O FILME QUE VIROU POEMA

Poderia falar mil coisas sobre “O homem que virou suco” (1981). Dizer que é um filme político – como se isso fosse uma particularidade capaz de lhe conferir uma identidade –; um filme sobre a saga de um nordestino na São Paulo do final dos anos 70; um filme sobre a grande metrópole capaz de transformar a vida de um homem; um filme sobre o fracasso de um pobre paraibano. Mas não. Prefiro dizer que é um filme poético. Não esqueçamos que o paraibano protagonizado por José Dumont é um poeta. O fato de fazer poesia transforma Deraldo em um sujeito estranho numa cidade que coloca o “capital” em primeiro lugar. Mas é graças à poesia que o personagem consegue entrar e sair da mesma lógica que o faz um “marginal”.
Por que o poeta não consegue sobreviver na cidade grande? É que cada vez mais sua maneira de ver o mundo não condiz com a anti-lírica dos arranha-céus. Não que não haja espaço para a poesia na cidade (Não é à toa que o concretismo traduziu a urbanidade paulista com a força imagética do concreto armado e do lirismo des-armado). Espaço há, mas estão interditados.
Por que o poeta consegue sobreviver na cidade? É que o poeta paraibano faz da cidade um lugar fora do comum. Não que consiga criar uma saída. Ele consegue encontrar outras entradas. Circula por todos os lugares: do meretrício à luz da lua ao pátio da praça e da construção civil. Neles, vai deixando os “rastros”, as pétalas de fogo, as margens de uma linguagem além linguagem. A palavra do paraibano não mora em lugar nenhum, por isso em todos os lugares. Deraldo não cabe em um mundo sem literatura. O poeta sobrevive porque inverte o jogo. Sobrevive porque veste o "gibão" de um cangaceiro que encara de frente um bando de transeuntes.

Deraldo José da Silva (José Dumont), logo no início do filme, encontra uma vizinha, que o questiona: “Você pensa que a vida é só cantar, seu Deraldo? A vida é dura. É garrar no batente”. Ele responde: “Ôh, dona Mariazinha, na sua concepção isso aqui (poesia) não é trabalho, não?” “Isso é diversão, homem! Por que não faz igual o Zé, meu marido, que garra no batente desde as seis horas da manhã e só volta à noite.” O poeta, sem pensar, e vendo a condição miserável da vizinha, dá a Mariazinha um tapa de luva: “Descobri agora porque é que vocês vivem tão bem!”. A cena basta. O poeta esperto percebera que o valor pregado pela comadre não trazia felicidade nem conquistas; o discurso implícito na fala da vizinha, a de que o trabalho braçal dignifica o homem, só poderia soar como uma estranha falácia aos ouvidos do poeta que descobriu cedo que numa cidade como aquela o "trabalho braçal" só possibilitaria ao homem não morrer de fome.
Ao longo do filme, Deraldo é confundido com Severino, o operário que assassinara um rico industrial. As fotos de Severino estampadas no jornal levam Deraldo a sofrer uma série de preconceitos que se somam ao fato de ser poeta e nordestino. Poderia ser pior?
Deraldo, colocando em prática o que Nietzsche chamaria de Amor Fati, transforma a desgraça em graça, talvez por amor ao destino. Procura Severino e escreve o poema contando toda a história: “O homem que virou suco”. O filme virou poema.
"O homem que virou suco", de 1980, foi dirigido por João Batista de Andrade. Ganhou, entre outros, o prêmio de melhor filme, no Festival Internacional de Moscou, em 1981.
Caio Ricardo Bona Moreira
quero ver esse filmeee
ResponderExcluirdeve ser muito bom mesmo...
bjo amore
saudadess
valeu pelo cometário, sabe q seu comentário é de grande valia :)