levava antes de reencontrá-la, Carlos mergulha numa investigação que é apenas mote para o desenrolar da narrativa. Isso porque outras veredas se bifurcam e outras mulheres também estão em jogo: Lílian, sua aluna e namorada - pelo menos a daquele ano letivo -, e dona Ilza, a mãe carinhosa que vive em um mundo bastante diferente do filho. Nesse sentido, talvez pudéssemos falar não apenas da “primeira mulher”, mas da “segunda” e da “terceira”. Há um momento muito especial no livro, as passagens de um poema que o professor de literatura considera uma versão autoral do “Cântico dos cânticos”. Esses fragmentos que permeiam a obra nos fazem lembrar a paixão de um pastor árcade, Dirceu cantando Marília. Eles parecem sobrar no conjunto do livro. No entanto, se prestarmos atenção, essas sobras, esses restos, esses suplementos, são tão importantes quanto os fatos propriamente ditos. De um lado, operam um corte na narrativa, uma fissura, potencializando um estranhamento, uma destituição, “o saber de uma ausência”, como nos diria o crítico Raúl Antelo, já que na linguagem da poesia a destituição faz o sujeito se confrontar com o lugar vazio da representação. De outro, redimensionam a própria narrativa - dialogando com ela - já que a prosa também é tocada pelo vazio: a memória do narrador, assim como uma moeda, possui sempre dois lados: a lembrança e o esquecimento. Em Carlos, a lembrança da juventude escapa, assim como escapa a primeira mulher que, depois de muitos anos, já não é a mesma. Mas ao invés de falar sobre o livro, ou de tentar em vão resumi-lo, prefiro convidar o leitor a abrir as páginas de A primeira mulher e ler. A primeira mulher também é nossa.

Se falei que o assunto do livro é apenas mote, isso não significa que o enredo não seja interessante. Pelo contrário. Sanches Neto consegue explorar com destreza aquelas duas dimensões da narrativa abordadas por Michel Foucault no ensaio “Por trás da fábula” (que tratei em um texto anterior sobre Chico Buarque), de 1966. Trabalha com a dimensão da fábula (episódios, personagens, acontecimentos) e com a dimensão da ficção (regime da narrativa, os modos de contar, de “cortar e repetir”, usando aqui uma terminologia do filósofo Gilles Deleuze a respeito do cinema). Nesse sentido, o escritor paranaense desenvolve uma literatura que pensa a própria literatura, “possibilitando uma discussão do processo de produção, sua fisionomia de ensaio, experimento, arte, artifício”, segundo as palavras de Vilma Costa. O que faz com que o romance “A primeira mulher” participe de um contexto muito especial da literatura do presente, produzida por escritores como Bernardo Carvalho, Wilson Bueno, Rubens Figueiredo e João Gilberto Noll, produtores de uma literatura que, a despeito de suas particularidades, aponta com força para a desterritorialização do sujeito, para as armadilhas da memória, para as aporias, para os impasses com os quais convive a narrativa, para as experiências com a palavra, procurando caminhos para a sobrevivência do literário. E isso não é pouca coisa.
c.moreira

A cidade, a ilha, o homem

Até que enfim foram reunidos em livro os contos de Milton Hatoum. A antologia, que leva o nome de um dos textos do livro A cidade ilhada, traz o sabor dos romances já publicados por esse excelente escritor manauara. Alguns contos já eram conhecidos desde a década de 90, como “A ninfa do teatro Amazonas” e “A natureza ri da cultura”, publicados inicialmente no Caderno Especial, do jornal O Estado de São Paulo, em 1996. Outros são inéditos, como “Dançarinos na última noite” e “O adeus do comandante”. Outros tinham sido publicados apenas na Europa, como “Dois poetas da província”. Gostei especialmente de “Varandas da Eva”, a rememoração da primeira aventura sexual de um jovem e de seus amigos. Talvez seja um episódio das memórias do próprio Hatoum. No entanto, não podemos esquecer, o escritor tem consciência da literatura como um jogo com o tempo e com os fatos. Quando Milton Hatoum lançou Dois Irmãos, romance que considero um dos mais importantes da literatura produzida no Brasil nos últimos anos, foi entrevistado pela professora Susana Scramim, na antiga Cult. Perguntado sobre a questão da memória como elemento fundante da sua narrativa,o escritor respondeu que as memórias se desentendem, lembrando um personagem de Guimarães Rosa: “Quando um narrador ou personagem se lembra de tudo, então o passado vira um inferno, ele vive o tempo todo em vigília, vive o pesadelo da insônia, como aquele Funes, o memorioso, do conto de Borges. Talvez para um ficcionista a memória seja sinônimo de imaginação”.

Um detalhe que chama a atenção na obra de Hatoum, e que pode ser percebido com força em A cidade ilhada é a questão do território, que a professora Susana Scramim já tinha apontado em Dois Irmãos e Relato de um certo Oriente – a geografia de uma narrativa que “revela um território constituído por uma malha cultural variada”. No livro de contos esse aspecto pode ser percebido na constante troca de experiências entre personagens de culturas diferentes: o poeta Albano que viaja para a França para tentar a carreira literária, enquanto Zéfiro, um poeta mais sábio e mais velho, nunca saiu do país, no conto “Dois poetas da província”. A jovem estrangeira que seduz o narrador, no conto “Uma estrangeira em nossa rua”. O japonês que se apaixona por Manaus, em “Um oriental na vastidão”. O jovem subversivo que é exilado com a mulher na França, em “Bárbara no inverno”. Entre outros exemplos igualmente importantes. Os personagens de Hatoum, em “A cidade ilhada” estão sempre indo e vindo, formando a sua identidade a partir do contato com o outro. É o caso de “Dois tempos”, em que o narrador, reencontra a infância, o tio e a professora de piano, depois de voltar para a sua terra natal. Mais do que formar a identidade a partir do outro, os textos de Hatoum sugerem a transformação a partir do contato, da experiência com o outro. Nesse sentido, o título do livro é sintomático. Diante dos seus contos estamos diante de cidades e pessoas. Em ambos os casos, ilhas. Não à toa, Luiz Costa Lima, em um texto sobre Dois Irmãos, intitulado “A ilha flutuante” (Folha de São Paulo, 12 de Agosto de 2000), tenha percebido o mito criado e fecundado por uma obra que pressupõe uma matéria social bem diferente da ficção do Primeiro Mundo: “A casa que se destrói conta de uma sociedade absolutamente sem amarras, em que repontam poucas ilhas, que se fazem e desfazem”. Hatoum fala da ilha próxima ao igarapé, mas essa ilha é pretexto para falar de outra, aquela que transforma a vida do cientista Lavedan, que perde a esposa para um dançarino, no conto que dá nome ao livro. Nesse caso, a natureza ri da cultura (título de um outro conto do livro), pois a despeito de “dissertar sobre pássaros, símios e mariposas, ou orquídeas raras e a arquitetura móvel dos cupins”, o cientista aprende que o Bosque da Ciência nem resume toda a felicidade: “Dois dias depois, Lavedan voltou sozinho para a Europa”. Numa carta, ele escreveu que deixou Manaus e a esposa por causa de um dançarino: “Estavam numa festa do Shangri-Lá com a turma de notívagos intrépidos, e dançavam mambo e bolero numa atmosfera impregnada de álcool, suor e lança-perfume. O salão azulado do Shangri-Lá – uma maravilha, sublinhou Lavedan na carta – os envolvia, e eles trocavam de parceiro a cada música, bebiam no gargalo o melhor uísque e se enrolavam de tanto rir e falar alto, embalados pelo brilho extático dos metais. No clímax dessa euforia, um homem altivo e sério demais atravessou o salão com passos meticulosos, aproximou-se da mesa e, com um gesto reverente, pediu para dançar com Harriet”. O resto não preciso dizer.
Leyla Perrone Moisés, comentando a obra de Milton Hatoum, observou que a Manaus do escritor é uma ruína pululante de vitalidade: “O cheiro da floresta ali se mistura com o cheiro de lodo. A Cidade Flutuante (...) poderia ser uma metáfora dessa cidade suspensa na memória do romancista, cidade cujas misérias ele desejaria esquecer, e de cujos encantos ele se mantém cativo”. Aliás, a questão da ruína é recerrente em sua obra. Bastaria lembrar que a revista Babel, em 2000, publicou o seu poema “Amazonas: palavras e imagens de um rio entre ruínas”, em que Hatoum canta um rio que passeia por uma natureza caída: “Tua história é a remoção / a tua face em planície / já desabriga sonhos, e o úmido / se esvaiu no árido, se infiltrou / nas ranhuras de tantas máscaras”. No entanto, mesmo apontando para ruínas da natureza, do homem, da família, da instituição, resta um doce guardado na boca, uma beleza, uma flor (talvez de maracujá), que sobrevivem na paisagem de uma cidade e de uma literatura que mantêm cativo o escritor.


c. moreira

O filho da mãe e o filho da puta

Dias atrás, recebi a visita de um amigo. Conversamos, como sempre, sobre literatura, mulheres e outros bordéis. Ele viu na minha prateleira os livros do Bernardo Carvalho – todos, com exceção de O sol se põe em São Paulo, que ainda não li. Fiquei surpreso quando comentou que não gostava nem um pouco dos livros de B.C. Achava-o metido à cosmopolita, “presunçoso demais”, como “a maioria dos paulistas”. Só faltou chamá-lo de “filho da puta”. Não concordo com a afirmação desse amigo, que por sinal é um ótimo lingüista e exímio professor. Difícil julgar a pessoa pela obra. Por exemplo, ao ler Amor Natural, de Drummond, não posso dizer que o poeta era pervertido, ou julgar Dalton Trevisan um tarado por ter escrito A polaquinha e O vampiro de Curitiba. Agora se a literatura de B.C. é presunçosa, isso são outros 500. Presunçoso é aquele que é pretensioso, orgulhoso, metido. Acho que não é o caso da literatura de Bernardo Carvalho. É claro que o projeto literário do escritor, que também é colunista da Folha de São Paulo, é ousado para os padrões brasileiros, estando muito mais próximo do labirinto narrativo de Jorge Luis Borges, e de outros escritores cosmopolitas, do que das palmeiras e dos sabiás de Gonçalves Dias. Acostumados com “macumbas para turistas”, “Tietas”, “Gabrielas”, e outros carnavais, tomamos um susto com os jogos literários propostos pelo autor de Nove Noites e Mongólia. Jogos literários que contam sempre com personagens desterritorializados, sempre em movimento, em constante deslocamento.
Anderson Luis Nunes da Mata, no texto “À deriva: espaço e movimento em Bernardo Carvalho”, observa que os personagens do escritor estão sempre em trânsito: “migrando, viajando, ou, simplesmente, passando, esses sujeitos não têm uma territorialidade definida”. Em Nove Noites, o narrador empenha-se numa viagem ao Xingu à procura dos passos de Buell Quain, um antropólogo americano que se matou quando tentava voltar para a civilização. Em Mongólia, um diplomata brasileiro recém-chegado da China é enviado à Mongólia para procurar um fotógrafo desaparecido. Em Teatro, romance dividido em duas partes, o narrador paranóico, metido à terrorista, foge para o país de seus pais. Nas palavras de José Geraldo Couto, este não é um romance sobre a paranóia; “é um texto cuja própria construção reproduz o mecanismo da paranóia, entendida como tentativa de dar sentido ao mundo a partir da leitura parcial e distorcida de seus fragmentos”. Diga-se de passagem, um significado que nunca é consumado. Em todos os casos, a impossibilidade de atingir o real é sintoma de uma narrativa que conduz o leitor a jogos narrativos cada vez mais intrincados.

Acabo de ler O Filho da Mãe, seu mais recente romance. Em 2007, o escritor passou um mês em São Petesburgo para escrever uma história de amor para a coleção “Amores Expressos”, idealizada pela Companhia das Letras. Eduardo Simões, na Folha de São Paulo, lembrou que Carvalho, quando estava em São Petesburgo, foi influenciado pelo livro “Vida e Destino", de Vassili Grossman: “O enredo de Grossman - que fala, entre outras coisas, de uma mãe forçada a despedir-se do filho e do amor de uma jovem, em meio à Segunda Guerra - guardava coincidências com a trama que Carvalho tinha em mente: uma história de amor (aqui, entre dois homens) e uma reflexão sobre o amor maternal e sua relação com a guerra, inspiração que o autor teve quando, em suas pesquisas, soube do Comitê das Mães dos Soldados, que ajuda jovens enviados à Tchetchênia”. Comitê que, por sinal, vai aparecer ao longo de toda a narrativa de O Filho da Mãe.
Em O Filho da Mãe, Bernardo Carvalho, à maneira de seus livros anteriores, mescla diversas vozes e pontos de vista. A diferença é que neste livro, o escritor narra em terceira pessoa, o que não é comum em sua obra. Esse foco narrativo permite que Carvalho mergulhe no íntimo das fortes personagens que criou, enfocando o sentimento de orfandade e de desamparo. Tudo em meio à barbárie da guerra da Tchetchênia e da reconstrução de São Petesburgo às vésperas de seu terceiro centenário. Mas a guerra é apenas pano de fundo para desenvolver uma narrativa sobre a figura da mãe, nas diversas histórias que se entrelaçam no livro. O Filho da mãe nos convida a reler com cautela a obra de Carvalho, - o talvez nos faça repensar aquele preconceituoso argumento de que sua literatura é metida à cosmopolita e presunçosa. Esse argumento é geralmente falacioso quando o que está em questão é a literatura de B.C. – cuja mobilidade desarma, a partir do modus operandi de sua narrativa, discursos estáveis, dogmáticos e tradicionais.

c. moreira

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

GRAN CABARÉ DEMENZIAL OU O GRANDE CIRCO DE HORRORES

Charles Feitosa, em um artigo publicado na revista Cult, em novembro de 2005, observou que “filosofia não se faz apenas com conceitos, mas também com imagens”. O filósofo escreveu a frase pensando no filme Freaks, do cineasta norte-americano Tod Browning, realizado em 1932, e baseado no conto “Spurs (1923), de um escritor chamado Tom Robins. Na época, o filme foi considerado pela crítica como um dos mais macabros já realizados. Foi proibido na Inglaterra durante cerca de trinca anos até ser considerado um “cult” na década de 60, no Festival de Cinema de Cannes. Diz Feitosa sobre o filme: “À primeira vista, o que causa tanta estranheza é o fato de o diretor não ter usado atores que simulassem desabilidades corporais por meio de máscaras, maquiagem ou fantasias, mas ter escolhido pessoas efetivamente portadoras dessas desabilidades”. Feitosa pergunta: “Trata-se, afinal, de uma mera exploração comercial do grotesco ou podemos aprender com esse filme a desenvolver um olhar diferente sobre o que é considerado feio?”. O crítico, no final do artigo, chega à seguinte conclusão: Freaks permanece altamente recomendável: “O filme expõe o sentimento de comunidade daqueles seres, que paradoxalmente não construíam suas identidades por meio de suas desabilidades, ou seja, pela doença ou pela falta, mas sim, afirmativamente, pela convivência diária do circo”. Assim, não pretende curar nem esconder o feio, mas o assume enquanto tal: “De que tipo de nós você quer se tornar um?”. Cito este texto apenas para chegar a um outro lugar.
Em 2007, uma das boas revelações da literatura brasileira, Veronica Stigger lançou o seu Gran Cabaré Demenzial. Além de escritora, a jovem Veronica é também professora universitária e excelente crítica da literatura. Quando fazia suas pesquisas Em Roma, na Itália, a autora gaúcha se deparou com um cartaz, em que estava escrito: “Gran Cabaré Demenzial”. Na hora, sacou o título do livro: “Percebi que esse título era perfeito para agrupar (e até mesmo definir) o conjunto de textos que eu estava escrevendo (...). Comecei a pensar no livro como uma espécie de teatro-revista em que há uma sucessão de diferentes tipos de apresentações. Por isso ele não tem índice, tem programa” (Estado de São Paulo – 25 de junho de 2007 – Caderno 2 – D3). Na Itália, a expressão Cabaré serve principalmente para uma festa em que há uma série de espetáculos numa mesma noite. Espetáculos de dança, música e circo. E assim Veronica organizou o livro.
Michel Foucault, no posfácio que escreveu para a obra Tentações de Santo Antão, de Flaubert, em 1964, observou que, mais fecundo que o sono da razão, talvez o livro engendre o infinito dos monstros: “Diante do eremita quase mudo, desfilam pecados, tentações, divindades, monstros – cada um saindo por sua vez de um inferno onde todos estão deitados como em uma caixa”. Talvez o mesmo aconteça no livro de Veronica Stigger. Em Gran Cabaré Demenzial, a autora alterna textos mais longos com outros que beiram o desaparecimento da escritura. Esses textos extremamente concisos poderiam ser lidos como “vinhetas ou esquetes” (como sugeriu a própria escritora) que permeiam o seu desfile de horrores, como em Freaks, de Tod Browning. João Adolfo Hansen observou que as personagens de Veronia Stigger no livro “vivem clichês narrativos esvaziados, onde recebem e dão porradas, perdem pedaços, aumentam de tamanho e diminuem, metendo-se em buracos, adaptando-se a resíduos, escorrendo”. Ou seja, vivem fora de si, procurando uma outra comunidade possível, já que a sua tornou-se inviável. E é nesse ponto que o livro torna-se mais político e filosófico. Com isso não quero sustentar que Veronica faz panfletagem. Quero apenas observar que a sua literatura responde de maneira eficiente a questões políticas e filosóficas.

Manoel Ricardo de Lima, em um artigo publicado no Diário Catarinense, em maio de 2007, comenta que Veronica arma nesse livro um gesto descabido, debochado, para “fazer uma leitura da lógica imprevisível dos mitos, como conceito e como experiência, e muito ainda e tanto um nonsense que se fulgura como um contramovimento ou um antipensamento a certo prisma ordinário de uma ordem social vinculada a uma grande civilização que se depara com seu próprio nojo, com seu próprio desejo”. Dessa maneira, Veronica aponta para a falência de uma vida coletiva ou mesmo individual. Questão que parece central em parte da boa produção literária contemporânea: “Que comunidade queremos para nós?”, “Que comunidade ainda é possível?”. No primeiro texto, a personagem Domitila perde os pedaços de seu corpo em um passeio de carro com seu namorado. E não se importa com isso. Em outro, uma mulher é tragada pela escada rolante. Em “Cubículo”, um casal, preocupado em arrumar espaço para os livros, muda-se do apartamento para o banheiro, do banheiro para uma privada, da privada para um intestino. O desfile de grotescos, como sugeriu Foucault sobre as Tentações, de Flaubert, é o desfile de Gran Cabaré Demenzial. É o desfile de uma comunidade em busca de outra. Mas neste caso não se trata de aceitar o grotesco, como acontece em Freaks. É uma forma pensá-lo, problematizá-lo, já que não se trata de uma desabilidade individual, como no filme, mas sim de uma desabilidade comunitária – de uma comunidade que se tornou insuportável.
c.moreira

SUICÍDIOS EXEMPLARES E FRACASSADOS



Alguém disse um dia que o autor precisa morrer para que nasça a escritura. O suicídio talvez fosse uma boa opção. A lista é grande. Silvia Plath, Ernest Hemingway, Ana Cristina Cesar, Torquato Neto, só para citar alguns. No entanto, um suicídio mal-sucedido é uma fonte de onde pode brotar a boa literatura. Alan Pauls, comentando o mais recente de Enrique Vila-Matas, Suicídios Exemplares, observou que a idéia de não conseguir se matar nos faz pensar em incapacidade, fraqueza, impotência radical: “e, no entanto, é justamente essa impossibilidade que coloca os personagens de Suicídios Exemplares em ação, que os enche de inspiração, humor, ansiedade, adrenalina”. Nesse sentido, a idéia do suicídio não consumado não é sinônimo de derrota: é um “princípio de potência”, para usar uma expressão de Alan Pauls. Para Vila-Matas, só os suicídios mal-sucedidos – exemplares - são dignos de serem narrados, por fugirem do lugar comum do ato – apesar de que um suicídio nunca será um lugar comum (como a boa narrativa) – será sempre abjeto e sublime, fascinante e apavorador.
No primeiro texto que compõe o livro, e que poderia ser lido como uma espécie de prefácio, ou de um mapa que nos leva a lugar nenhum, o narrador afirma pretender com o livro se orientar no “labirinto do suicídio”. No entanto, o labirinto tem um aspecto bastante diferente do suicídio. Um labirinto tem muitas entradas e quase nenhuma saída; já a vida tem uma única entrada e muitas saídas. E a literatura? A narrativa, tomada como uma espécie de viagem – tal como aquela de Pessoa a perder países – não deixa de ser um elogio à vida, tal como nos livros anteriores desse prosador catalão (ver Mal de Montano, comentado neste blog). Se o narrador desenha um mapa no livro, cabe ao leitor não necessariamente interpretar o significado do mapa cartografado, mas perder-se na selva da escritura: “deixar que o leitor projete seu próprio mundo interior sobre o mapa secreto e literário deste itinerário moral que aqui mesmo já nasce suicidado”. A frase é elucidativa, Vila-Matas sabe do que está falando.
O crítico Luis Horácio publicou recentemente no jornal Rascunho um interessante ensaio sobre Suicídios Exemplares. No texto, observa que Vila-Matas produziu histórias que “flertam com o surrealismo, com o realismo, não esquecem o romantismo e o existencialismo sartreano. Não há pessimismo, tampouco, auto-ajuda: viver está longe de ser um navegar no mar de águas límpidas, mas também não é festa a ser abandonada tão logo se chegue”. É Drummond dizendo para Carlos: “Não se mate, Carlos, não se mate, o amor é isso que você está vendo... hoje beija, amanhã não beija”. Assim como em Mal de Montano, em que o leitor encontrará a doença literária, a própria vida transformada em literatura, e como em Bartleby e Companhia, (que, aliás, o escritor, crítico e jornalista José Castello confessou ser um dos livros mais geniais que já leu) em que a impotência de escrever é levada ao extremo, as personagens de Suicídios Exemplares acabam por levar a literatura para um horizonte além do cotidiano e do comum – ou mesmo fazendo do cotidiano alguma coisa exemplar, como no conto “Rosa Schwarzer volta à vida”, em que uma dona de casa, que também é funcionária de um museu, imagina diversos tipos de suicídio, nunca cometendo nenhum. Por fim, depois de beber uma garrafa de cianureto (ou o que ela imaginava ser cianureto) durante a jornada de trabalho, sente que cometeu o suicídio: “Com um único e fulminante gole ingere o veneno, e quase de imediato o tambor a envolve com a mais calorosa sensualidade, ainda que também com alguma brutalidade, porque tem a sensação de que caiu morta”. Rosa costumava apreciar um dos quadros do museu. Sabia que o quadro a convidava ao suicídio. Se ela o cometesse, entraria no mundo do quadro. Depois de tomar o líquido, decide cometer novamente o suicídio. Se morresse no quadro, voltaria à vida. E é o que faz (ou não?). Talvez a garrafa não guardasse cianureto, talvez fosse apenas uma bebida alcoólica. Talvez nada disso tivesse acontecido. Talvez fosse apenas literatura. E é no reino do TALVEZ que circula a narrativa de Vila-Matas. É também por isso que ela chama tanto a atenção.
Se os suicídios são fadados ao fracasso, isso não significa que a literatura também o seja. É preciso que os suicídios não aconteçam – caso contrário a literatura não nasceria, e mesmo que nascesse seria apenas uma marcha para o ponto final, saberíamos de antemão que o livro seria tão somente um desfile monótono para a morte (Se Ulisses não se perdesse e voltasse logo para casa, não haveria a Odisséia). E por mais que a literatura louve a morte, é para a vida que ela se dirige. É por isso também que o livro surpreende. Os dois últimos contos, em um momento que já estamos quase acostumados com a (sobre)vivência das personagens, conseguem fugir do lugar comum. É que neles a morte “realmente” acontece. No penúltimo, com o homem que planejou minuciosamente o seu suicídio, mas foi pego de surpresa pela morte antes de praticar o ato – o suicídio não acontece, mas a morte chega, como a punir o homem por querer abandonar a vida. O último não carece de comentários. É um fragmento de uma carta (imaginária ou não?) de Mário de Sá-Carneiro, dirigida a Fernando Pessoa em 1916, antes de o escritor português cometer suicídio. Diz Mário numa das passagens da carta: “Mas não façamos literatura”. Torquato Neto disse o mesmo, de outra forma. Antes de morrer, escreveu o seguinte bilhete para a mulher: “AMOR, pra mim chega!”. Cometer o suicídio é apagar todas as possibilidades de uma futura escritura e ao mesmo tempo torná-la viva a partir da morte. Não cometê-lo, como fazem a maior parte das personagens de Vila-Mata só pode ser um elogio à vida, à sobrevivência do homem e da literatura. Talvez seja ainda a forma mais adequada de se fazer uma obra.
c. moreira

A BURGUESIA FEDE OU APONTAMENTOS PARA UM DISCURSO PARASITA



“Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das jóias, e do nome da minha família”. Quem fala é Eulálio d’Assumpção, o narrador de Leite Derramado, de Chico Buarque, lançado em 2009.
O narrador encontra-se em um hospital, à beira da morte. Ao longo da narrativa, vai desfiando um relato impreciso - diante do qual não temos certeza alguma. É nesse aspecto que gostaria de me ater. Gostei muito de Estorvo – kafkiano a meu ver. De Budapeste não guardei boas impressões. Fazer o quê! Gosto é gosto e não se discute. Leite Derramado, todavia, me chamou a atenção. Há uma forte tendência na literatura contemporânea da narrativa de memórias. E o mais interessante desta linhagem é que alguns escritores vêm problematizando sobre o gênero de maneira bastante criativa. Silviano Santiago, por exemplo, é um bom escritor de memórias mentirosas – ou como ele mesmo intitulou em livro, um “falso mentiroso”. Se é um falso mentiroso é porque as memórias são de “verdade”. Um ponto de interrogação (?). Como bom leitor de Derrida, Santiago tem consciência da dimensão lúdica da literatura.
Miguel Sanches Neto, em seu último livro, A primeira mulher, também se dedica às memórias de um professor universitário (que ele é) que reencontra a primeira namorada e se envolve numa série de aventuras, que transformam o livro numa interessante reflexão não só sobre a narrativa de memórias, mas principalmente sobre a sobrevivência do gênero policial.
Para Gregório Dantas, o relato de Eulálio, em Leite Derramado, não possui contornos claros: “A começar por sua interlocutora – por vezes uma enfermeira, por outras sua filha – e pelas limitações de sua memória, que impõe um ritmo fragmentado e repetitivo ao discurso memorialista”. Esse tom repetitivo do narrador é proposital – e esse é um aspecto interessante do livro – já que se trata de um velho que, pelas limitações de sua memória, mistura acontecimentos, repete histórias, transformando-as, colocando, assim, o leitor em um espaço de indecisão, - o que toda a boa literatura consegue fazer. É o que, de certa forma, Bernardo Carvalho consegue desenvolver muito bem em um livro como Os Bêbados e os Sonâmbulos, em que o narrador, ao descobrir que tem um tumor no cérebro – que mudará progressivamente sua personalidade – vai mergulhando nas armadilhas de sua própria memória. Esse narrador contemporâneo é um narrador desterritorializado, posto sempre em suspeita. É o caso de Eulálio d´Assumpção. O narrador de Chico Buarque é arrogante: “Sempre associando seus afetos às posses da família, o narrador exibe um indisfarçado orgulho da longa tradição senhorial de que faz parte” (citação de Gregório Dantas) (Nesse sentido, aproxima-se do narrador do último romance de Silviano Santiago, “Herança”). Por meio da voz de Eulálio, Chico Buarque traça um panorama da sociedade brasileira ao longo do século XX. Ou melhor, um panorama da elite, da burguesia em decadência. Cazuza dizia na música que a burguesia fede. E não é diferente em Leite Derramado, em que os preconceitos contra negros e mestiços são abordados em abundância. Eles aparecem nas entrelinhas, mas significam. A mãe do narrador, por exemplo, questiona a classe social e a raça de Matilde, jovem que se casaria com Eulálio: “(...) de saída me perguntou se por acaso a menina não tinha cheiro de corpo. Só porque Matilde era de pele castanha, era a mais moreninha das congregadas marianas que cantaram na missa do meu pai”. O narrador, mesmo aceitando a mistura de raças na sociedade, e confessando que se fez um adulto sem preconceitos devido à convivência com o negro Balbino, um amigo de infância, decepciona-se ao ouvir a namorada de seu bisneto o chamar, no momento do amor, de “negão”. As questão sociais abordadas por Chico Buarque, que é filho de um renomado sociólogo, são bem desenvolvidas. Mas o que chama mais a atenção no livro é justamente o desfiar da narrativa, a maneira como Chico desenvolve o texto.
Foucault, em um interessante ensaio intitulado “Por trás da fábula”, de 1966, faz uma distinção entre a fábula e a ficção. A fábula é o que é contato (episódios, personagens, funções que eles exercem na narrativa, acontecimentos). A ficção é o regime da narrativa, os diversos regimes segundo os quais ele narra; por exemplo: a postura do narrador em relação ao que ele narra, e mesmo a “presença ou ausência de um olhar neutro que percorra as coisas e as pessoas, assegurando sua descrição objetiva (...) discurso repetindo os acontecimentos a posteriori ou duplicando-os à medida que eles se desenrolam”. Esse parece ser o caso de Leite Derramado. Mais preocupado do que contar uma história, Chico Buarque parece mergulhar profundamente no regime da narrativa, o que de certa forma ele já vinha exercitando em seus livros anteriores. Ao colocar em xeque o domínio da narrativa linear, ou mesmo daquela em que o narrador é o senhor do que narra, o escritor consegue potencializar outros modos de escrever, e também outros modos de entender o gênero memorialístico na literatura. Chico parece, assim, estar mais preocupado com a ficção do que com a fábula. Que bom! Para finalizar esses apontamentos a guisa de uma conclusão, gostaria de relembrar o que Foucault nos diz. Para ele, o regime da ficção está povoado de “discursos parasitas”, discursos que muitas vezes foram obliterados, ou vistos de maneira pejorativa pela instituição da literatura, em momentos específicos da humanidade. Foucault nos diz ainda que somente depois que novos modos de ficção foram admitidos na obra literária é que se tornou possível o ato de ler. Por isso, não estou preocupado com a história de Eulálio, ou mesmo com aqueles que enxergaram no livro um discurso enfadonho e repetitivo. Estou mais interessado na ficção arquitetada por Chico Buarque. E se ela é um estorvo, ou um leite derramado, é porque é um discurso parasita. Uma ficção e não uma fábula.

c.moreira