terça-feira, 20 de abril de 2010

Margarida (da série Flores)

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Vez e outra meu avô plantava uma flor e colhia uma poesia. A margarida é poeta e nem sabe. Sua fala, uma arte: elabora pausas, metrifica os horizontes e deixa todo mundo curioso. Não sabe escrever, mas vai longe. Tão fácil escondê-la num labirinto botânico, botá-la no bolso, ou desidratá-la em um livro. Mas não te quero peça de museu nem adereço na lapela. Imagino-te assim, livre e desimpedida, sem prazo de validade, descontada das dívidas do amor. No máximo descascá-la numa séria brincadeira de bem me quer e mal me quer. Dessa maneira, poderei te ler em braille, dedos, toque e coração. No quintal do meu avô, quem manda mesmo é a margarida. Enquanto as formigas vão inventando sua própria sintaxe e os pardais vão tecendo um inusitado idioma repleto de variações lingüísticas, a flor canta Fellings e cava a tarde sem fazer alarde, esperando o príncipe que nunca vem.
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c.moreira

terça-feira, 6 de abril de 2010

Tulipa (da série Flores)

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Tua flor predileta. Como não cantá-la? Qual troféu natural, campanulada e solitária, a tulipa encanta. Como se o corpo, apontando para cima e aspirando a tocar as estrelas, saudasse o céu. Bolbo tunicado, pedúnculos, braços finos e pernas delicadas, desfila pelo jardim qual modelo magra e marota. Sem origem específica e ascendência precisa, da família das liliáceas, essa guardiã do jardim não tem começo, meio ou fim. Suas folhas oblongas, ovais ou lanceoladas revestem uma haste ereta, em cujo centro talvez morasse uma deusa grega ou um periquito que me dissesse “teu olhar é só meu”. Como uma mulher, dona de cem espécies, a tulipa não hesita em forjar mil máscaras. Sou todas, sou nenhuma. Ninguém desconfiaria que algumas delas seriam por demais venenosas, causando a morte do beija-flor, da abelha, do namorado, hipnotizado por seu fulgor.
Pensei que fosse fácil namorá-la no verão. Ledo engano. Aprendeu a guardar seu charme, uma espécie de chama, fogo e paixão, só para dias de frio, casaco e cobertor. Por baixo da coberta é que a flor desabrocha fazendo o pássaro cantar, enquanto venta lá fora. E se sugere por trás de um suposto turbante a ausência de qualquer perfume, mais um engano. Tua discrição esconde todos os cheiros que há neste mundo. Mas as palavras também não têm cheiro. Melhor abandonar as frases e ficar só com as tulipas.
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c.moreira