quinta-feira, 5 de março de 2009

Não faz mal, é MERZ!



Em fevereiro de 2008, visitei a exposição Kurt Schwitters (1887-1948) O artista MERZ, no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba. O museu do olho, em parceria com a Pinacoteca de São Paulo, apresentou 100 trabalhos de Schwitters vindos do Sprengel Museum de Hannouver – Alemanha. Obras como Abstraktion n°9 (Bindeschlips) / H Abstraktion 3 (Bindeschlips), 1918; Merzz 101 Dorf; bem como o conjunto Ohne title figuraram entre a “parafernália”, como Haroldo de Campos caracterizou os detritos, lascas e aparas do artista alemão. Aliás, Haroldo de Campos dedicou um ensaio à análise do trabalho de Schwitters. O texto foi publicado no suplemento dominical do Jornal do Brasil e posteriormente incluído em A arte no horizonte do provável. Para Haroldo, a redescoberta do mundo perdido do objeto domina a obra de Schwitters e “se constitui em ágil trampolim para a sua busca incessante do objeto em si, do eidos da expressão poética ou plástica”. Eu já havia lido o texto antes de visitar a exposição, mas para mim ele só fez sentido depois que pude conferir de perto o “júbilo do objeto” no museu. É que eu conhecia até então absolutamente nada do trabalho de Schwitters. Chamou a minha atenção em especial os objetos da coleção “Sem título”, em que o artista levou às raias da loucura o princípio da montagem. Parece-me que o caráter gráfico dessas colagens não é mais provocador do que o modo como elas são “operadas”, a partir de “cortes e costuras”. Digo isso pensando no próprio nome, tornado nome próprio por Schwitters, com o qual imaginou o direcionamento de todo o seu trabalho: a palavra MERZ, não custa lembrar, foi extraída da segunda sílaba de KOMMERZ, de um anúncio em que se podia ler: KOMMERZ UND PRIVAT BANK.
Schwitters sabia que seu trabalho não poderia ser enquadrado em vanguardas como o expressionismo, cubismo, futurismo e “ismos” outros, istos e aquilos. A ousadia que o levou a caracterizar toda a sua obra como MERZ foi a mesma que o levou a se auto-intitular MERZ: o artista como “ready-made”.
Mas digo tudo isso apenas para chegar num outro lugar. Acabo de ler o ensaio Babel e a harmonia do grotesco, que o crítico argentino Raul Antelo publicou no livro Subjetividades em devir, organizado pelas professoras Célia Pedrosa e Ida Alves, a partir de trabalhos apresentados no Seminário Internacional de Poesia Contemporânea: identidades e subjetividades em devir, ocorrido na Universidade Federal Fluminense, em 2007. O livro traz textos interessantíssimos, como o da professora Susana Scramim, da UFSC, que discute na poesia de Marcos Siscar o ato de fazer-se coisa, experiência que a pesquisadora já encontra, a partir de uma perspectiva anacrônica, nos poetas simbolistas. Aliás, Marcos Siscar também participou do evento, apresentando uma reflexão sobre a questão do verbal e do visual na literatura contemporânea a partir de uma re-leitura do texto Crise de vers, de Mallarmé. Para mim, esses dois textos somam-se com o do professor Raul Antelo como os mais interessantes do livro. Mas voltemos a Schwitters!
Haroldo falava da busca incessante do objeto em si, na arte MERZ. Raul Antelo, preocupado também em pensar a singularidade nos dispositivos de Schwitters, no entanto indo além da leitura concretista de Haroldo, mergulha em um poema do artista que havia sido publicado na revista Transition, a mesma que publicou algumas passagens de Finnegans Wake, de Joyce. No paramito do artista alemão, que desenvolve uma mescla anacrônica de primitivismo e vanguarda, Antelo percebe um artifício voltado “não mais para reproduzir o aparente, mas para gravar e incidir na figura, uma tatuagem no corpo da voz, donde a linguagem transforma-se em mero contato sonoro e tátil, uma dimensão háptico-óptica da experiência moderna como mero mimetismo discursivo”; um procedimento que, além de lançar a pergunta: “Quem fala no poema?”, indica já uma possível resposta: “O sujeito que fala no poema não se materializa senão como referência a si mesmo no sussurro de uma voz que afirma tão somente a sua voz. Tatuagem que não é apenas tatuagem no corpo (Irezumi, diria-nos Sarduy, no posfácio de Corpografia, de Josely Vianna Baptista), mas tatuagem no corpo da VOZ, como aponta Antelo. A questão aqui parece oscilar entre a opção de Mallarmé, que acreditava ser “le Langage lui-même” e a de Valery que entendia ser “le Langage issu de la voix, plutot que la voix du Langage”.
Essa dimensão do mimetismo discursivo, em Schwitters, que está além do tradicional mimético, e que desenvolve uma dimensão háptico-óptica da experiência, tal como a quarta-dimensão de Marcel Duchamp, leva o crítico a falar em uma estética da imagem ausente, que pode ser percebida nos “textos babélicos contemporâneos”, onde predomina a noção de uma comunidade inconfessável e inoperante. Raul Antelo contrapõe essa opção a da poesia urbana modernista, da Paulicéia Desvairada de Mário de Andrade ao Poema Sujo de Ferreira Gullar, que apostou num conjunto comunitário.
Por trás de dessas escolhas a questão do Poder é pungente, e salta aos olhos no paramito de Schwitters (Grande parte de seu trabalho foi destruído quando, em 1936, a Alemanha nazista tentou banir da face da terra a “arte degenerada”). Para finalizar gostaria de lembrar que a MERZBAU, idealizada por ele em 1933, foi montada no Museu Oscar Niemeyer, no ano passado. Tive o prazer de entrar nessa escultura transitável. Nela, senti-me em casa. O que estava lá era uma versão construída a partir de registros fotográficos, tendo em vista que muito pouco restou das versões realizadas por Schwitters. Não faz mal, é MERZ!
c.moreira

segunda-feira, 2 de março de 2009

As imagens, novamente...

Didi-huberman vem tocando em problemas fundamentais da história da arte. Poderíamos partir da idéia, presente nos trabalhos do filósofo francês, de que diante da imagem, estamos diante do tempo. Em Ante el tiempo, Didi-huberman alude a um dos relatos de Kafka para afirmar que estaríamos diante da imagem como diante do marco de uma porta aberta. A abertura da imagem poderia ser associada àquela porta que se abre diante do tempo. Ele nos chama a atenção para um dos afrescos do Convento de São Marcos, em Florença, pintado no século XV pelo Frei Angelico. O contraste entre as paredes pintadas a cal e o quadro roxo salpicado de “manchas erráticas”, que se perpetuou como uma constelação de fogos de artifício ou estrelas fixas, gera uma deflagração do tempo, capaz de mostrar que “ante una imagen – tan antigua como sea -, el presente no cesa jamás de reconfigurarse” e que “ante una imagen – tan reciente, tan contemporánea como sea -, el pasado no cesa nunca de reconfigurarse”.

Depois de mais de quinhentos anos, descobrimos que as imagens têm mais memória e duração do que aquele ser que mira. O exemplo serve para mostrar que o filósofo está interessado em estudar a imagem como uma construção da memória. O problema que se coloca, segundo Didi-huberman, é como estar à altura de todos os tempos que as imagens diante de nós conjugam sobre tantos planos? A parede do Beato Angelico é pretexto para levantar uma reflexão sobre a história da arte, bem como sobre problemas que direta ou indiretamente estão relacionados a ela, mas não foram devidamente abordados, como o caso da atividade pictórica de Frei Angélico, que estava próxima de uma iconologia religiosa, porém foi obliterada da literatura científica consagrada ao Renascimento.

A pergunta do filósofo é clara: “Em que condições um objeto ou um questionamento histórico novo pode, assim mesmo, emergir tardiamente em um contexto tão conhecido e tão, por assim dizer, ‘documentado’, como é o Renascimento florentino?”. Didi-huberman parece estar bastante interessado em refletir sobre o que poderíamos chamar de “regimes do olhar”. Por que olhar para a Santa Conversação, no Convento de São Marcos, e não olhar o afresco de Frei Angelico? Esse questionamento leva Didi-huberman a questionar o próprio estatuto da história da arte, como disciplina científica. Partir de uma reflexão sobre a questão do tempo, da intersecção de tempos ao longo da história, e de como essa intersecção afeta um regime do olhar, parece ser seu ponto de partida. Necessária ao filósofo a emergência de uma semiologia que não seja nem positivista, nem estruturalista: “Intentar, en definitiva, una arqueología crítica de la historia del arte (...)”. Acreditamos ser bastante conclusiva e esclarecedora a afirmação de Didi-huberman quando se refere que se deter diante de um objeto, no seu caso o muro de Frei Angelico, não significa somente interrogar o objeto, mas principalmente atentar para a questão do tempo: “Tal es la apuesta del trabajo: empezar uma arqueología crítica de los modelos de tiempo, de los valores de uso del tiempo en la disciplina histórica que hizo hacer de las imágenes su objeto de estudio”.

Didi-huberman vê a necessidade do anacronismo, que aparece no interior dos próprios objetos, como uma riqueza: “o anacronismo seria assim, em uma primeira aproximação, o modo temporal de expressar a exuberância, a complexidade, a sobre-determinação das imagens”.

c.moreira

domingo, 1 de março de 2009

Edison Kinetoscope Record of a Sneeze

Fred Ott precisou de muito rapé para espirrar
Não, não se preocupe, nem vai doer!
Duplo artifício: a imagem e o rapé
Porém, com qual dos dois ficar?

1 “The Priming”
O homem se prepara para espirrar
Assim como o menino se prepara, embora em vão,
Para desfrutar as delícias da carne
O verbo que se fez imagem
Ou a imagem que se fez verbo?
João Batista ainda não perdeu a cabeça!
Barnet Phillips também se preparou para escrever o espirro!

2 “The nascent sensation”
Pode ser uma cócega, um cheiro,
Uma imagem tem mil rostos
Mas insisto na imagem
Salomé pedindo a cabeça do santo!

3 “The first distorcion”
Leve mexe o quadril
Salomé antes de entrar no palco
O homem fecha os olhos e respira.

4 “Expectancy”
(...)

5 “Pre-meditation”
Saber do espirro o prazer
De uma pequena morte
E se J.B. tivesse perdido a cabeça por Salomé?

5 “Preparation”
Laforgue, Oscar Wilde, tantos, são todos João
A Serpente dança
O homem prepara o espirro... mais um pouco de rapé, senhores!!!
Não, isso é uma coisa do século XIX... never, never more!


6 “Beatitude”
A paz vem antes ou depois da morte?
J. B. não fecha os olhos para que possa continuar olhando Salomé depois de perder a cabeça:
Vingança ou piedade?
O que acontece entre o antes e o depois do espirro?
Fred Ott ainda poderá responder?

7 “Oblivion”
(...) alguém disse que lembrar é uma forma de Esquecer?

8“Explosion”
Achimmmmmmmmmmmmm!!!!!!!!!!!!

9 “Recovery”
Viu, eu não disse que não ia doer?

c.moreira