segunda-feira, 27 de junho de 2016

Que emoção: notas sobre um emocionado




Na palestra "Que emoção!Que emoção?", proferida a jovens com mais de dez anos, Georges Didi-Huberman, inspirado nas conferências radiofônicas de Walter Benjamin para crianças, relembra que a emoção é um ato primitivo e fazendo referência ao livro "A expressão das Emoções nos Homens e nos Animais", de Darwin, observa que para este naturalista a emoção pode ser encontrada sobretudo nos animais, nas crianças, nas mulheres, nos velhos e em povos que têm pouca relação com os europeus. Os "selvagens" a que se refere Darwin, nesse caso, estariam numa franca oposição aos ingleses que não choram "a não ser sob a pressão da dor moral mais pungente". Sob a égide dessa curiosa polaridade, centrada na existência de sujeitos que se emocionam e de sujeitos que não se emocionam, nasce a expressão típica de que o sujeito que expõe sua emoção aos outros, como que expondo sua própria nudez, seria patético. E tal argumento, na maior parte das vezes, viria carregado de um certo desprezo. Emocionar-se é uma vergonha.
            Invertendo a carga negativa do choro, da emoção, bem como da exposição desse sentimento, Didi-Huberman reconhece que aquele que se comove diante dos outros não merece desprezo: "Ele expõe a sua fraqueza, ele expõe o seu impoder, ou a sua impotência, ou a sua impossibilidade de 'enfrentar', de fazer boa figura, como se costuma dizer". Nesse sentido, mostrar uma emoção implica num ato de honestidade, na recusa de um fingimento. Trata-se, portanto, de um ato de coragem.
            Se para Kant a emoção é entendida com o "defeito da razão", para Hegel as coisas vivas têm o privilégio da dor. Essa tragédia exuberante, como sabemos, em Nietzsche, terá seu valor positivo restituído. Didi-Huberman lembra que o pensamento filosófico a partir de então se modificará profundamente. O filósofo do trágico se debruçará pela poesia, pela arte e literatura mais do que pelas verdades eternas de uma filosofia dogmática: "Depois de Nietzsche, os filósofos comovem-se um pouco mais (...)". E a partir de Bergson as emoções serão entendidas como gestos ativos, gestos de paixão, movimento, portanto, na expressão "patético" o sentido aristotélico da forma passiva "pathos" (paixão ligada à impossibilidade de agir) daria lugar a um gesto ativo, a emoção entendida como e-moção, moção, um movimento que consiste em colocar-nos para fora de nós mesmos. A emoção produz, a emoção gera, nos move, se movimenta. Não é à toa que Aby Warburg, aliás lido amplamente por Didi-Huberman e citado na palestra, tenha se dedicado tanto a sua "pathosformel", preocupado em pensar na historicidade das emoções, na vida das imagens postas em movimento, programa materializado em seu Atlas Mnémosine.

Didi-Huberman

            Seguindo ainda o pensamento emocionado de Didi-Huberman, lembremos que as emoções, pensadas como moções, movimentos, comoções, são também transformações daqueles que estão comovidos:

Transformar-se é passar de um estado a outro: está então bem reforçada a nossa ideia de que uma emoção não pode se definir como um estado de pura e simples passividade. É mesmo através das emoções que podemos, eventualmente, transformar o nosso mundo, na condição, é certo, de que elas se transformem elas próprias em pensamentos e ações (DIDI-HUBERMAN).

            Brota daí, por exemplo, a leitura que o teórico faz do filme O Couraçado Potemkine, de Eisenstein, no qual em uma de suas passagens - a das mulheres que choram e se recolhem diante do cadáver do marinheiro assassinado -, a tristeza do luto se transforma em cólera surda para depois se transformar em discursos políticos e cantos revolucionários, ou seja em uma "cólera exaltada". Do luto à luta. Da lágrima da emoção à moção das armas. Se não podemos certamente fazer política real apenas com sentimentos, ensina-nos Didi-Huberman, "também certamente não podemos fazer boa política desqualificando as nossas emoções (...)"(DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 45). 


quinta-feira, 16 de junho de 2016

Origens da Literatura Brasileira: um problema, três pontos de vista


A questão da origem da literatura brasileira é amplamente discutida por historiadores e críticos. Esquece-me, muitas vezes, no entanto, dos nós que se apresentam ao longo desta linha imaginária que poderia ser chamada de história de nossa literatura. Diríamos que a questão da origem é problemática e suscita aprofundamento. Apontamos para três grandes teses que buscam direta ou indiretamente uma origem para a literatura brasileira. A primeira, sustentada por Afrânio Coutinho, em Conceito de Literatura Brasileira, imagina no século XVI o nosso legítimo começo. A segunda, de Antonio Candido, aponta em Formação da Literatura Brasileira para o século XVIII, momento especial no qual um sistema literário é posto em funcionamento. E a terceira, de Haroldo de Campos, que, criticando Candido, situa no século XVII nossa gênese literária.
Geralmente, os estudos relativos à historiografia da literatura brasileira tomam como ponto de partida o início do século XVI. Os manuais didáticos tendem a reproduzir esse modelo. Entende-se como "começo", neste contexto, a Literatura Informativa e/ou de Viagem, bem como a literatura produzida por jesuítas, em solo brasileiro. José de Anchieta, por exemplo. Esse é o argumento de Afrânio Coutinho. Segundo o crítico, a literatura brasileira "iniciou-se no momento em que começou o Brasil. É brasileira, desde o primeiro instante, tal como foi brasileiro o homem que aqui se formou desde que o europeu aqui se implantou". Coutinho retoma o conceito de "obnubilação", desenvolvido por Araripe Júnior, segundo o qual o europeu, ao chegar ao Brasil, sofreu um relativo esquecimento dos laços afetivos que o ligava com a Europa e passou por um processo de gradativo apego ao lugar que começava a colonizar. Essa obnubilação foi responsável por gerar uma espécie de nativismo (amor à terra) que mais tarde se transformaria em um nacionalismo (amor à pólis). Esse processo marcaria, sob esse ponto de vista, desde o início da colonização uma singularidade da literatura produzida no Brasil em relação àquela produzida em Portugal.

Afrânio Coutinho

Em 1959, Antonio Candido, por sua vez, publica a sua tese Formação da Literatura Brasileira, na qual sustenta que a nossa literatura teria tido seu processo de formação em meados do século XVIII com a produção de Cláudio Manuel da Costa. Para Candido, é nesse momento que um sistema literário, pautado pela relação triádica entre autor-obra-público, é posto em funcionamento no Brasil. Com a formação da própria sociedade brasileira, com ímpeto de autonomia política - oriundo de um sentimento de nacionalidade -, com o surgimento de Academias que congregavam intelectuais, com o surgimento de escolas, bibliotecas e livrarias, um sistema literário passa a esboçar um processo formativo de nossa literatura. Quando a atividade dos escritores de um dado período se integra em um tal sistema, ocorre, para Candido, um elemento decisivo: "a formação da continuidade literária - espécie de transmissão da tocha entre corredores, que assegura no tempo o movimento conjunto, definindo os lineamentos de um todo". As produções de escritores anteriores ao século XVIII, portanto, não serão fundamentais para a formação de nossa literatura, sendo consideradas por Candido como apenas "manifestações literárias" que não chegaram a constituir um sistema. É o caso do barroco de Padre Vieira e de Gregório de Mattos. Não deixa de ser lamentável a ausência do Barroco na tese de Candido.  

Antonio Candido

Haroldo de Campos em 1989, publica o seu estudo O sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira: o caso Gregório de Mattos justamente para criticar a ausência do Barroco, em especial a o do "Boca do Inferno" no panorama de Candido. Para o poeta, crítico e tradutor concretista a qualidade estética do nosso barroco, em especial o de Gregório de Mattos já mostra que há no século XVII uma Literatura Brasileira adulta (1989).


Haroldo de Campos

Poderíamos aprofundar aqui a discussão, analisando, por exemplo, os pontos fortes e fracos de cada uma dessas teses, abordando, por exemplo, com Walter Benjamin, o problema da origem pensada como gênese, como algo dado e acabado no tempo. Em Origem do Drama Barroco Alemão, Benjamin observa que o conceito de origem deve ser a partir da ideia de inacabamento e de vir-a-ser. Para ele, ela não significa uma gênese: “A origem, apesar de ser uma categoria totalmente histórica, não tem nada a ver com a gênese. O termo origem não designa o vir-a-ser daquilo que se origina, e sim algo que emerge do vir-a-ser e da extinção”. Definir uma gênese seria, então, abandonar o conceito de origem benjaminiano, caindo na busca de uma arké. Estaríamos, então, diante de um problema de tempo, e da impossibilidade de reduzi-lo à história. Impossível pensar no originário sem levar em conta que ele é pautado pela restauração e pela reprodução, sendo, portanto, incompleto e inacabado. Ou seja, seria impossível definir uma origem entendida como começo no que se refere a nossa literatura. 
Pelo que parece estamos fadados a escrever e reescrever sempre isso que chamamos de história. Talvez seja melhor falarmos em "começos", ou mesmo pensar que a nossa literatura ainda está se fazendo como no giro de um torvelinho, nessa história anacrônica, em forma de espiral e não numa linha reta como costumeiramente se pensa aquilo que chamamos de história

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Texto de apresentação da minha tese: Ruínas de um Tempo/Templo, ou sobrevivências de Dario Vellozo na literatura do presente, defendida na UFSC, em 2011 - este texto foi apresentado na defesa


Seria possível reconstituir uma tese no comentário? Poderia eu resumi-la, dissecá-la, recortá-la, recontá-la. Ficaria nada mais que uma pálida sombra, o fantasma de um texto de muitas vozes, gestado durante os anos em que permaneci regularmente matriculado no programa de pós-graduação em Literatura na Universidade Federal de Santa Catarina, dividido entre as tarefas do doutorado e as exigências impostas pelo trabalho. O poder de síntese, que venho tentando, com muito custo, desenvolver ao longo dos anos, talvez conferisse a minha fala a capacidade de explicar com presteza o tema, os objetivos, os problemas, os princípios metodológicos, as descobertas, as aporias, e as possíveis considerações finais de minha pesquisa. No entanto, o fantasma da escritura parece perseguir o texto, demovendo-me da tarefa.  
Lembro-me de uma confissão que fiz à banca de defesa no mestrado, composta pelos professores Antonio Carlos Santos, Susana Scramim e Felipe Soares no ano de 2006, de que o grande desafio por mim encontrado foi a dificuldade de superar do fantasma da escritura. Lembro-me também da resposta dada pelo professor Antonio Carlos Santos, meu orientador na época, de que ao invés de superar esse espectro, deveria eu aprender a conviver com ele. A frase, que ainda produz volteios, talvez sirva como um elemento propulsor capaz de nos dizer que é possível continuar a despeito de certa dose de angústia e insatisfação que permeia uma atividade de leitura e escrita. Depois de cinco anos, continuo buscando tal convivência, na expectativa de que esse aprendizado possa suscitar alguns “lances de dado”, faíscas, imagens. A capacidade de afirmar o enigma, e em conseqüência de vivê-lo em plenitude, talvez tenha sido uma das felizes descobertas que a frase propiciou, somando-se às lições apreendidas no que veio pela frente, no doutorado. Muito depois eu reviveria essas palavras ao ler o livro Estâncias, de Giorgio Agamben, um livro que ao discutir o encontro entre o fantasma e a palavra, afirmaria a dimensão espectral e inapreensível da escritura.     
Na impossibilidade de repetir aqui o texto da tese, contento-me em tocá-la, o que talvez me leve a transformá-la. Faço, assim, da minha fala um suplemento, um lance de traça, que ao recortar o texto, re-traça, fazendo da tese uma presença sempre diferida. Se é verdadeiro o fato de que a poesia de Dario Vellozo sobrevive, transformando e transformada, na e pela poesia do presente, é também verdade que a tese sobrevive de alguma maneira neste comentário. Ao menos como ruína. E como reiterei várias vezes ao longo do trabalho, a sobrevivência parece sempre estar pautada pela vida e pela morte. O dicionário nos diz que sobreviver significa continuar a viver depois de outro; continuar existindo depois de grave perda; resistir, enfrentar, escapar, sobreviver a todas as crises. Nesse sentido, sobreviver pressupõe uma diferença no viver, já que agrega uma sobreposição à vivência em que se deu determinada experiência. Aby Warburg, seguindo os passos da survival, discutida por Edward B. Tylor, falou em Das nachleben, com o intuito de tratar da possibilidade da transmissão de uma memória por meio de imagens. As imagens, dotadas de uma vida póstuma, fariam parte de uma complexa rede viva e posta sempre em movimento. Walter Benjamin, em A tarefa do tradutor, interessado nos efeitos de sobrevida do original desencadeados por uma tradução, nos fala em Das fortleben. Em ambos os casos, estaríamos diante de uma transmissão e modificação de um elemento anterior. Ou seja, tanto em um conceito como no outro, perda e produtividade, vida e morte, instaurariam a própria condição do (sobre)viver. Dessa maneira, “continuar existindo depois de grave perda”, talvez seja uma das definições mais esclarecedoras que o dicionário nos dá para a expressão.  
Régis Debray, em Vida e Morte da Imagem, escreve que “o nascimento da imagem está envolvido com a morte. Mas se a imagem arcaica jorra dos túmulos é por recusar o nada e para prolongar a vida”. Prolongar a vida poderia ser entendido aqui como a grande busca de uma imagem. Debray, no mesmo texto relembra os ritos fúnebres dos reis da França, entre a morte de Carlos VI e a de Henrique IV, que ilustram tanto as virtudes simbólicas quanto as vantagens práticas da “imagem primitiva como substituto vivo do morto” (1994, p. 25). Como a putrefação avança mais depressa do que a duração materialmente exigida para a exposição do corpo, a efígie do soberano surge como substituta:

Vestida com todos os seus adornos e dotada com as insígnias do poder, é ela que vai presidir, durante quarenta dias, as refeições e as cerimônias da Corte. Unicamente ela recebe as homenagens; enquanto a efígie estiver exposta, o novo rei deve permanecer invisível. Assim, dos dois corpos do rei, o perecível e o eterno, é o segundo que vem ocupar seu manequim de cera pintado (1994, p. 25).

Ou seja, há mais na cópia do que no original. A lição é borgeana. O fato leva Debray a concluir que a verdadeira vida está na imagem fictícia e não no corpo real: “Uma religião fundada sobre o culto dos antepassados exigia que eles sobrevivessem pela imagem” (DEBRAY, 1994, p. 23). A mesma coisa, em outras palavras nos diz Dario Vellozo, ao se referir, no livro Horto de Lisis, às estátuas funerárias que evocam nas fisionomias clássicas, a Hélade majestosa, frizando que “têm sorriso de vida as estátuas dos mortos” (1969, p. 19). No entanto, e o próprio Dario sugere, antes de continuar produzindo vida, a morte produz a metamorfose das formas. A perda exige uma produtividade. A palavra metempsicose, do grego meta: mudança + psique: alma, indica a transmigração da alma, de um corpo para outro. Tratava-se de uma crença difundida amplamente por várias culturas. Acredita-se que Pitágoras, a quem Dario rendia culto e louvores, tenha sido um dos filósofos que acreditaram nesse processo que foi assimilado por Platão, em Leis e Timeu, como sinônimo de reencarnação. Poderíamos pensar na metempsicose como uma alegoria da própria relação estabelecida entre as imagens. Voltemos a Debray. Este afirma que a imagem é, na origem e por função, mediadora entre os vivos e os mortos, e de forma mais sucinta “um verdadeiro meio de sobrevivência”. Não se trata de perceber que a imagem, transformada em monumento, recebe grifado em seu semblante a palavra “lembra-te”, ou a expressão sintomática de um “isso foi”, de que nos fala Barthes, em Câmara Clara, mas que ela, funcionando como a presença de uma ausência, nos convoca a tarefa de participar da metempsicose, da transmutação alquímica de um estado a outro, em outras palavras, nos convida a traduzir. Se na metempsicose a alma troca de corpos, na poesia talvez não seja diferente. Temos o percurso traçado.
Ao me interessar pela poesia de Dario Vellozo, inevitavelmente fui seduzido pela possibilidade de pensar na “maturação póstuma” das palavras que já se fixaram, para usar uma expressão de Walter Benjamin em “A tarefa do tradutor”. Tratava-se de imaginar uma sobrevida para uma poética que se considera muitas vezes extinta. A pesquisadora Regina Elena Sabóia Iorio, na sua tese de doutoramento, da UFPR, Intrigas e Novelas, Literatos e Literatura em Curitiba na Década de 20, afirmou que o Simbolismo do Paraná definhou sozinho, deixando em seu lugar somente um vazio, como um ancião solitário e abandonado que não deixou descendentes. Uma leitura como essa, que desconsidera a pervivência do simbolismo numa linhagem da poesia do presente, está fadada a ler o passado como algo estático e isento de tensões significantes. Com isso, não pretendo sugerir a descendência de Dario Vellozo ou outros poetas de seu movimento em poetas contemporâneos. Podemos pensar na ausência de descendentes, mas apenas na medida em que uma afinidade não posse ser definida de maneira satisfatória em termos de uma “identidade de ascendência”, como sugeriu Benjamin, isso porque preferimos pensar em uma história dialética que combina um modo de “vir-a-ser’ e “extinguir-se” numa protopaisagem petrificada. A tradução põe em cheque qualquer pretensão de semelhança. Para Benjamin, traduzir só é possível, em essência última, caso não se ambicione alcançar alguma semelhança com o original. Isso porque na continuação da vida, o original se modifica. Dario, ao sobreviver, transforma e é transformado pela tradução de sua poética. Leminski, na esteira das concepções de tradução que lhe chegavam pelos concretistas, escreveu que o que se chama inapropriadamente de tradução é a “construção de um novo objeto, homólogo ou análogo, uma paródia – canto paralelo, ao Primeiro”. Por isso, tentei desenvolver a ideia de que a poesia de Dario não deve necessariamente ser lida como um manancial artístico, de onde brotam as características exploradas pela poesia do presente, mas como uma poesia que lhe deve também existência a partir de sua sobrevivência. Vale lembrar que a fomentação modernista da revista Joaquim, criada por Dalton Trevisan na década de 40, obliterou a tradição simbolista, considerada pela maioria dos jovens da Joaquim como uma manifestação literária provinciana e  ultrapassada. Coube a poetas como Paulo Leminski negar o pai para despertar o avô.
Procurei me afastar de uma leitura que discutisse apenas as características formais semelhantes em ambas as poesias, simbolista e poesia contemporânea, percebendo que o que estava em jogo era acima de tudo uma concepção de poesia pautada por uma noção de abandono, abandono tanto da ideia da literatura tomada como expressão de um sujeito, quanto a ideia de que a literatura poderia expressar a realidade. Por isso, recorri à leitura de Leminski, quando este afirma que o que Dario Vellozo cultuava era a irredutibilidade do signo icônico ao signo verbal, concepção que traduzia uma experiência sígnica presente em concretistas e outros contemporâneos. Peço licença para repetir uma das citações de Leminski, usadas no trabalho, que define a experiência icônica, que, segundo o poeta, é extraordinariamnte concreta:

Ícones dizem mais do que as palavras (símbolos) com que tentamos descrevê-los, esgotálos, reduzi-los.
O ícone é o signo, parcialmente motivado, que tem algo em comum com o seu referente, eco, rima, reflexo, harmonia expressiva, visual ou acusticamente, no plano material dos signos, no significante.
Este mistério da participação do signo incônico na natureza do seu referente, mistério material, produz uma taxa de informação estética incomparavelmente maior do que aquela que consegue gerar os símbolos, signos imotivados, arbitrários, meras concenções imateriais

 E é por pensar na relação entre Dario e os poetas do presente como uma questão de tradução, que optei por fazer da noção de sobrevivência uma figura recorrente em todo o trabalho. Dario traduz o paganismo assim como Leminski traduz Dario. Lembremos que para Benjamin, a tradução reforça o mesmo e o outro, a repetição e a diferença, a memória e o esquecimento, produzindo, nesse sentido, uma reflexão que parte da aceitação da perda de uma origem estável e da impossibilidade de se pensar a tradução em termos de uma recuperação racional de significados. Se por um lado a tradução é incapaz de significar algo para o original, por outro, na traduzilbilidade encontra uma forma de “sobreviver”. É nesse ponto que procurei discutir a relação entre a poesia simbolista de Dario e a de uma linhagem que lhe é contemporânea. Se o paganismo da Antiguidade sobrevive na poesia de Dario e se a poesia de Dario de certa forma sobrevive na poesia do presente é porque a “continuação da vida” abre ambas as obras a um anacronismo que nos permite pensar a sua poesia  como possuidora de uma força capaz de interagir com outras forças, criando efeitos de sobrevida que transformam e são transformados ao longo do tempo. 
A pesquisa, desde o princípio, estava fadada a conviver com algumas dificuldades. A primeira delas era conferir ao trabalho um maior alcance de pesquisa e originalidade, o que se espera de uma tese de doutoramento. O fato de escolher a poesia de Dario Vellozo – ou de ter sido por ela escolhido – contribuiu para definir um percurso muito pouco trilhado por pesquisadores. Dario é hoje figura quase desconhecida no próprio Paraná, quiçá no Brasil. A maioria das dissertações e teses sobre ele, a que tive acesso, é de cunho historiográfico e enfoca no mais das vezes o seu perfil de educador, livre-pensador, maçom, ocultista. Assim, a fortuna crítica de Dario-poeta se nos mostrou escassa e incapaz de definir um caminho seguro, bem como de mapear o posicionamento de sua recepção, ou de traduzir um cenário literário quase extinto na literatura produzida no Paraná. Urgiu-se mergulhar em arquivos de bibliotecas na expectativa de desenhar um panorama que nos ajudasse a ler a poesia por ele produzida, procurando sair de uma zona de conforto ao buscar conexões que não apenas permitissem retirar Dario da província, como perceber de que maneira a sua sobrevivência se delineava.  
Aos poucos, foram aparecendo textos de Nestor Vitor, João do Rio, Brito Broca, Araripe Júnior, Andrade Muricy, Cassiana Lacerda Carollo, Cláudio Willer, Lúcia Miguel Peireira, Phileas Lebesgue, entre outros, que em algum momento escreveram sobre o poeta do Templo das Musas. Era preciso dialogar com essas leituras para definir um cálculo de horizontes de possibilidades que poderiam ser trilhados. 
Foram também, aos poucos, e durantes as disciplinas cursadas no programa de pós-graduação, surgindo pontos de contato entre os objetivos iniciais e as leituras assimiladas, o que de certa forma, foi fundamental no processo de consolidação da tese que estava sendo burilada. As leituras de Georges Didi-Huberman, Walter Benjamin, Aby Warburg, Giorgio Agamben, entre outros, não foram apenas motivo para citações que preenchessem o corpo do texto. Elas não só justificavam as hipóteses, como me ajudavam a enxergar detalhes até então desconhecidos, permitindo que Dario Vellozo fosse posto em uma rede anacrônica, cujos fios ligavam seu pensamento não só à Hélade pagã e ao simbolismo e decadentismo, mas também a gestos contemporâneos que integravam movimentos como o da patafísica, o dos acephálicos, e o de alguns poetas do presente. Esse ecletismo num primeiro momento pareceu ser um ponto fraco no trabalho, podendo abrir margem para uma leitura que o considerasse raso e não delimitado. No entanto, pareceu-me quase impossível tratar do poeta sem enfocar a multiplicidade de aspectos e interesses que envolviam sua prática. Dessa maneira, escolher um aspecto em detrimento de outros, poderia fazer a pesquisa ganhar em profundidade, mas perder aquela qualidade que considero a mais importante do objeto escolhido, a pluralidade e o de-lyrio de Dario. Por isso, procurei aliar vários elementos que subjazem na sua obra a uma leitura que não se restringisse ao mero apontamento, mas a um dedicado estudo que enxergou nesse “bazar” filosófico e literário uma potência significativa. Ou seja, desde o princípio, desenvolver uma fala plural foi uma tentativa de estabelecer um diálogo com um poeta que me pareceu plural. Daí a recorrência proposital de várias imagens, que iam da caveira e do caleidoscópio à nuvem, passando pela ilha utópica de Atlântida aos gestos patafísicos e acephálicos.    
Outra dificuldade com a qual me deparei foi a tentativa de ler Dario Vellozo de maneira não reverencial.  Não intentava eu recolocar o poeta no jardim das Musas, rendendo-lhe louvores ou acendendo-lhe velas. Se por um lado a figura de Dario Vellozo me seduziu a ponto de lhe dedicar quatro anos de pesquisa, por outro, era necessário dele me distanciar, situando-me no limiar de uma leitura monumental e modernista. “Há de estar apartado dos olhos para se poder ver”, diria-nos Padre Vieira, em um de seus Sermões. Com isso, não almejava conquistar uma postura crítica cientificista e religiosa, tendo em vista que transformamos e somos transformados pelos objetos que apreciamos. A eles nos misturamos, a ponto de precisarmos, às vezes, à maneira de Joseph Joubert, fechar os olhos para poder ver. Foi quando imaginava não suportar mais os poemas de Dario, ou seja, quando adotei uma postura menos apaixonada, que vislumbrei a possibilidade de começar a lê-los. O que em hipótese alguma diminuiu a admiração por aquela que considero uma das figuras mais curiosas da belle époque brasileira.
Iniciava aí uma nova etapa da pesquisa e a poesia simbolista foi surgindo como uma máquina de produzir imagens, um caleidoscópio que desorientava os tempos e os textos, o que permitiu uma abordagem das sobrevivências de Dario Vellozo em uma linhagem da poesia do presente que vai de Paulo Leminski a Ricardo Corona, Cláudio Daniel, entre outros. Aliás, é de Leminski o ensaio inédito encontrado no arquivo da biblioteca da Fundação de Cultura de Curitiba, que abriu as portas para a leitura desenvolvida.  No texto, intitulado “O templo de Dario: um poema de pé, um poema de pedra”, Leminski além de fazer referência ao Templo neoclássico que o simbolista construiu no bairro e Vila Isabel, em Curitiba, comparou o longo poema Atlântida, de Dario, aos Cantos, de Ezra Pound, e enxergou no nefelibata um “corpo estranho” na Curitiba do final do século XIX e início do século XX. Aliás, foi como um “corpo estranho”, que Andrade Muricy definiu o simbolismo brasileiro. A leitura de Leminski, não só no ensaio inédito, mas em outros textos também, contrasta com a postura da revista Joaquim que encontrou no movimento fomentado por Dario o sintoma de um provincianismo e de um dandismo datado e estéril. Antonio Candido, em artigo publicado na mesma revista, considerou o movimento simbolista do Paraná medíocre, por fomentar uma mera “literatura de raio-de-luar”. Entenda-se aqui “raio-de-luar” como o sintoma de uma poesia que não soube sintonizar os problemas do homem e do mundo com a arte. Nesse sentido, estaríamos diante de uma poesia provinciana que teria como intuito seguir um modelo europeu. Para Candido, a poesia simbolista seria uma poesia menor, não no sentido que lhe dá Deleuze, em Kafka, por uma literatura menor, mas no critério de valor. Em 1942, quatro anos antes de condenar o simbolismo paranaense na revista Joaquim, o crítico publica na Folha da Manhã o artigo “Notas de crítica literária – Poesia ao Norte”, em que observa que “a poesia moderna, a partir do Simbolismo, tende a ser menor” (CANDIDO, 2002, p. 129). Menor no sentido de que a poesia teria deixado de lado os grandes temas do passado e as preocupações políticas e sociais para voltar-se para a cisão entre o eu e o mundo. No mesmo texto, depois de observar que essa poesia já não é mais cantada, escrita ou falada, mas apenas “sussurrada”, Candido afirma que o poeta se desdobra, assim, em “esforços desesperados para tornar aéreo, leve, imponderável o vocabulário da poesia” (2002, p. 130). E ironicamente conclui: “No limite (como compreenderam os surrealistas, depois dos pós-simbolistas), a perfeita poesia seria a sugestão total, a iniciativa deixada de todo leitor; seria – por que não? – a página em branco”. O contraste entre a leitura da Joaquim, que rendia tributo ao argumento de Candido, e a leitura de Leminski nos permitiu analisar com mais cautela a postura do nefelibata e perceber na nuvem um signo não só da desconstrução da matéria, mas de um pensamento político que soube, segundo Leminski, enxergar com mais clareza as transformações estéticas e sociais no final do século. Se o trabalho com a linguagem propiciado pela adoção de uma turis ebúrnea implicava uma política da poesia e pela poesia, a busca política da Atlântida implicava por sua vez um trabalho com a linguagem que permitia ao poeta produzir um poema que desenvolvia um nacionalismo com bases míticas e não sociológicas, como o de Gilberto Freyre, que publica Casa Grande & Senzala no mesmo ano em que Dario escreve Atlântida, ou seja, 1933. A tensão entre o nefelibata e o mitólogo nacionalista mostra que a relação entre o poeta e seu tempo é tão forte quanto aquela pautada pelo interesse pela Grécia antiga. E se Dario recorria ao mito, não só em Atlântida, mas em grande parte de seus poemas, era mais para devolver potência ao texto, no sentido baudelaireano, do que para lamentar o momento de decadência e de degeneração de raças, como tratou Brito Broca, em Vida Literária o Brasil -1900. Não é à toa que em Atlântida, Dario faça um elogio à mestiçagem, defendendo a miscigenação e situando no Brasil a terra em que surgiria uma raça cósmica, aproximando-se assim das idéias de Jose Vasconcellos. Se Atlântida, com seu preciosismo lingüístico, fazia sentido depois de Memórias Sentimentais de João Miramar e Macunaíma, aí é outra história.      
No longo poema, Dario recorre à fábula platônita que foi imagem recorrente em textos de cunho esotérico e imagina depois da queda do Continente a sobrevivência de três de seus habitantes justamente em solo brasileiro. Com isso, o poeta pretendia desenvolver uma cosmogonia que partindo da Atlântida, passava pelo Egito, pelas civilizações pré-colombianas e pelos druidas para encerrar com a equação Atlântida-Brasil. No poema, Dario intercala versos livres a uma métrica regular, criando passagens extremamente elípticas, ideogramáticas à maneira de Ezra Pound que soube, em seus Cantos, aproximar a escrita oriental da poesia moderna, mostrando-nos que uma cultura só pode figurar em uma epopéia em forma de caleidoscópio. Aliás, é como caleidoscópio que procurei ler a poesia do final do século XIX e início do século XX, ou seja, como uma máquina de produzir imagens e, por meio dela, reinventar a paisagem na sua decadência, permitindo que o invisível invada o visível e que se opere a determinação de uma indeterminação, como observou Décio Pignatari, ao se referir a Mallarmé. Não seria fortuito observar que esse caleidoscópio simbolista sobrevive como prótese do olhar, ou seja, como cinema, nos poemas, por exemplo, de Ricardo Corona. Wilson Bueno chegou a caracterizá-los como “poemas-câmera”. Ao produzir um livro para além do ver, “posto que perscruta e tateia”, Corona estaria devolvendo potência a um procedimento simbolista, por excelência.  
Naturalmente, essa máquina de malícias visuais percorre não apenas os poemas de Dario, como também os seus gestos de poeta travestido de grego, trajando vestes helênicas e turbante marroquino a desfilar pela pacata Curitiba da belle époque, o que despertava a curiosidade e o riso da população. O fato não parece caracterizar um gesto provinciano ou simplesmente carnavalesco, bem como não está distante das provocações de Alfred Jarry que intentou com a patafísica desenvolver uma espécie de mitologia contemporânea, pautada pela abolição da linha divisória entre arte e vida. O projeto dessa abolição parece ser o cerne da conjunção dos contrários, princípio oriundo do ocultismo, que demarcou a poética de Dario, bem como a de Alfred Jarry. O curioso desfile de Dario seria considerado por Ricardo Corona como o gesto precursor da performance no Brasil, atividade que será apropriada por Corona em suas atividades literárias e musicais. Ao fantasiar-se, Dario cede o “eu” ao “outro”, materializando, assim, em seu próprio corpo, um princípio rimbaudiano assimilado pela poesia simbolista, ou seja, o abandono da literatura tomada como expressão de um sujeito. Essa busca por uma nova mitologia, que subjaz nos gestos simbolistas de Dario e patafísicos de Jarry, ou mesmo acephálicos de George Bataille, parece levar adiante a proposta do filósofo alemão Shelling. Assim como ele, Dario, Jarry e Bataille, intentaram desenvolver uma espécie de religião sem igreja, para usar um termo de Asger Jorn. Bataille mergulhando na busca pela conjuração sagrada, que o levou a inventar uma seita e disseminá-la entre amigos interessados; Dario por meio do seu simbolismo e neo-pitagorismo, bem como pela criação do grupo Cenáculo; e Jarry, pela estranha sociedade patafísica. Em ambos, a literatura pareceu funcionar como uma espécie de laboratório de soluções imaginárias.   

Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling, no fragmento intitulado “Programa sistemático”, ao observar que o filósofo tem de possuir tanta força estética quanto o poeta, dirige à poesia uma dignidade superior, aproximando-a da religião. Para Schelling, o filósofo necessita de uma religião sensível: “politeísmo da imaginação e da arte, é disso que precisamos” (1979, p. 43). Ainda com o filósofo: “Falarei aqui pela primeira vez de uma Idéia que, ao que sei, ainda não ocorreu a nenhum espírito humano – temos de ter uma nova mitologia, mas essa mitologia tem de estar a serviço das Idéias, tem de se tornar uma mitologia da Razão”:

Enquanto não tornamos as Idéias mitológicas, isto é, estéticas, elas não terão nenhum interesse para o povo; e vice-versa, enquanto a mitologia não for racional, o filósofo terá de envergonhar-se dela. Assim, ilustrados e não ilustrados precisarão, enfim, estender-se as mãos, a mitologia terá de tornar-se filosófica e o povo racional, e a filosofia terá de tornar-se mitológica, para tornar sensíveis os filósofos. Então reinará eterna unidade entre nós. Nunca mais o olhar de desprezo, nunca mais o cego tremor do povo diante de seus sábios e sacerdotes. Só então esperar-nos-á uma igual cultura de todas as forças, em cada um assim como em todos os indivíduos. Nenhuma força mais será reprimida. Então reinará universal liberdade e igualdade dos espíritos! Será preciso que um espírito superior, enviado dos céus, funde entre nós essa nova religião; ela será a última obra, a obra máxima da humanidade (SCHELLING, 1979, p. 43).

Gostaria aqui de apontar alguns pontos que não foram devidamente abordados na pesquisa e que considero como caminhos passíveis de serem trilhados. Concentrei-me nas sobrevivências de Dario Vellozo na poesia do presente. Essas sobrevivências percorrem, como tentei observar na tese, não apenas os poemas, mas também a concepção de uma experiência poética pautada por uma noção de abandono. Uma das questões que poderiam ser pensadas dizem respeito à correspondência trocada entre Dario Vellozo e Gonzaga Duque, bem como entre Dario e Philéas Lebesgue, um francês que apresentou Dario para a comunidade francesa no Mercure de France, e cujas cartas encontram-se na Fundação da Sociedade dos Amigos de Phileas Lebesgue, em La Neuville-Vault, no interior da França. A correspondência entre Dario e Gonzaga Duque, está dividida entre o arquivo da Fundação Casa de Rui Barbosa e o arquivo do Instituto Neo-Pitagórico, em Curitiba. Algumas dessas cartas, publicadas por Vera Lins e Cassiana Lacerda Carollo já deixam entrever um fértil diálogo que pode nos ajudar a pensar não só a obra de Dario e a de Gonzaga Duque, como também questões mais abrangentes que vão desde a relação entre arte e pensamento, que seriam sintomáticas no expressionismo, à relação entre crítica e poesia. Outro ponto que pretendo esmiuçar diz respeito à crítica produzida pelos simbolistas. 
Sabemos que a crítica por eles produzida não estava desvinculada de suas experiências poéticas, o que nos leva a considerar que ela, em grande parte, estava pautada pelo enigma. Essa crítica parece ter sido uma primeira tentativa, entre nós, talvez ainda inconsciente, de produzir um pensamento que não desejava ser apenas criativo, mas principalmente enigmático, no sentido proposto por Benjamin, ou mesmo na ideia da negatividade de que nos fala Agamben. Curiosamente, é também a crítica que foi menosprezada por boa parte dos pesquisadores, que muitas vezes a tratou pejorativamente como impressionista e falível, justamente por não ser sistematizada, como foi a “nova crítica”, que encontrou em Afrânio Coutinho um de seus adeptos mais fiéis no universo acadêmico brasileiro. O argumento de Afrânio Coutinho é o de que a crítica impressionista, produto de um individualismo romântico, “exagera a reação instintiva, pessoal, transformando-a na medida de tudo” (1975). Para ele, a crítica impressionista institui a supremacia do sujeito e de suas impressões, não conseguindo sair do estágio da submissão da obra, o primeiro a que se refere Tristão de Ataíde. Para Tristão de Ataíde, a crítica é atravessada por um movimento tríplice: “O da submissão à obra, o da dissecação da obra e o da recomposição da obra através das impressões recebidas” (ATAÍDE apud COUTINHO, 1975, p. 155). Dessa maneira, muitos historiadores e críticos não hesitaram em tratar a crítica simbolista, preconizada por figuras como Gonzaga Duque e Nestor Vítor, como uma crítica menor.
Giorgio Agamben, no prefácio de Estâncias chama a atenção para o fato de que se a crítica se identifica hoje com a obra de arte, “isso não acontece por ela também ser criativa, mas sim por ela ser também negatividade” (2007, p. 10). Nesse sentido, mais do que reencontrar o objeto, dissecá-lo, como fizeram os estruturalistas, na expectativa de explicar o funcionamento de um aparelho, de uma máquina, de um corpo, a crítica deveria garantir “as condições da inacessibilidade desse objeto”. Ainda no prefácio, o filósofo italiano, tocado pelas questões da negatividade, lembra de uma cisão que se produziu desde a origem de nossa cultura e que, segundo ele, se costuma aceitar como realidade natural. Agamben se refere à cisão entre a filosofia e a literatura, que se solidificou a partir de Platão. Resultado: A poesia acaba gozando do objeto sem o conhecer. E a filosofia, por sua vez, conhecendo o objeto sem o possuir.
O que Agamben está querendo mostrar é que essa cisão merece ser interrogada já que a poesia pode se voltar para o conhecimento, assim como a filosofia pode se voltar para o gozo, para a alegria.  E aqui, abrindo um parêntese em nossa reflexão, não poderíamos nos furtar de perceber o interesse que um filósofo como Agamben vem nutrindo pela literatura, como uma possibilidade para o próprio filosofar, assim como uma série de críticos literários vêm se interessando cada vez mais pela filosofia como uma forma de reflexão sobre a literatura.
As colocações de Agamben sobre a cisão nos incitam a uma reflexão sobre a crítica, que “não representa nem conhece, mas conhece a representação” (AGAMBEN, 2007, p. 13). Essa operação nos convida a “buscar o gozo daquilo que não pode ser possuído”, bem como “a posse daquilo que não pode ser gozado” (2007, idem). O que nos leva a questionar o significado da crítica, problematizando-a a parir da etimologia da palavra, que vem do grego Krinein, que quer dizer “julgar”. Relembremos que, para Tristão de Ataíde, a crítica deveria obrigatoriamente passar pelos três estágios: “O da submissão à obra, o da dissecação da obra e o da recomposição da obra através das impressões recebidas” (ATAÍDE apud COUTINHO, 1975, p. 155). Mas hoje, pergunto, que sentido tem para um crítico perguntar simplesmente se determinada obra é boa ou má em um momento em que as certezas, os julgamentos de valor, são cada vez mais abaladas. Se a sua tarefa é garantir as condições da inacessibilidade de um objeto, parece cair por terra o binômio bom/mal que encerra um julgamento de valor e a figura do crítico como um juiz do Tribunal da Santa Inquisição. Assim, o papel do crítico seria o de desestabilizar a obra, devolvendo potência a ela, tornando-a enigmática, e não apenas julgando-a. Bastaria lembrar das colocações de Walter Benjamin sobre a fissura criada pelos românticos na tradicional concepção de crítica:

Apenas com os românticos se estabelece de uma vez por todas a expressão “crítico de arte” em oposição à expressão mais antiga “juiz da arte”. Evitava-se a representação de um tribunal constituído diante da obra de arte, de um veredito fixado de antemão como lei escrita ou não escrita (...) (2002, p.58).

 Tradicionalmente, o crítico é aquela figura autorizada que, antes de dar o veredito, decifra os mistérios da obra, como se o livro se constituísse como um manancial de segredos merecedores ora de um “sim”, ora de um “não”. Mas ao invés de falar em segredos, prefiro pensar em enigmas. Para Mallarmé, na poesia deve sempre haver enigma, ele é o objetivo da literatura. O mesmo enigma - o indizível - que Agamben (2006) apontaria no poema “Eleuzis”, de Hegel, dedicado a Hölderlin. Advém daí uma concepção de poesia enigmática, em que tudo o que é sagrado e quer permanecer sagrado se envolve em mistério, como diria o poeta de “Um lance de dados”, no artigo “L´Art pour le tous” (PEYRE, 1983, p. 37). Se o enigma é o objetivo da literatura, porque não o seria também da crítica? Um dos filósofos que se dedicou ao estudo do enigma foi Walter Benjamin. Em uma das passagens de seu ensaio Las afinidades electivas de Goethe, Benjamin contrapõe o comentador ao crítico, descrevendo aquele como uma espécie de químico e este como um alquimista.  Pensemos numa fogueira em chamas: enquanto que para o químico só interessa como objeto de análise madeiras e cinzas, para o alquimista só a chama mesma conserva um enigma: o da vida (BENJAMIN, 2000, p. 14).  
Em um recente artigo, Vera Lins abordou a crítica produzida pelos simbolistas, especialmente a de Gonzaga Duque e Nestor Vitor, percebendo nessa crítica uma “negatividade moderna” exercida no ensaio que desfaz idéias prontas e procura produzir uma nova reflexão com um direcionamento utópico ou heterotópico.
A questão da negatividade, apresentada pela pesquisadora, está intimamente ligada com a negatividade de que nos fala Agamben, justamente por se tratar também de uma inacessibilidade. Se a crítica não desfaz o enigma da arte, como afirma Vera Lins, é porque o objeto lhe escapa. Gonzaga Duque, por exemplo, no texto Salão de 1905, opta por descrever a misteriosa mulher que encontra no salão e não as obras, como seria o esperado. A impossibilidade de alcançar a mulher, como no Trobar provençal, é alegoria da impossibilidade de alcançar a obra na crítica. A jovem, uma espécie de passante baudelaireana, é alegoria da própria arte, figurando como o infinito e o eterno, bem como o contingente e o transitório. O autor de Mocidades Mortas, Horto de Mágoas e Graves e Frívolos parece ter consciência disso, o que o leva a praticar uma crítica que tem consciência da necessidade de garantir a inacessibilidade do objeto. Assim não se trata apenas de considerar que a verdadeira contribuição do simbolismo quanto à apreciação e leitura do texto seria a crítica poética, como defende Cassiana Lacerda Carollo (1981). A não ser que essa crítica poética seja entendida também como materialização de uma negatividade.
O que se percebe na maior parte dos simbolistas brasileiros é que a teoria padece de sistematização; - o que pode não ser tão ruim assim. No entanto, ela passa a ser delineada principalmente nos textos de criação em que “o interesse converge para a discussão de conteúdos e formalizações que devem sustentar a construção do poema” (CAROLLO, 1981, p. 95). A teoria das correspondências de Baudelaire talvez consiga explicar esse acontecimento, pois a concepção de escritura, em sentido lato, para o poeta simbolista não dissocia crítica e criação, o que o leva a problematizar a cisão entre a filosofia e a literatura. Vale lembrar que a maioria dos simbolistas foram leitores de filósofos como Nietzsche e Schopenhauer. É a figura do poeta como pensador e a figura do crítico como alquimista, como dizia Benjamin. Isso ocorre pois a vocação para a analogia, a valorização do símbolo e da sugestão, nesse poeta nefelibata, está relacionada com a figura do poeta como o “tradutor e decifrador de hieróglifos inscritos na natureza, abrindo caminho para os debates da crise da palavra” (CAROLLO, 1981, p. 285) que atinge todos os domínios de escrita. Não seria fortuito observar que esse traço da crítica os simbolistas devem à leitura dos românticos alemães, para quem a crítica é muito menos o julgamento de uma obra do que o método de seu acabamento. Neste sentido, assim como os românticos, eles fomentaram a crítica poética, superando a diferença entre a crítica e a poesia. Benjamin lembra na sua tese sobre o conceito de crítica de arte no romantismo alemão que para os românticos o termo “crítico” significava “objetivamente produtivo”: “Ser crítico implica elevar o pensamento tão acima de todas as conexões a tal ponto que, por assim dizer magicamente, da compreensão da falsidade das conexões, surgiria o conhecimento da verdade” (2002, p. 56). Em Origem do Drama Barroco Alemão, Benjamin observa que a verdade é um conteúdo do belo, no entanto, não aparece no desvelamento, mas em um processo que se poderia designar como um incêndio da obra. No já citado ensaio sobre Goethe, o filósofo defende que “só se completa a obra o que primeiramente a quebra, para fazer dela uma obra em pedaços, um fragmento do verdadeiro mundo (...)” (BENJAMIN apud DIDI-HUBERMAN, 2005, p. 174). Talvez pudéssemos pensar nessa operação como a busca de uma imagem dialética, que Didi-Huberman chamou de “imagem crítica”: “uma imagem em crise”, uma imagem que nos obriga a escrever um olhar, não para transcrevê-lo, mas para constituir-lo (2005, p.172). Didi-Huberman recorre a uma das alegorias de Benjamin para potencializá-la: a imagem de uma constelação face aos corpos celestes que ela organiza e que gera um estado de choque. É a noção dialética dominada em Benjamin por uma função jamais apaziguada do negativo. Didi-Huberman responde ao argumento de Benjamin observando que se as obras inventam novas formas, “que há de mais elegante, que há de mais rigoroso que o discurso interpretativo inventar por sua vez novas formas, ou seja, a cada vez modificar as regras de sua própria tradição, de sua própria ordem discursiva” (DIDI-HUBERMAN, 2005, p. 178-179). A imagem dialética deveria ser entendia, assim, como forma e transformação, de um lado, e de outro, como conhecimento e crítica do conhecimento, sendo, portanto, comum ao artista e ao filósofo (DIDI-HUBERMAN, 2005).
Se a crítica simbolista continuar sendo lida como um mero impressionismo crítico que é insuficiente no processo de análise, a cisão de que nos fala Agamben não será superada, pois de um lado estará o “conhecimento seguro”, personificado nas palavras de José Veríssimo e seus seguidores; e de outro, os imagistas nefelibatas, que segundo a crítica tradicional não fez crítica, mas apenas relato de impressões. O preconceito sofrido pela categoria dos “derrotados”, como Nicolau Sevcenko (1995, p. 103-104) caracterizou os artistas periféricos da belle époque, do qual faziam parte os simbolistas e decadistas, teria como causa, entre outros fatores, a recusa ao academicismo que reinava no período. Nestor Vitor, por exemplo, em um artigo publicado no jornal O Globo, em novembro de 1929, observou que em Gonzaga Duque havia algo de um revel, de um irreverente ao academicismo, aliás como em todo simbolista que se prezasse (1979, p. 244). Essa irreverência migrava para o plano da linguagem, fazendo o crítico adotar um estilo artístico, “cheio de neologismos e de propositadas heresias sintáticas (...)” que seriam estranhas a qualquer parnasiano ou naturalista. 

 Se atentarmos para o fato de que boa parte da crítica produzida pelos simbolistas tinha consciência da inacessibilidade como elemento primordial da crítica, teremos então encontrado, nesses estranhos dandys do século XIX os precursores da boa crítica contemporânea. Tal crítica, a meu ver, consegue garantir justamente a inacessibilidade, com isso conseguindo reinventar a cada passo seus métodos, seus olhares, suas posições, seus abismos. Essa é uma das questões que pretendo continuar estudando, procurando discutir a potência do ensaismo de Nestor Vítor e Gonzaga Duque, por exemplo. 

Caio Ricardo Bona Moreira

A banca examinadora foi composta pelos professores: 
Susana Scramim
Antonio Carlos Santos
Alberto Pucheu
Raúl Antelo
Carlos Capela

A todos, agradeço pela preciosa e inesquecível contribuição. 

Texto em homenagem a Francisco Filipak, lido na Sessão da Saudade, da Academia de Letras do Vale do Iguaçu, em 2010


Boa noite a todos. Gostaria, inicialmente, de cumprimentar a presidente da Academia de Letras do Vale do Iguaçu, a senhora Terezinha Wolff, cumprimentar também o excelentíssimo diretor da Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória, o bacharel Valderley Garcia Sanches e ao cumprimentá-lo, estender a saudação às demais autoridades que aqui se encontram bem como a todos os presentes, amigos professores, diletos acadêmicos da FAFI e da ALVI, familiares do saudoso professor Francisco Filipak, comunidade em geral.
Em nome do Colegiado de Letras, quero externar a nossa satisfação em participar da Sessão da Saudade, da ALVI, em homenagem àquele que foi uma das figuras mais proeminentes desta instituição de Ensino Superior. E falar também da minha honra em ocupar hoje a cadeira que durante anos pertenceu ao professor Filipak, a de literatura. O que de um lado significa uma grande alegria, de outro, representa uma grande responsabilidade, aquela de estar à altura dos ensinamentos do sábio professor que, consciente da impossibilidade de separar a arte da ciência, foi ao mesmo tempo, professor e poeta, tendo, assim, a autoridade para falar de literatura não apenas com saber, mas também com sabor. Sabemos que professores vocacionados como Francisco Filipak são insubstituíveis, cabendo a nós, seus continuadores tentar manter acesa aquela luminária por eles acendida. Aliás, Luminária foi o nome escolhido por Filipak para a revista oficial da FAFI, lançada em 1972. No prefácio da publicação, nosso querido mestre comentava o motivo da escolha: “Luminária, como diz o seu nome, vem lançar uma luz sobre os fatos da nossa história, nossas letras, nossa cultura, nossas belezas telúricas do Vale do Iguaçu”. A revista, idealizada também por ele, continua viva e mantém o vigor das primeiras edições, sendo a prova de que uma luz forte, inteligente e permanente, está fadada a continuar irradiando eflúvios de sabedoria e investigação científica.
Por vezes, na ilusão do eterno presente, esquecemo-nos de que o que somos hoje, enquanto instituição, se deve não apenas ao nosso trabalho, mas principalmente ao trabalho de todos aqueles que, ao longo dos tempos, dedicaram, incansáveis, horas, dias, meses, anos, de força, amor e dedicação, à edificação de uma comunidade acadêmica voltada para a consolidação de uma sociedade mais justa, igualitária, inteligente e feliz, tendo como armas de trabalho, os livros, o conhecimento, e o amor pela troca de experiências. Lembro-me que tive o prazer de conhecer e ouvir o professor Francisco Filipak nas dependências da FAFIUV. Falava ele sobre a criação da revista Luminária e relembrava a famosa Antologia do Vale do Iguaçu.    
A Antologia merece um comentário à parte. Em 1976, Filipak, juntamente com o professor Nelson Antônio Sicuro, reuniram pela primeira vez, textos de um seleto grupo de escritores, oriundos da região do Vale do Iguaçu, que se dedicaram às letras regionais. Poetas, contistas, cronistas, romancistas e historiadores de municípios como União da Vitória, Rio Negro, São Mateus do Sul, Cruz Machado, Irati, Palmas, Porto União e Canoinhas figuraram no livro que recebeu o sugestivo título de Antologia do Vale do Iguaçu. O livro, fruto de um trabalho de pesquisa executado com presteza e fôlego, reuniu obras já publicadas de poetas e prosadores de renome e produções literárias até então desconhecidas. “Norteados pelo espírito de fraternidade e pelo desejo de estreitar cada vez mais os elos de amizade e colaboração entre os dois Estados irmãos”, como sugeriu Francisco Filipak na apresentação, os organizadores passaram às mãos dos leitores páginas inspiradas nos valores culturais do Vale do Iguaçu. 
Em 2010, depois de 34 anos de publicação da primeira antologia e em comemoração aos 50 anos da FAFIUV, o Colegiado de Letras decidiu retomar as pesquisas sobre a produção literária da região, entendendo que o compromisso do curso é também o de mapear, investigar e divulgar a literatura produzida no Vale do Iguaçu, um precioso bem cultural e simbólico do sul do Brasil. O projeto foi intitulado Memórias Poéticas do Vale do Iguaçu. Foi uma forma que o setor de Literatura do Colegiado encontrou não só de dar continuidade à brilhante ideia de Francisco Filipak e Nelson Sicuro, mas também de homenagear esses dois professores que marcaram profundamente a história do nosso curso e da nossa Faculdade. Francisco Filipak, por meio da professora Fahena Porto Horbatiuk, tomou conhecimento do nosso trabalho, antes de partir, e entusiasmado, preparou uma série de trovas telúricas que foram incluídas na nova antologia. São poemas inéditos que demonstram a versatilidade e o conhecimento do poeta Filipak, bem como o seu amor pelo Paraná. Agradecemos carinhosamente à família Filipak, pela autorização da publicação desse precioso material.  

O nosso poeta e professor sabia que a literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, pode nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. Em um mundo onde imperam a violência, a desunião e a exacerbada valorização dos bens materiais, Filipak optou pela poesia. Armas? Não. Flores. Hoje, se me pergunto por que esse íntegro professor amava a literatura, a resposta me vem espontaneamente: porque ela o ajudava a viver. Segundo Todorov, não é mais o caso de pedir a ela, como ocorria na adolescência, que nos preservasse das feridas que poderíamos sofrer nos encontros com pessoas reais; em lugar de excluir as experiências vividas, ela nos faz descobrir mundos que se colocam em continuidade com essas experiências e nos permite melhor compreendê-las. Não creio ser o único a vê-la assim. Mais densa e mais eloqüente que a vida cotidiana, mas não radicalmente diferente, a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e imaginá-lo. Ela nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo. Longe se ser um simples entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas, ela permite que cada um responda melhor à sua vocação de humano. Francisco Filipak sabia onde estava pisando. Nós, do Colegiado de Letras, agradecemos ao poeta e professor, por ter, não apenas fomentado a criação do nosso curso, mas também por ter dividido conosco, o que significa somar, seus conhecimentos, sua humildade, seu prazer pelo estudo da linguagem, seu amor pela educação. Crendo na existência de esferas cósmicas superiores, projetamos nosso pensamento, desejando que nosso sentimento de saudade e gratidão seja sentido pelo querido mestre em uma outra dimensão, uma dimensão que julgamos desconhecer, mas que talvez nos permita uma comunhão, toda vez que lembrarmos do mestre, com carinho, ou mesmo quando lermos sua bela poesia.

Prof. Caio Ricardo Bona Moreira
Colegiado de Letras - UNESPAR