sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

fogo fátuo


a mim me basta um fato
depois de apagadas as chamas
todo fogo é fogo-fátuo

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

MAQUIAGEM

Fragmento do ensaio "Elogio da Maquiagem", do Baudelaire. Primoroso! Final belo como uma mulher maquiada: 

"Assim, se sou bem compreendido, a pintura do rosto não deve ser usada com a intenção vulgar, inconfessável, de imitar a bela natureza e de rivalizar com a juventude. Aliás, observou-se que o artifício não embelezava a feiura e só podia servir a beleza. Quem se atreveria a atribuir à arte a função estéril de imitar a natureza? A maquilagem não tem por que se dissimular nem por que evitar se entrever; pode, ao contrário, exibir-se, se não com afetação, ao menos com uma espécie de candura.
Aqueles a quem uma pesada gravidade impede buscar o belo mesmo em suas mais minuciosas manifestações, autorizo de boa vontade a rirem de minhas reflexões e a assinalarem nelas a pueril solenidade; nada em seus julgamentos austeros me afeta; contento-me em me remeter aos
verdadeiros artistas, assim como às mulheres que receberam ao nascer uma centelha desse jogo sagrado com que gostariam de iluminar-se por inteiro"



terça-feira, 21 de janeiro de 2014

SABOR/SABER

Desde que visitei o Império dos Signos, de Roland Barthes, pela primeira vez, percebi que estava diante de uma nobre escritura (que conjuga, para usar uma expressão do próprio, saber e sabor). Mil doces coisas de uma vez, nesse livrinho. No fragmento a seguir, ao comentar sobre os palitos com os quais os japoneses comem, Barthes traça uma sintomática diferença entre "eles" e "nós":

"Pois os pauzinhos, quando têm que dividir, separam, afastam ou apertam, mas não cortam nem agarram, como fazem nossos talheres. Os pauzinhos jamais violentam o alimento: ou o desembaraçam pouco a pouco (no caso das verduras) ou o desfazem (no caso dos peixes, das enguias), redescobrindo assim as fissuras naturais da matéria (e nisso são muito mais próximos de nossos dedos primitivos do que das facas).
Por fim – e esta é talvez sua mais bela função –, os dois pauzinhos transferem a comida: cruzados como duas mãos, suporte e já não mais pinça, eles deslizam sob o floco de arroz e o suspendem até a boca do comensal; e, num gesto milenar que se repete em todo o Oriente, fazem escorregar a neve alimentar da tigela até os lábios, como uma pá.
Em todos esses usos, por todos os gestos que implicam, os pauzinhos se opõem à nossa faca (e a seu substituto predador, o garfo): são o instrumento alimentar que se recusa a cortar, a agarrar, a mutilar, a furar (gestos muito limitados, relegados à preparação do prato: o peixeiro que esfola diante de nós a enguia viva exorciza de uma vez por todas, num sacrifício preliminar, o assassinato da comida). Por causa dos dois pauzinhos, a comida já não é uma presa sobre a qual exercemos violência (carnes sobre as quais nos arremetemos), mas uma substância harmoniosamente transferida. Os pauzinhos transformam a matéria previamente dividida em comida para pássaros, e o arroz em fluxo de leite; maternais, eles remetem incansavelmente ao gesto do biscato, deixando aos nossos costumes alimentares, armados de espetos e de facas, o gosto da rapina".


sábado, 18 de janeiro de 2014

PAPEL: pele que poeta tanto tateia quanto tatua



Irezumi: "figura ou motivo de tatuagem no antigo Japão e, por extensão, nome do museu que hoje alberga estas peles perto de Tóquio" 

"Irezumi parte do que constitui, por definição, a tatuagem: é indelével. Para suprimir uma tatuagem seria preciso arrancar a pele. O único modo de eliminá-la, de desvirtuar ou inverter a sua significação, é acrescentar mais tatuagem, completar o desenho intruso com outro, integrá-lo numa composição mais vasta (...)" Severo Sarduy em "Corpografia", de Josely Vianna Baptista.

Se a figura do poeta equivale a do tatuador, ao tatear e tatuar a pele do papel como o corpo de quem se submete a esse grafismo, a figura do leitor equivale a do tatuador que "escreve mais" ao ler, ou seja, que "acrescenta mais tatuagem", para usar uma expressão do Sarduy.


c.moreira

imagem: Imagem: Cena do filme The Pillow Book, de Peter Greenaway