sábado, 30 de março de 2013

Apontamentos: Susan Buch-Morss e o cinema como prótese do olhar



(cena de O homem com a câmera na mão, de Dziga Vertov)


Quando Susan Buch-Morss, no texto "A tela do cinema como prótese de percepção", fala do cinema como uma prótese de percepção, está se referindo ao “ato puro de ver” estudado por Husserl. O cinema protético, levando em conta o jogo inerente do simulacro, colocaria o elemento corpóreo em suspensão.

A pesquisadora parte de algumas palestras apresentadas por Edmund Husserl, em 1907, em Götting sobre “A Ideia da Fenomenologia”. O objetivo principal das palestras era evidenciar um método de cognição que, “enquanto mantivesse a análise 'imanente' aos conteúdos da consciência, ainda podia chegar a um conhecimento 'absoluto' e 'universal'”.
A proposta básica de Husserl, que por sua vez se tornaria uma das propostas da Fenomenologia ao longo do século XX, era fazer conhecer o pensamento em sua forma pura, essencial no mundo da experiência. A noção de “experiência”, um dos conceitos fundamentais da Fenomenologia, foi comentada por Merleau-Ponty, em A Fenomenologia da Percepção. O filósofo entende a fenomenologia como uma filosofia que repõe as essências na existência, não acreditando que se possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua “facticidade”. Impossível estocar o conhecimento, impossível a própria possibilidade de conhecimento antes da experiência. Talvez por isso Susan Buch-Morss tenha sugerido que para termos uma visão precisa do objeto puro a que se refere Husserl melhor seria abandonar o texto e ir ao cinema. A partir da experiência do cinema entenderíamos o que Husserl queria dizer com o pensamento-absoluto
Buch-Morss encontra no cinema as “reduções fenomenológicas” de Husserl. Tais “reduções” colocam entre parêntesis os objetos do ato mental e o sujeito que os pensa. Tanto a proposta de Husserl, quanto a de Susan Buch-Morss, pretende examinar esses objetos. Com isso, a autora do texto não está querendo dizer que o cinema é algo imanente e que questões sociais, históricas ou culturais não devem ser levadas em conta num processo de análise. O que ela pretende mostrar é que a imagem do cinema é o traço gravado de uma ausência. Logo, não seria mais relevante perguntar se as imagens representadas no cinema seriam reais ou não: "O que conta é o simulacro, o objeto não corpóreo por detrás. Na cognição protética do cinema, a diferença entre documentário e ficção, portanto, é apagada. Claro que ainda “sabemos” que são diferentes. Mas habitam a superfície da tela como equivalentes cognitivos. Ambos o acontecimento real e o encenado estão ausentes".
O texto ainda nos apresenta um paradoxo. Por um lado, a imagem do cinema é construída pelo diretor, pelo homem que opera a câmera, pelo editor, o que faz com que seja possível uma consciência intencional; por outro, os “pedaços” do filme podem ser percebidos como algo “dado”, o que faz com que a verdade não seja intencional. Nesse contexto, esse fato torna possível uma espécie de violência. Uma violência que não diz respeito apenas à montagem que corta a realidade, mas à violência da “própria percepção protética”.
              Susan Buch-Morss fundamenta suas questões filosóficas apresentando exemplos do cinema soviético e americano. Poderíamos concluir, com base no argumento da autora, que em alguns filmes soviéticos do início do século XX, por exemplo, a extensão do olhar por meio da prótese foi responsável por fazer a “massa” perceber não apenas as cenas, os personagens, a sua história, mas principalmente ver “(...) a ideia de unidade dos povos revolucionários, a soberania coletiva das massas, a ideia de solidariedade internacional, a própria ideia de revolução”. Eisenstein, parece ter conseguido produzir aquela arte revolucionária nos dois sentidos: estético e político. Dziga Vertov, com O homem com a câmera na mão, também. Neste, a prótese é explicitada na metáfora da lente que vê e filma, mostrando ao mesmo tempo que constitui um olhar. A cena é bárbara, ou seja, belamente estrangeira.   


Susan Buch-Morss

sexta-feira, 29 de março de 2013

esboço de órbita e acaso

enquanto o damasco
arma a dura pele
em seu lento madurar
um mouro de sobrancelhas grossas
e pés ásperos de sandália e argila
sob o sol sedento do deserto
tira com cuidado
acordes vibrantes
de uma viola escarlate
cujo som faz lembrar
os ares de um solista
que, neste caso, é o próprio maestro
da Orquestra Sinfônica Simon Bolívar.

No mesmo instante
a léguas dali
uma velha camponesa
com vestes coloridas
saia longa, sapato e meia
planta repolhos
em um campo aberto
que antes abrigou refugiados
perto de Kiev, no norte da Ucrânia.

Enquanto ela passa
com um estranho charme
as costas do antebraço
na testa enrugada e manchada
que um dia foi lisa e branca
como a de sua neta mais nova
e um pingo de suor lhe escapa
caindo na terra que recém lavrada
agora espera que tudo nasça,
o solista da orquestra
executa com minúcia
seu instrumento feito o mouro
das sobrancelhas do deserto
e algo e então e assim,
feito música, damasco ou repolho
brota e se espalha no ar

c.moreira




CHORAR


chorar é só matéria prima
não chega à mulher fogosa
um poema de Joan Brossa
uma Penélope,
uma Cruz,
Julieta do Romeu,
ou Massina.

"Chorar é coisa de menina"
Sentir é claro
Todos sabem
Tudo ensina
a própria dor, 
por exemplo,
De sincera
Fresca e delicada
Sempre avisa:
                                                      CHORAR  Não basta à poesia

É preciso dançar com a dor
Afagar a danadinha (Fazer dela messalina)
Teu corpo esquenta meu corpo
Tua mão acende meu fogo
Linda flor, (ai ioiô), rapariga!

"Chorar é só matéria prima"
Alguém sussurra
e o fato logo se explica

Com RAZÃO
Faço versos de chorar
mas esse choro
você sabe!
não sai só do coração.

c.moreira

terça-feira, 26 de março de 2013

apontamentos sobre Roça Barroca, de Josely Vianna Baptista




Há traduções que só encontram seu verdadeiro "tom" e "medida" quando são feitas por artesãos específicos. Quem, senão Donaldo Schüller, seria a pessoa certa para traduzir o Finnegans Wake, de Joyce, para a nossa língua mátria? Arnaut Daniel, em português, sem Augusto de Campos, o que seria? Paradiso, de Lezama Lima, sem Josely Vianna Baptista, só Haroldo de Campos.

Em um momento em que os índios são desrespeitados e continuam sendo exterminados (direta ou indiretamente), a Roça Barroca, de Josely Vianna Baptista, ganha ressonâncias não apenas literárias mas também políticas. O livro presenteia o leitor com três cantos sagrados dos Mbyá-Guarani do Guairá, traduzidos, ou melhor transcriados, pela mão inventiva da poeta, bem como alguns poemas de Josely que dialogam com as traduções. A introdução é de Augusto Roa Bastos. O paraguaio relembra, no texto, que os cantos dos primitivos Guarani do Guairá são peças de um povo que celebrava a palavra como vínculo fundamental entre o homem e o universo. Logo, o sentido a eles atribuído em sua cultura, transcende a mera arquitetura verbal, colocando-se misticamente a serviço da espiritualidade do povo. Para os Guarani alma e palavra são inseparáveis, não havendo então uma separação entre o universo mítico e o universo poético. Esses índios, que erroneamente poderiam ser considerados ágrafos (como se a fala não fosse uma espécie especial de escrita), preservam uma relação com a palavra que há muito a nossa cultura abandonou. As traduções de Josely mostram o quanto temos a aprender com eles. Para começo de conversa, esses cantos são por eles considerados sagrados. Talvez por isso, os textos, durante séculos foram interditos a qualquer "intruso"estrangeiro. Para nós, a palavra sagrada continua sendo apenas aquela que ouvimos durante a liturgia religiosa.

Mbyá é um dialeto do guarani, língua aglutinante, não flexionada,  composta pela união de vocábulos. Aproxima-se, nesse sentido, da escritura ideogramática oriental que permite uma outra relação do sujeito com a linguagem. A forma de estruturação do guarani em constelações  rítmicas e semânticas leva cada partícula a "assumir, por seu valor posicional e modulatório, a função de um sema ou mitema", segundo palavras de Roa Bastos. Para Josely, "essa configuração constelada, em que a língua opera por um sistema de justaposição e síntese, e sua arquitetura imagética e rítmico-sonora conferem ao guarani uma alta potencialidade poética, realizada nos mitos cosmogônicos mbyá, repletos de palavras-montagem, assonâncias, paronomásias, ritmos icônicos, metáforas e onomatopéias". O processo de tradução, muito interessante, é descrito minuciosamente pela poeta-tradutora no texto que abre a publicação. Lembro apenas que ela cotejou o texto-base original com a versão para o espanhol de Cadogan, revista e anotada por Bartolomeu Melià. Josely contou também com o apoio de Teodoro Tupã Alves, ex-cacique que é professor em São Miguel do Iguaçu. A transcriação permitiu que Josely prezasse pela forma ideogramática, em um "exercício escritural" no qual tentou infundir no português um pouco do "sussurro ancestral"da língua guarani.

Os cantos transcriados apresentam mitos cosmogônicos dos guarani. É o caso dos primitivos ritos do Colibri.  Segundo a lenda, o deus supremo foi de si mesmo se desdobrando e se abrindo em flor. O sol ainda não existia. O deus se vê no escuro iluminado pelo seu próprio coração: "O Colibri, em adejos sobre a fronte do deus, farta de flores, respinga água em sua boca e o alimenta com frutos do paraíso"(BAPTISTA, 2011). Nos outros dois cantos, o deus faz brotar a fonte do amor e do som sagrado, fazendo a "fonte da fala aflorar de si e fluir por seu corpo". Surgem, então, os homens e tudo o mais.
As primeiras palavras do primeiro canto dizem:

Ñande Ru Papa tenonde
gueterã ombojera
pytú ymágui

Yvára pypyte
apyka apu'a i,
pytú yma mbytére
oguerojera

(Nosso primeiro Pai, sumo, supremo,
a sós desdobrando a si mesmo
do caos obscuro do começo

As celestes plantas dos pés,
o breve arco do assento,
a sós foi desdobrando ereto,
do caos obscuro do começo  )

Com tino de poeta, Josely traduz de forma magistral, re-criando versos com uma beleza cara a sua própria escrita: "seu sol era / o saber contido em seu ser-de-céu", resolvendo, assim, o seguinte enigma: oyvásrapy mba'ekuaápy (oyvásrapy: dentro de seu céu - em sua divindade; py: dentro de); (mba'ekuaá: ter conhecimento das coisas, visíveis e invisíveis). 

Com um vocabulário relativamente escasso, os guarani criaram nos cantos uma gama incrível de variações. Como a língua é aglutinante, a criação de desdobramentos vocabulares permite à poesia uma versatilidade semântica de grande valor: "No caos obscuro do começo / tudo oculto em sombras / o princípio de um som sagrado ele, a sós, criou"; "Depois de muito meditar / com o saber contido em seu ser-de-céu, / e sob o sol de seu lume criador, / desdobrou-se em quem refletia / seu ser-de-céu".

Tão importantes quanto os cantos são os poemas de Josely, que mantém a dicção neobarroca característica de seus trabalhos anteriores. Todos os poemas que integram a publicação estão direta ou indiretamente ligados ao tema dos Guarani de Guairá. Se por um lado os textos dialogam com a ideogramática escrita dos cantos indígenas, devidamente assimilados pela poeta como forma de homenagem e/ou diálogo, por outro reivindicam uma dicção (neo)barroca. Do confronto pacífico e ao mesmo tempo (des)dobrado e sangrento entre a poesia do colonizador e a potência poética do Guarani colonizado, depreende-se uma espécie de "arte da contra-conquista", como quis Lezama Lima, aliás, mentor intelectual de Josely. Há uma política que se desdobra desses poemas, pondo em funcionamento uma postura ao mesmo tempo racional e delirada na escritura de uma poeta que sabe o que está dizendo. Referências a Gôngora, Manuel da Nóbrega, Antônio de Gouveia, chegam na hora certa nesse "engenho de sins"que é a poesia de Josely. Ora brota a decadência do projeto jesuítico, que faz eco em versos como: "carunchos e cupins roem, / vorazes, a choupana de ripas"; ora aparece a partir da vitalidade poética indígena materializada: o solo é árduo mas alado. Poemas como "guirá ñandu" fazem referência ao fim do mundo tal como é concebido na poética-cosmogônica Guarani.

Josely Vianna Baptista
Encantou-me em especial o nome do livro, uma referência a culturas ameríndias de terras brasileiras que, por serem seminômades, fazem a sua roça em um determinado local e tempos depois seguem viagem. A dimensão e a importância política e literária das traduções de Josely - fundamentais nesse momento em que o desmatamento e o alto índice de suicídios entre os guarani demonstram a falta de respeito do poder público e da sociedade em geral com as comunidades indígenas -, impõem-se com uma força e importância sem tamanho. Josely Vianna Baptista encerra um dos textos que compõe o livro observando que o maior mistério a cercar os guarani está no fato de conseguirem sobreviver à margem da "barbárie" contemporânea: "Olhando a névoa, a nuvem, o orvalho, o alento do roçado em que respira a neblina vivificante, eles vêm mantendo com dificuldade seu tekoha, onde praticam o teko (modo de ser) de seus antepassados, enquanto buscam preservar na pouca terra que lhes restou, a natureza e a fala indestrutível que os deuses deixaram aos seus cuidados".  
    

segunda-feira, 25 de março de 2013

da série: Esquinas


Os dois subiam. Ela, a rua Costa Carvalho. Ele, a avenida Professora Amazília. Ela parou para ler a placa da lavanderia. Perdeu 15 segundos para anotar o número: 3523-3776. Verão, fim de tarde, horário novo, mas velha a solidão. Passadas das 18h, sol alto e ainda de céu azul e rosado. (Esquina: Ângulo, formado por dois planos que se cortam. Canto exterior de edifício, caixa, etc. Ângulo de rua: ao dobrar de uma esquina. Etimologia: do castelhano esquina, e provavelmente do gótico Skina). Ela quase cruzou ali com o amor de sua vida. Ela, com 43 anos de esperança. Se tivesse passado pela esquina 15 segundos antes, teria informado as horas para ele, 45 anos, solteiro, sozinho. Eles teriam conversado por cerca de 5 minutos. Ele a teria convidado para conhecer a sua loja e depois a chamaria para sair. E depois tudo o mais aconteceria naturalmente, como essas coisas acontecem. Acontece que ela se atrasou 15 segundos, ou teria ele se adiantado? Se, por sua vez, ele tivesse parado para ajuntar os dejetos orgânicos de seu cão, apanhado no pet shop, teria como ela se atrasado, estando, assim, na hora exata de ser feliz. Ele teria esbarrado com ela na esquina depois de 15 segundos, pois este seria o tempo necessário para que ela lesse a placa e anotasse o número de telefone da lavanderia e para que ele cumprisse uma obrigação, a dos bons modos sociais. Se ela não tivesse parado ou se estivesse com a sua máquina de lavar funcionando, e não no conserto, como de fato estava, tudo também seria diferente. Se a alma e as roupas estivessem lavadas, os 15 segundos talvez fossem poupados, permitindo que a história diferisse para o contento de todos. O encontro que não aconteceu, o destino alterado previamente pelos astros, o acaso, ou apenas a placa da lavanderia (ela bem poderia não ter existido), ou a irresponsabilidade do dono de um cão e seus dejetos, foram sem saber o motivo ou apenas um deles para que ele continuasse na loja e ela dando aulas de inglês em um Colégio Estadual. Ela passou com dois livros e um lápis na mão. Ele trazendo o fiel escudeiro Adelmo. Mas esses dados não importam porque ela não o viu, nem ele a vislumbrou. Assim, ela não precisará contar para o dono de Adelmo que está cansada das aulas e ele não a convidará para uma viagem sem volta a Curitiba, Meca com a qual sonhara desde a era Lerner. O pior não foi o que não aconteceu, mas o desconhecimento daquilo que poderia ter acontecido. Não saber que a felicidade estava ali é mais triste do que a consciência de tê-la deixado escapar. Na esquina, as ruas se encontram e os planos se cortam. Amores também se perdem.

sexta-feira, 15 de março de 2013

mente

ela fala
doce
mente

ela o abraça
gentil
mente

ela o beija
forte
mente

ela o ama
simples
mente

ele desconfia
e consulta
uma vidente

que tudo revela
com o poder
da mente

agora ele prefere uma dama da noite
que franca
mente


sábado, 2 de março de 2013

Por dentro é o o(v)co



o que quero é estar agora
um pouco por dentro
um pouco por fora
me olhar com os olhos
de um outro
pra saber o que se passa
por fora da casca
por dentro do ovo

c.moreira