sexta-feira, 29 de julho de 2011

Literatura mediana ou crítica mediana?: “Então você quer ser crítico?” (Sobre o livro Então você quer ser escritor? e uma crítica)

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“Velai o rosto, ó cientistas da crítica!
– o bom crítico é... o artista da crítica"
Adolfo Casais Monteiro





Pergunto-me o que é pior, uma literatura mediana ou uma crítica mediana? Será possível circunscrevê-las em territórios estanques e seguros? Será possível ao crítico julgar uma literatura como mediana sem lambuzar os dedos, sem perceber que para julgá-la dessa maneira deve produzir uma crítica que não seja também mediana? O que estou querendo dizer é que uma crítica mediana pode ser tão censurável quanto uma literatura que é considerada como tal. Critiquemos a crítica, façamos literatura. Com isso não quero sugerir que uma é melhor do que a outra. Não se trata também de reiterar a tola cisão entre ambas, que é antiga e improdutiva. Trata-se de observar que se o crítico não se entusiasma com determinada obra, o leitor (quizás un crítico, mira, mira!) tem todo o direito de não se entusiasmar com uma crítica. Como leitor, defendo aqui, a título de piada, a disseminação de um novo gênero: a crítica da crítica. Ele não é novo, mas deveria ser mais valorizado por jornais e revistas, e não apenas pelos tratados acadêmicos. Críticos deveriam ser tão louvados ou execrados quantos os escritores que eles estão dispostos a analisar (julgar).

Depois de ler o mais recente livro de Miguel Sanches Neto, a reunião de contos “Então você quer ser escritor?”, deparei-me com uma crítica do livro produzida por Marcos Pasche, intitulada “Entre oito e oitenta” (Jornal Rascunho: maio de 2011). O crítico começa o seu texto observando que, diante de extremos - o “livro grandioso” ou o “péssimo” -, a tarefa da crítica ganha certo conforto. Para Pasche, seria muito mais fácil criticar as ótimas obras e as péssimas obras, do que as medianas. De início, estamos diante de um ponto problemático, já que o fenômeno literário não se entrega fácil aos charmes de um crítico-juiz, aquele que possui uma autoridade: “Esta obra é grandiosa”, “esta é péssima”. Reduzir a obra a um juízo de valor como esse é perigoso. Penso que a crítica exige um tipo de entrega que suplanta as meras noções de valor. Depois de ready-mades como o Urinol, de Duchamp – para citar o exemplo mais óbvio e um dos mais curiosos – o que fazer com as noções tradicionais de valor? Terá o crítico a mesma autoridade de um juiz do Tribunal da Santa Inquisição? Talvez, mas apenas no sentido de que esse juiz tenha a consciência de que os lugares do tribunal e suas vozes são intercambiáveis. Somos todos juízes (talvez a palavra não seja mais essa), réus, algozes, vítimas e testemunhas. Somos todos responsáveis pelo crime literário. Sem direito à fiança. Logo, essa zona de conforto, do crítico que julga sem lambuzar os dedos na lama, parece-me cada vez mais ineficaz. Walter Benjamin, em “Conceito de crítica de arte no romantismo alemão”, fez uma lúcida afirmação ao observar que com os românticos se estabeleceu de uma vez por todas a expressão “crítico de arte” em oposição à expressão mais antiga “juiz da arte”, evitando-se a representação de um tribunal constituído diante da obra de arte, “de um veredito fixado de antemão como lei escrita ou não escrita”.

Voltemos ao texto de Pasche. Ele escreve que os livros medianos são mais desconfortáveis para a crítica, precisamente “por se situarem numa terceira via, a qual, neste contexto, não costuma ser muito fértil, visto não ser tão curta a ponto de inviabilizar o trânsito, nem tão longa a desafiar o horizonte e nos impulsionar ao deslocamento”. Essa é a impressão que lhe causou o livro de Miguel Sanches Neto, “Então você quer ser escritor?”. Convém ressaltar que Pasche não deixa muito claro o motivo de considerar o livro como mediano, o que por si só bastaria para colocar seu texto no rol das críticas medianas. A justificativa mais convincente, porém ainda não satisfatória, advém do argumento: “O autor (Sanches Neto) nunca escreve de forma rasteira; não cede aos azulejos frios da abstração nem se embala pela chapa quente dos tiroteios neonaturalistas; também não decai na gozação banalizada que se acredita transgressora nem se confina na seriedade experimental refratária a qualquer espontaneidade. Tanto na prosa quanto no verso, o paranaense não se submete aos receituários da época, revelando um trabalho elaborado com idoneidade e autonomia. No entanto, mesmo a evitação dos vícios somada a essas virtudes não conferem às peças em questão maior expressividade”. Que idoneidade e autonomia é essa a que se refere Marcos Pasche? Não seriam suficientes? Que expressividade é essa que falta a Miguel Sanches Neto? Ficamos sem saber. O crítico, com esse argumento, pressupõe uma obra ideal, o que ela deveria ser em relação às outras obras, aos outros autores. Nota-se que o crítico parece se colocar em um lugar bastante seguro. Mas seria esse lugar suficiente? O analista contenta-se em julgar. O fato me faz lembrar de um livro quase esquecido de um intelectual também quase esquecido. Trata-se do estudo “Clareza e mistério da crítica”, de Adolfo Casais Monteiro. Em uma das passagens do belo livro, lemos que “a função da crítica não será pôr um rótulo definitivo em cada obra, em cada autor, mas atualizá-los permanentemente, conservá-los vivos, tirar deles o valor e o sentido que, por mais variável, se conserva permanentemente atual pelo seu poder de repercutir e reviver em nós, por muito diferentes que sejam as sucessivas interpretações”. Encanta-me a expressão usada por Casais Monteiro: “conservá-los vivos”. Se a boa crítica tem o poder de conservar vivos um autor e uma obra, isso se deve ao fato dela revestir-se de uma característica inquestionável: a capacidade de doar vida à literatura, dar força, devolver potência. Para que isso aconteça, a crítica deve lambuzar os dedos.



Nota-se que Casais Monteiro percebeu na década de 60 (o livro é de 1961) – momento que sofríamos com o excesso do Estruturalismo e da crítica marxista – que criação e crítica não são elementos opostos. Cito mais uma colocação: “(...) nada nos impede, essa é que é a verdade, de supor, também, que a crítica não está na dependência da obra anteriormente criada – mas que apenas a continua, a prolonga, e, assim, não se distingue dela por oposição”. Não sei se o autor dessas linhas era um leitor de Walter Benjamin, mas provavelmente leu com interesse os românticos alemães, e, convenhamos, aprendeu a lição.

Creio que uma crítica mediana pode ser pior do que àquela apaixonada, que execra ou acende uma vela à obra que está disposta a ler. Pasche, ao não exercitar a crítica apaixonante (ele escreve que “o estudioso inevitavelmente contamina seu juízo pela paixão” – ó inquisidor), abandona aquilo que Casais Monteiro considerou como algo fundamental para o exercício crítico: a paixão. Segundo ele, a paixão “não tem o significado de cegueira, nem de demência, mas indica precisamente aquela força comunicativa que se opõe ao frio raciocínio. O frio raciocínio nunca poderia levar um crítico a tomar partido, porque o caracteriza precisamente aquela presunção de objetividade à qual se deve por uma grande parte a má fama de que goza a crítica pelos seus repetidos malogros, e a freqüência com que prefere os autores de segunda (ou medianos, para aludir à expressão de Marcos Pasche), quando não de terceira ordem, os quais precisamente não perturbam o frio raciocínio, por isso mesmo que perturbar não é virtude sua”.

Em determinado momento, Pasche escreve que Miguel errou ao “não alicerçar sua forma narrativa sobre técnicas de composição que garantiriam ao conjunto maior densidade estética”. Forma narrativa? Densidade estética? O que é uma densidade estética? Os pressupostos do crítico estão intimamente ligados a uma linhagem modernista – autonômica - que pensava a literatura como forma e não como força. Em outra passagem, defende que, nos contos do livro, não há uma penetração aguçada no interior dos personagens, os quais, segundo Pasche, vivenciam “situações de grande tensão emotiva, as quais são relatadas com escassa tensão narrativa”. Pergunto-me se a tensão narrativa a que se refere o crítico não estaria nos pequenos detalhes que compõe os textos: na “coisa visguenta” que mancha o vestido da protagonista do conto “Sangue”; nas “árvores submersas” que dão nome a um dos textos (um dos mais bonitos do livro, por sinal); nos olhos do filho, que iluminam a narrativa de “Animal Nojento”; no misterioso personagem que é descrito em “Não comerás carne”, uma espécie de irmão pródigo; na vida que poderia ter sido e não foi, em “Duas Palavras”; na aventura e prazer que se convertem em asco, em “Redentor”; na vida que não é mais, em “O último abraço”. Outros pontos poderiam ser destacados. O livro, em sua heterogeneidade temática, parece guardar ainda elos, fios, redes subterrâneas. Penso que os contos guardam afinidades eletivas entre si. Não são secretas, mas tênues. Trata-se da vida que escorre, como aquela “coisa visguenta”, do conto. Estados estão em constante transformação nos contos de Miguel Sanches Neto. Não se trata de exigir deles grandes tensões narrativas, como quer Pasche, mas de perceber nessas pequenas transformações – na vida que escorre, que é e não é sempre a mesma – acidentes, acasos, desastres que transformam constantemente seus personagens, que são e não são todos nós.

Se eu me julgasse um juiz, certamente olharia para a crítica de Pasche, lembrando de Fellini, e daria a minha nota: entre oito e oitenta, 8,5.

c.moreira