terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Sob o signo da queda


O narrador anônimo de Hotel Atlântico, de João Gilberto Noll, inicia suas errâncias em um pequeno hotel do Rio de Janeiro. Lá, ele se depara com o primeiro cadáver da narrativa: “De repente apareceram no topo da escada muitas pessoas, sobretudo homens com pinta de policiais, alguns PMs, e começaram a descer trazendo um banheirão de carregar cadáver”. Ao longo do livro, outras mortes se sucedem como a da americana que o narrador conhece em uma viagem de ônibus para Florianópolis e a de Diva, uma mulher cuja extrema-unção fora dada pelo protagonista travestido de padre. Mas a morte parece não ser o elemento principal deste livro publicado inicialmente em 1987, e que relata a viagem de um homem solitário pelo sul do país.
Considerado o livro mais cinematográfico do escritor gaúcho, Hotel Atlântico foi adaptado recentemente para o cinema por Suzana Amaral, a mesma que filmou A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Como ainda não assisti ao filme, vou me ater a algumas impressões que o livro suscitou.
.

.

Li alguns comentários sobre a obra. A maioria concorda em alguns pontos, como a viagem como eixo em torno do qual gira toda a narrativa. Comecei o texto lembrando que o narrador inicia suas errâncias em um hotel. Vale lembrar que a palavra errância significa também vagar, andar sem destino. Há um paradoxo que é inerente à figura do personagem. A ausência de destino é o seu destino. Fadado a vagar sem ter porquê, até descobrir que o sentido é o próprio vagar. Viajar pode ser também uma errância. Assim poderia ser lida a obra de Noll, muito mais preocupada com o caminhar da narrativa, o fluir das palavras, da sintaxe, com o passeio da linguagem, do que com a história propriamente dita. O primeiro livro dele que li foi Berkeley em Belágio e a primeira coisa que me impressionou naquele texto foi justamente o prazer de ler para percorrer as linhas, e talvez escutar uma música. No caso de Hotel Atlântico, penso que a narrativa é mais cinematográfica que musical, talvez por isso o interesse da adaptação. Uma adaptação mais possível do que Berkeley em Belágio. Aqui, as cenas pedem uma visualização. Vemos muito mais do que ouvimos. Uma narrativa óptica e não sonora, nos termos que Gilles Deleuze discute a distinção entre o realismo e o neo-realismo italiano. Ver não significa aqui pura realidade, nos moldes tradicionais em que ela é pensada. Trata-se de um realismo que pode se referir tanto a uma pretensa realidade como a um possível sonho, ou melhor, pesadelo. Um pesadelo porque o narrador nos é interdito. Sabemos tanto dele quanto do protagonista de Estorvo, de Chico Buarque, que também teima em “errare”. E quase sempre tememos aquilo que não podemos conhecer. Mas há outros detalhes que nos apavoram mais nessa narrativa de Noll. É o caso da recorrência de determinadas imagens, tecidos. A todo momento aparece uma toalha dobrada, uma cortina, um papel, um lençol. Deleuze, em A dobra, Leibniz e o barroco, insistia na idéia de que o barroco é a dobra que vai ao infinito. Dentro do banheirão de carregar cadáver havia um corpo “coberto por um lençol”. A americana, antes de morrer se cobre com um cobertor que estava dobrado no encosto da poltrona dianteira do ônibus. O narrador, em um determinado momento, retira o cobertor e descobre um cadáver. Um lanterninha fecha uma cortina vermelha na porta da sala de projeção de um cinema em Florianópolis. No hotel, o homem retira a toalha em que estava enrolado. No prostíbulo que visita a caminho do Rio Grande do Sul, jaz uma cortina branca rendada. Lá, uma prostituta japonesa, tal qual aquela do conto de Valêncio Xavier, lhe oferece um pijama dobrado, que cheirava bem.

Em Viçoso, o narrador é acolhido em uma paróquia. A mulher que fazia os serviços da casa estendia um lençol branco no varal. Ele recebe uma toalha branca para se lavar, depois de ouvir as palavras de Antonio: “Aqui há sempre uma toalha de banho limpa para quem chega”. Mas assim como chega, o narrador sempre se vai. Na mesma paróquia ele vê uma cama coberta por um lençol branco que caía pelas beiras. E a todo momento alguma coisa está a cair no livro de Noll: “Dei alguns passos tão inebriado de sono, que quase à beira da cama as minhas pernas fraquejaram e eu caí de joelhos no chão”. Em outro momento: “(...) um desequilíbrio e caí sobre um canteiro de crisântemos”. No ônibus: “notei uma bolsa caída aos pés de Susan” ou “A cabeça de Susan caiu para a frente. Eu a endireitei contra o encosto. Me perguntei de novo se nós dois continuaríamos juntos em Florianópolis”. Não fossem os acidentes, os incidentes, que caem sobre algo, apontando para aquilo que não pode ser mudado, talvez ficassem mesmo juntos. Alguém até poderia chamar essa viagem de destino.

Há algum tempo, sobre uma entrevista com o escritor Manoel Ricardo de Lima, escrevi para o jornal urtiga! um comentário sobre o seu livro de poemas Quando todos os acidentes acontecem que poderia nos ajudar a pensar um livro como Hotel Atlântico: “O dicionário nos diz que um acidente é um acontecimento casual, fortuito, imprevisto; um acontecimento infeliz, e de que resulta ferimento, dano, estrago, prejuízo, ruína, desastre; o que se acresce ao principal, o acessório. Um acidente seria o pormenor, o detalhe, a particularidade, o que resulta de contingência, do acaso, dependente das circunstâncias e não da natureza de um ser. Roland Barthes, por exemplo, se dedicou à escrita de incidentes, aquilo que, tal como um acidente, cai sobre alguma coisa. Nesse caso, a coleta de coisas vistas ou ouvidas no Marrocos, em 1968 e 1969. Alguns anos depois, chegou a dizer que a futilidade do incidente, privada de todo comentário, se põe a nu, e assumir a futilidade é quase heróico”.
Assim como os incidentes se traduzem aqui como sintoma de um cair, manchas aparecem como índice de que algo “realmente” caiu e manchou a própria natureza do homem. Em um bar na cidade de Viçoso, sobre a mesa havia uma toalha de pano, manchada de ovo numa beirada. Em Arraiol, no hospital, depois de ter a perna amputada, recebe um pijama cinza que estava com algumas manchas quase imperceptíveis. Ao entrar no Hotel do Rio de Janeiro, notou uma mancha de sangue quase invisível no carpete. Ou na fazenda em que foi levado de carona antes de fugir para Viçoso: “Eu não tinha andado dez minutos quando vi sangue na areia”.
Assim, é sob o signo da queda, do acidente, da mancha, do rastro, da marca, que João Gilberto Noll vai dobrando e desdobrando Hotel Atlântico. Resta saber se essas pequenas sutilezas, que para mim fazem a diferença da narrativa, aparecem, ou melhor, também caem no cinema.

c.moreira

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Catarse cinematográfica: Didi-Huberman e Godard (Imagens apesar de tudo)

Na mesma época em que assisti ao filme Bastardos Inglórios (comentado neste blog), estava lendo o livro Imágenes pese a todo, do teórico francês Georges Didi-Huberman. Agora, com certo distanciamento, percebo aproximações incríveis entre as duas obras.
É em torno de quatro imagens que gira o livro de Didi-Huberman. Quatro fotografias tiradas clandestinamente em agosto de 1944 por membros do Sonderkommando de Auschwitz-Birkenau.

As imagens revelam os métodos de extermínio utilizados pelos alemães na Segunda Guerra. Algumas nem tanto. É o caso da 4ª fotografia, que nada mais é do que um registro fortuito de céu e árvores (provavelmente a foto foi tirada enquanto o fotógrafo fugia para não ser capturado pelo impropério de fotografar, o que confere à imagem um outro nível de sentido). O teórico francês analisa as fotografias perguntando pelas condições em que determinadas fontes visuais podem ser utilizadas como um documento histórico, questionando o conceito de “inimaginável”, defendido por Claude Lanzmann, diretor do documentário Shoah. Lanzmann insistia na idéia de que o Holocausto é inimaginável, e por isso irrepresentável. Para ele, qualquer tentativa de representação visual desse horror seria sintoma de um fetichismo revisionista. Contra esse argumento, apesar de tudo, Didi-Huberman defende que as imagens podem revelar o real, pelo menos de alguma forma.
O livro é composto por duas partes. A primeira desenvolve uma leitura das quatro fotografias supostamente tiradas por um judeu grego chamado Alex, que era membro do Sonderkommando. Foi escrita entre janeiro e junho de 2000 para ser publicada no catálogo da exposição Mémoire des Camps, dedicada a fotografias de campos de concentração e de extermínio nazistas. A segunda parte, inédita até a publicação do livro, foi escrita em 2003, para rebater as críticas que o autor recebeu depois da exposição. Apesar de se deter demoradamente na segunda parte, tentando rebater com veemência as duras críticas recebidas, a segunda parte tem o seu valor. É nela que o autor se debruça sobre História do Cinema, de Godard, e sobre o conceito de “redenção da imagem”, de Walter Benjamin, para mostrar que, contrariamente ao que afirmava Lanzmann, “um simples retângulo de trinta e cinco milímetros salva o horror do real” (a frase é de Godard): “A imagem, não mais que a história, não ressuscita nada em absoluto. Porém, redime, salva um saber, re-cita apesar de tudo, apesar do pouco que pode, a memória dos tempos”.
Recorrendo a Hannah Arent, Didi-Huberman defende que se Auschwitz ultrapassa toda noção de justiça e humanidade, é preciso repensar o direito e as ciências humanas, pois ali onde “fracassa o pensamento” e surge a tentação do impensável “é onde devemos preservar o pensamento”. “Para saber é preciso imaginar”. Ou ainda, saber que devemos aprender a “dominar o dispositivo das imagens para saber o que fazer com nosso saber e com nossa memória”.
.


Mas o que tudo isso tem a ver com Bastardos Inglórios, do Tarantino?
Óscar Brox, numa interessante resenha sobre o filme de Tarantino, lembra que a institucionalização e repetição de determinados códigos cinematográficos para representar a Segunda Guerra Mundial transformou todas essas ficções em uma rua de mão única. Suas imagens perderam a perspectiva do tempo. Brox afirma que, em Bastardos Inglórios, Quentin Tarantino remonta a História à maneira de Godard. Vale lembrar que em História do Cinema, Godard utiliza a montagem como princípio constitutivo da obra. O cineasta toma imagens das mais diversas e as sobrepõe, re-significando-as, fazendo vibrar o sentido das imagens do passado com “a possibilidade de um novo significado”. Exatamente o que faz Tarantino, ao “destruir o caráter orgânico e totalizador de sua ficção”, para construir outra com tantas ramificações a nossa imaginação exigir. Assim, seguindo ainda os argumentos de Brox, “o filme exorciza a dor das vítimas através de sua vingança, devolvendo-as o golpe com as mesmas armas com que o Terceiro Reich estendeu sua hegemonia: a linguagem, as imagens”. Em outras palavras, Tarantino potencializa uma catarse cinematográfica ao reescrever não só a história, mas também a história do próprio cinema, o que faz Godard, apesar da distância que os separa. O cineasta reabilita as imagens desgastadas pelo fascismo e “a representação temerosa de romper com o seu signo trágico. E, para isso, cabe remontar o material prévio, reescrever o mundo cinematográfico e tratá-lo como uma contingência sobre a que podemos construir um novo mundo. (...) Por isso reabilitar as imagens liquidando-as com a força dessas mesmas imagens implica necessariamente em reinventar a história, ou seja, matar Hitler”.
Didi-Huberman escreveu Imágenes pese a todo alguns anos antes do surgimento de Bastardos Inglórios, mas a frase bem poderia servir à obra de Tarantino: “Ao desconstruir os relatos, as crônicas historicistas, esta (a imagem) se volta capaz de um realismo crítico, ou seja, de julgar a história, de eliminar o tempo oculto dos vestígios”. O teórico francês se refere aí ao cinema, especificamente, onde a imagem pode alcançar o tempo. Um processo que Godard desenvolve através da montagem e que pode ser percebido também nas quatro fotografias analisadas por Didi-Huberman. Imagens que, de uma maneira ou outra, constroem uma determinada narrativa que remonta a própria história.


c.moreira


Referência da resenha de Óscar Brox, sobre Bastardos Inglórios

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

A ESTÓRIA MATOU A HISTÓRIA

.
Na última cena de Bastardos Inglórios, Aldo Rayne, protagonizado por Brad Pitt, olha para o seu parceiro, depois de marcar com uma suástica a testa do coronel Hans Landa e diz: “Acho que essa pode ser muito bem a minha obra prima”. A frase bem poderia ter sido pronunciada por Tarantino.
Muitas coisas rolando na cabeça depois de assistir ao filme. A maioria dos expectadores vai ao cinema para ver Tarantino e não Bastardos Inglórios. É quando o autor fica mais importante que a sua obra. Nesse caso, não foi diferente. Quase todas as críticas que li sobre sua película mais recente apela para as obras anteriores como parâmetro de análise, o que pode ser um problema. De um lado, espera-se uma superação do que foi produzido antes, o que cada vez fica mais difícil de acontecer – todo mundo sempre quer um filme melhor. O crítico, assim, acaba forjando uma olhar “modelado” - repetir é entendido como sintoma de esgotamento. De outro, ao contrário, espera-se sempre o mesmo Tarantino. Se a obra não estiver à altura das anteriores, então deve ser jogada no lixo. Penso ao contrário, que essas questões devem ser pensadas de modo dialético. REPETIR e DIFERIR pode ser a grande estratégia de um cineasta.
Quase todos são unânimes em afirmar que a filmografia de Tarantino é marcada por um estilo que une elementos da cultura pop, boa trilha sonora, roteiro exemplar, diálogos bem construídos, muito sangue. E principalmente as constantes referências ao próprio cinema, a cineastas de sua predileção, a filmes dos mais variados gêneros, a cenas memoráveis (por mais toscas-KIT que sejam), e a atores que povoam seu imaginário. Pois bem, repetir esse repertório cinematográfico é claro, só pode ser uma bela forma de homenagem. A cada vez que alguma referência aparece no cinema de Tarantino, desde os faroestes de Sergio Leone, em Kill Bill, ou John Wayne e Aldo Ray, materializados na personagem de Aldo Rayne, ou mesmo ao universo da nouvelle vague, em Bastardos Inglórios, sem falar no interesse pelo mundo Pulp, em Pulp Fiction, pois bem, a cada vez que uma referência desse tipo aparece – às vezes apenas como um traço, uma dicção - o cineasta o re-significa, atualizando seus gestos. Repito, um procedimento que se constitui como repetição e diferença. E quando esse mesmo procedimento se torna comum no trabalho do diretor, novamente é a diferença e a repetição que marcam sua presença, agora transformadas numa auto-referência. É Tarantino falando do próprio Tarantino. Acredito que esse é o momento mais impressionante que todo artista está fadado a alcançar. Como diria Manoel de Barros, “repetir, repetir - até ficar diferente”. REPETIR É UM DOM DO ESTILO. Portanto, não me venham com esse papo de que Tarantino se tornou repetitivo, que isso é o que todo bom leitor espera de um bom escritor. Por que as pessoas vão ao cinema assistir ao Bastardos Inglórios? Para ver Tarantino, ora! Por outro lado, isso pode gerar uma expectativa que nem sempre se converte em satisfação. Justamente porque desencadeia aquele olhar “modelado”, que falei anteriormente. O expectador só consegue assistir se tiver disposto a comparar a todo momento as obras de um mesmo diretor. Uma crítica escrava da tradição. Bom seria ver Tarantino como se fosse sempre pela primeira vez.
.


Então, vou falar apenas de Bastardos Inglórios. Aí vai uma sinopse. Shosanna Dreyfus vê a família ser assassinada no interior da França pelos capangas do coronel nazista Hans Landa, em um esconderijo. A jovem sobrevive e consegue se estabelecer em Paris. Muda de nome e se torna proprietária de um cinema. Concomitantemente, o tenente Aldo Raiyne chefia os bastardos inglórios, um grupo de soldados judeus americanos que pretendem se vingar dos nazistas. Diga-se de passagem, um grupo extremamente violento - não seria diferente vindo de Tarantino. Rayne e seus parceiros contam com a colaboração de Bridget Von Hammersmark em uma missão idealizada para destruir o cinema de Shosanna com os nazistas dentro. A jovem sobrevivente, sem saber da existência de Rayne, imagina um plano semelhante. O que acontece a partir disso, melhor não contar.
Uma das melhores coisas do filme: Mélaine Laurent, que faz Shosanna. Conheço muito pouco essa atriz. Ué, precisaria? Mélaine Laurent está linda no filme, principalmente no capítulo 3, meio nouvelle vague. Gostei especificamente de cenas como aquela em que ela entra no cinema decidida a queimar nazistas – a mulher frágil que conversara com o coronel Hans Landa no restaurante algumas cenas depois de escapar por pouco de suas mãos, transformara-se em uma mulher fatal (fatal como aparece ao som de David Bowie aguardando a cena do incêncio, fatal como aparece na tela do cinema antes do gran finale: “Eu tenho uma mensagem para a Alemanha, que vocês todos vão morrer, e quero que olhem fundo no rosto do judeu que vai fazer isso”). .


É graças ao cinema de Shosanna que a estória vai matar a história. Guimarães Rosa dizia, no prefácio “Aletria e Hermenêutica”, de Tutaméia, que a história quer ser estória. É justamente o que acontece no filme de Tarantino. Passei o filme esperando para ver se o incêndio se concretizaria. Mas Hitler não morreu em um cinema, pensei eu. Logo, o filme deveria ter um outro desfecho. Provavelmente, Hitler escaparia pelos tubos de ventilação, ou desapareceria tal como gênio da lâmpada. É que estamos acostumados a assistir meta-ficções historiográficas como essa tendo como pano de fundo nossos conhecimentos anteriores. E olha só a maravilha que é o cinema: Nossos conhecimentos anteriores quase não nos servem para nada diante de um bom filme. Basta dizer que, em Bastardos Inglórios, a estória matou a história. Tarantino subverteu nosso mundo, tal como conhecemos - o que nos leva a perguntar: "E se fosse verdade, como teria sido?" Assim, contar uma estória pode ser uma forma de imaginar outras possibilidades de história. Uma história menos fascista, mesmo que seja "tarantinesca". Matou Hitler antes e depois do tempo com uma grande chuva de balas. Só o cinema conseguiu.

c.moreira

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

A morte é uma linda mulher


A morte era Uma Linda Mulher, mas não era Julia Roberts. Usava vestido justo. Tão justo que quase estourava as costuras. E ela usava sapatos tão altos que “pareciam perninhas de pau”. Para Nick Belane, ela era um glorioso pedaço de carne. Talvez não fosse tão bonita assim. Talvez nem fosse bonita. É que ele quase sempre estava bêbado, de uísque ou vodka. A mulher chama-se Dona morte. E Belane é o detetive de Pulp, última novela de Bukowski, publicada em 1994 – ano de sua morte. No livro, Bukowski - que nasceu na Alemanha, mas que viveu a maior parte de sua vida em Los Angeles - trata da morte com o humor “corrosivo” que sempre caracterizou suas narrativas. Pulp não é apenas um livro de despedida. Bukowski o dedica à subliteratura. Isso não é nada fortuito. O gênero pulp sempre foi considerado como literatura menor, não só pela temática, interessada nos breus do submundo, nos ferfis dos vagabundos, nos perfumes baratos das prostitutas, como pela narrativa escrita ao sabor da hora, fluente e ágil feito uma ejaculação precoce. O ritmo é cinematográfico. E a violência, como na maioria do gênero, gratuita:

- Hora de se mandar, companheiro.
- Hora de se mandar, hein? Eu só vou quando me der na telha, porra!
Os drinques o tinham deixado ousado. Isso acontece.
Meti o punho na barriga dele. Estava com a soqueira. Quase atravesso a cara, porra.
Ele caiu.
Eu peguei alguns cacos de vidro do chão. Voltei, abri a boca dele e joguei os cacos lá dentro. Depois, esfreguei-lhe as bochechas e dei-lhe uns tapas. Os lábios ficaram mais vermelhos.


Mais pulp impossível. O livro bem poderia ter sido filmado por Tarantino: A personagem espanca, a vítima cai, o agressor vai embora, o agressor volta, a vítima engole cacos de vidro, seus lábios ficam mais vermelhos. Mais isso não é tudo. O que mais me chama a atenção no gênero é essa capacidade louca e deliciosa de abrir mão da própria literatura. Ou melhor, de uma determinada literatura. E Bukowski, feito São João Batista que entrega a cabeça aos caprichos de Salomé, ainda faz caretas. Goza da própria arte. Assim, ao arremessar sua cabeça pela janela ao precipício rende também uma homenagem aos escritores que o influenciaram. Um dos homenageados é John Fante, que se transforma em personagem de Pulp. Numa das tardes em que estava no escritório, Belane recebe a visita de dois estranhos. Um deles é Fante. A todo momento personagens estranhas entram e saem de seu escritório. Todo bom detetive deve ter um escritório. Mas o melhor do livro ainda são as frases. Algumas bem sacanas, que nada mais são do que “notas de um velho safado”, e que fazem lembrar as “frases filosóficas” de Dalton Trevisan, como essa: “A velocidade da língua de um leproso no peitinho de uma virgem”, ou naquela em que ironiza o sujeito que casou e virou escravo de uma extraterrestre: “- Grovers, você apenas levou uma surra de boceta. Tem muito homem assim”.

Belane não poupa as frases ácidas. Numa das passagens, dentro da livraria onde procura Celine, a mando de Dona Morte, lança a Red, o dono, frases antológicas, como: “É melhor mandar aspirar essa banha. Vai ter um ataque cardíaco. Eles sugam a gordura por um tubo. Você pode botar num pote e olhar, pra lembrar de jogar fora o recheio dos sonhos”. Mas ao longo dessas provocações virtuosas, vai se desenhando um livro sobre a própria literatura. Ainda na livraria, Belane encontra um visitante misterioso que se volta para ele e diz: “Nos velhos tempos a vida dos escritores era mais interessante do que os livros deles. Hoje, nem a vida nem a literatura são interessantes”. O universo pulp pode ser uma resposta a esse desencanto, que não é só com a vida ou com a literatura. É com tudo aquilo que o rodeia, inclusive e principalmente a sociedade do espetáculo: “(...) eu estava deprimido e me sentei numa cadeira com a garrafa ao lado. Não liguei a televisão , descobri que quando a gente está mal essa filha-da-puta só faz a gente se sentir pior. Uma cara chata após a outra, parece não ter fim. Uma procissão interminável de idiotas, alguns famosos. Os cômicos não tinham graça, e os dramas eram de quarta classe. Não havia muita alternativa para mim, exceto o escocês”. É assim também com os serviços de tele-sexo. Belane até tenta estabelecer um vínculo comunicativo com a atendente, mas fracassa. Dá as costas para o mundo. Com isso não quero sugerir que o livro é melancólico. Essa seria a última coisa que esperaria de Bukowski. Os gestos do narrador são de amor ao destino, são gestos de uma atitude afirmativa em relação à vida – e se ela é saudável ou não, isso é uma outra história. Não se importa com os outros e muito pouco consigo próprio. Está à mercê dos acontecimentos e raramente rema contra a maré. O detetive aproveita o momento, quase não teme a morte, busca aquilo que lhe dá prazer, mais a bebida do que as mulheres. Aprecia, é claro, o sexo oposto, mas protela indefinidamente a consumação do prazer. Seu orgasmo é de palavras.

c.moreira

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Cinematógrafo de Letras e outros aparelhos


Em Cinematógrafo de Letras, Flora Süssekind, relembra uma das passagens do livro Vida Ociosa, de Godofredo Rangel, que foi publicado originalmente em capítulos no Estadinho (edição vespertina de o Estado de S. Paulo) e na Revista do Brasil, em 1917:
“Era uma velha máquina, preciosa, que, de empréstimo em empréstimo, se desgovernara desoladoramente. Mas o último empréstimo dera-lhe virtudes raras, muito de meu agrado. Mesmo sem disco tocava músicas de Wagner, ricas de estrépito. Desloquei a mola e ele começou. Primeiro foi um roncar surdo de tempestade que cresce; súbito desencadearam-se trovões rolantes de mistura com guinchos inexprimíveis. Em seguida amainou e pôs-se a piar e a ringir com um acento tão animal que bulia nas fibras do coração”.
A cena apresenta uma das inovações técnicas do final do século XIX e início do século XX. Para Süssekind, a descrição parece desmontar o funcionamento habitual da máquina: “O que se elogia no gramofone não é sua capacidade de reprodução mecânica de sons previamente gravados; é, ao contrário, em meio ao seu desgoverno, uma certa proximidade da natureza, dos ruídos de trovões e tempestade e dos acentos animais”. Assim, o que impressiona, na máquina, não é o seu desempenho técnico, mas é exatamente aquilo que foge do mundo da técnica. Em outras palavras, a representação fornece a ele “nova aura pela própria desfuncionalidade”. O fragmento talvez sirva para ilustrar uma leitura desse estudo de Flora Süssekind, publicado inicialmente em 1987 e reeditado há alguns anos. Venho me interessando muito por esses estudos que tentam mapear e investigar a literatura, a técnica e a modernização no Brasil do final do século XIX e início do século XX. O livro de Flora não trata apenas da literatura dessas décadas de modernização diante do horizonte técnico que se constituía na época. Sugere também uma história da literatura brasileira que leve em conta suas “relações com uma história dos meios e formas de comunicação, cujas inovações e transformações afetam tanto a consciência de autores e leitores quanto as formas e representações literárias propriamente ditas”. Assim, o estudo não está interessado apenas em investigar a agonia da imagem próxima do artesanal frente às influências da fotografia, kinetoscópio, cinematógrafo, cinema, entre outros – como se essas inovações apenas sugerissem novos temas e modos de observar a realidade – mas também discutir a maneira de como a literatura assimilou em termos de linguagem essas inovações. Não se trata apenas de influências, até porque esse processo se deu muito mais a nível de uma tensão potencial constante entre a literatura e a técnica que aparecia: “Aqui, pelo exame da crônica, da poesia e da prosa de ficção dessas mais de três décadas, o que se delineia é um confronto – primeiro hesitante, meio de longe, mais tarde convertido em flirt, atrito ou apropriação – com uma paisagem tecno-industrial em formação”. Em outras palavras, o que Sussekind procurou fazer foi examinar de que maneira a aproximação da literatura com o horizonte técnico passa a “enformar” (a expressão é dela) a produção cultural: “Não se trata mais de investigar apenas como a literatura representa a técnica, mas como, apropriando-se de procedimentos característicos à fotografia, ao cinema, ao cartaz, transforma-se a própria técnica literária”.

Se de um lado João do Rio tratou com encantamento a técnica moderna, intitulando sua coletânea de crônicas publicadas em 1909 de Cinematógrafo – de onde inclusive Flora extraiu o título de seu estudo – de outro, as relações foram mais conturbadas. Em Cinematógrafo, Paulo Barreto (João do Rio) pratica uma espécie de mimesis, tentando pensar a crônica como filme de cinema: “Desejo técnico, ligação via analogia mais do que propriamente via linguagem literária, é como se o cronista assistisse, com certo deslumbramento, à constituição de um novo horizonte técnico e tentasse imaginar relações possíveis com ele”. Nesse sentido, João do Rio não chegou a desenvolver “ligações mais perigosas” com o cinema.
Como não pensar aqui nas “Kodaks”, de Pedro Kilkerry, publicadas na Bahia pelo Jornal Moderno, em 1913, que prenunciaram a “provocação” modernista de Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, e Pathé Baby, de Antonio de Alcantara Machado, obras que não só tematizavam a questão da técnica, mas que também pretendiam “enformar” esse universo dentro dos procedimentos narrativos de corte e montagem: “Aí se encontra uma literatura-de-corte, em sintonia com uma concepção também diversa do cinema, e pouco preocupada em parecer com as fitas, em falar de biógrafos e cinematógrafos. Uma literatura na qual, já incorporados os sustos, dialoga-se maliciosamente com as novas técnicas e formas de percepção. E que não cita a todo momento o cinema. Mas se apropria e redefine, via escrita, o que lhe interessa”. Dessa maneira, Flora Süssekind encontra confrontos menos miméticos entre forma literária e artefatos técnicos modernos, apontando para três procedimentos básicos: imitação, estilização e deslocamento.
Por imitação entende tanto o aproveitamento de gênero e dicção, quanto a mimesis inconsciente da linguagem jornalística. Já a estilização incluiria tanto a reelaboração de recursos próprios do jornalismo quanto a conversão da “experiência de choque” diante da nossa incipiente modernização. Parece ser contra essa experiência de choque que boa parte da obra simbolista e parnasiana se insurge. Quanto ao deslocamento, basta lembrar de Raul Pompéia em O Ateneu, que, se não me falha a memória, Mário de Andrade considerou a última grande obra barroca brasileira (texto publicado em Aspectos da Literatura Brasileira), em que predomina o deslocamento temporal e a memória como eixo que se volta contra a influência decisiva do jornalismo que “parece sugerir um progressivo apagamento da figura do narrador”, construindo assim um caminho alternativo, na direção de uma “afirmação da subjetividade sob o signo da lembrança ou de uma narrativa em digresões”. Caso semelhante é o de Mocidade Morta (1899), de Gonzaga Duque, romance próximo do ensaio, e dos contos de Simões Lopes Neto, regidos pelo tempo da lenda. Esse predomínio da memória, de certa forma, é o que vemos acontecer hoje na literatura brasileira. Basta lembrar de romances como Dois Irmãos, de Milton Hatoum, Leite Derramado, de Chico Buarque, e O Falso Mentiroso e Heranças, de Silviano Santiago. A primeira mulher, de Miguel Sanches Neto. Com a diferença de que nessas memórias o narrador não é mais senhor do que narra. Para finalizar gostaria de lembrar de uma fotomontagem comentada no livro: "Os trinta Valérios", produzida pelo paulista Valério Vieira, realizada entre 1890 e 1900, pela qual recebeu medalha de prata na Louisiana Purchase Exposition, em 1904. No trabalho, o artista apresenta uma cena aparentemente banal do final do século. Uma espécie de sarau musical, em que um grupo se apresenta para uma pequena platéia. O curioso é que todos os personagens têm o rosto de Valério, inclusive os quadros da parede e um busto no canto esquerdo da imagem: "(...) assim como na pintura se esboçavam caminhos diversos da alegoria ou dos quadros históricos, também à própria fotografia foi possível, ao menos no caso dessa fotomontagem, discutir a aura de objetividade e a função exclusiva de documentar que lhe foram atribuídas (...). Discutindo-se, assim, a fé cega que a imagem técnica costumava provocar". Em meio ao furor causado pelas imagens técnicas, veiculadas pelas revistas, publicidade, etc, a fotomontagem de Valério parece desmontar, ou pelo menos "profanar" a idéia de que essas imagens eram garantia de objetividade.

c.moreira

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Tempos de lama e monstros



Omar Calabrese, no livro “A Idade Neobarroca”, defende a tese de que muitos dos importantes fenômenos da cultura do nosso tempo são marcas de uma forma interna específica que pode trazer à mente o barroco. É claro que nunca entramos duas vezes no mesmo rio, como nos dizia o filósofo Heráclito. No entanto, acreditamos que as formas do barroco ainda podem ser equacionadas como problema. Severo Sarduy define o barroco não só como um período específico da história da cultura, mas como uma atitude generalizada e uma qualidade formal dos objetos que o exprimem; “nesse sentido pode haver barroco em qualquer época da civilização”. Calabrese entende esse movimento como categorizações que “excitam” fortemente a ordenação do sistema e que o desestabilizam em algumas partes, que o submetem a turbulências e flutuações e que o suspendem quanto à resolubilidade dos valores. São essas turbulências que nos interessam aqui, especificamente.
Entendido como arte do exagero, do excesso, o barroco deve ser lido também como arte do artifício. Uma das características do neobarroco, que opera a partir da repetição e da diferença do movimento do século XVII é o renascimento da figura do monstro. Calabrese parte de um dado real: “Nos últimos anos, temos assistido, e continuamos a assistir, à criação de universos fantásticos que pululam de monstros. Cinema, televisão, literatura, publicidade, música, têm-nos fornecido uma impressionante galeria de exemplares, embora assaz diversos entre si”. Pensem nos filmes A Coisa, Alien, Poltergeist, Ghostbusters, e Thriller, videoclipe da canção homônima de Michael Jackson, sem contar nos variados trabalhos de Stephen King. Todos eles recheados de monstros que representam não só o sobrenatural, mas o maravilhoso.
Lembremos que a palavra monstro etimologicamente vem do latim, do verbo monstrare, que quer dizer mostrar, indicar, designar, mas também dar a saber, dar a conhecer e expor, contar, referir, relatar, expor à vista, representar etc. Nota-se, então, que a palavra está totalmente ligada à imagem, que é imago, imitago, imitação. E se os tempos contemporâneos são tempos de imagem, são também tempos de monstros. Tempos de irregularidade e desmesura. Ou seja, um tempo neobarroco. A literatura não está imune a esses monstros.

.

Na semana passada, na 3ª Feira Municipal do Livro, promovida pela Fundação Municipal de Cultura de União da Vitória, foi lançada a revista “Lama”, editada por Fabiano Vianna. No evento, Fabiano falou sobre a confecção do periódico, bem como sobre a paixão pelo universo pulp que influenciou a gestação da revista. Segundo o editorial, as revistas pulp, ou pulp fictions (quem não lembra do clássico de Tarantino?) foram publicadas primeiramente nos Estados Unidos entre as décadas de 1920 e 1950, e eram assim chamadas por serem impressas em papel vagabundo por alguns centavos: “as pulps eram um tipo de entretenimento rápido, sem grandes pretensões literárias, mas que faziam a alegria dos fãs do gênero. O leitores acompanhavam a trama, ansiosos pelos próximos capítulos”. A proposta da revista, que se insere numa vasta linhagem de revistas literárias produzidas no Paraná, é instigar a produção de uma literatura pulp brasileira: “Criaturas, psicopatas, vampiros, detetives. Todos estão presentes. Do terror ao suspense. Do realismo fantástico ao horror inimaginável”. Basta pensar na primeira composição que integra a revista, uma fotonovela intitulada “17 e 30 já é noite em Curitiba”, de Fabiano Vianna, em que uma prostituta é assassinada brutalmente por um serial killer, ou o conto “Dr. Hannibal apaixonado”, um dos melhores da revista, de Luiz Felipe Leprevost, em que o narrador sanguinário descreve o amor por Clarice, uma jovem por ele assassinada: “Olha, o abajur ilumina ainda o dia em que Clarice pôs os pezinhos pela primeira vez nessa casa e eu os decepei”. É claro que a monstruosidade apresentada aqui possui uma dimensão política muito forte, mesmo que inconsciente. Uma realidade abjeta que se materializa no literário. A maioria dos textos são de escritores amadores, o que demonstra que a intenção do periódico não é consignar autores renomados, mas revelar novos talentos. O gênero pulp, que geralmente é tratado pejorativamente como menor pelos críticos literários, é explorado com destreza e criatividade pela revista. Nesse sentido, “Lama” aproxima-se das experimentações literárias de colagem desenvolvidas por Valêncio Xavier, aliás, escritor muito apreciado pelo editor. Gostaria de chamar a atenção para o requinte gráfico da publicação, o que é tradição no Paraná desde as revistas simbolistas do final do século XIX. Aliás, há um pequeno detalhe em “Lama” que faz lembrar as revistas simbolistas. Na capa, sobreposta ao título que simula um sangue escorrendo pela parede, aparece uma pequena caveira, imagem fartamente explorada pelos poetas finisseculares. Lembremos que a capa da revista Pallium, lançada em Curitiba em 1898, apresentava também uma caveira, funcionando como um pingo do i. Se de um lado a caveira representa a natureza petrificada da morte, a decadência, por outro, representa o surgimento de algo novo, uma nova realidade. Walter Benjamin dizia que a decadência não implica necessariamente numa desaparição, mas sim no surgimento de alguma coisa que ainda não conseguimos definir. Esse “algo”, aqui, é Lama, uma lama neobarroca, barrocodélica, para usar uma expressão de Haroldo de Campos. Saúdo sua aparição e aproveito para parabenizar a iniciativa da Fundação Municipal de Cultura de União da Vitória, em promover acontecimentos literários como esse.
(publicado originalmente no Jornal Caiçara, de União da Vitória, 20 de novembro, 2009).

c.moreira

O ADEUS A LÉVI-STRAUSS



O pintor Paul Gauguin amou a luz da Baía de Guanabara
O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela
A Baía de Guanabara
O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a Baía de Guanabara:
Pareceu-lhe uma boca banguela.
E eu, menos a conhecera mais a amara?
Sou cego de tanto vê-la, de tanto tê-la estrela
O que é uma coisa bela?
O amor é cego
Ray Charles é cego
Stevie Wonder é cego
E o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem (...)


Caetano Veloso, em O Estrangeiro, música que integra o disco que leva o mesmo nome, cuja capa é a reprodução de uma pintura de Hélio Eichbauer para o cenário da peça de Oswald de Andrade O Rei da Vela na montagem do Teatro Oficina, em São Paulo,1967.

.


Caetano Veloso, que há muito tempo vem se interessando em debater questões relativas à nação, apresentou Lévi-Strauss como personagem na música “O Estrangeiro”. Chamou a sua atenção o fato de o antropólogo não ter simpatizado com a Baía de Guanabara. O francês reaparece, mesmo que implicitamente, na música “Um índio”. O verso “num claro instante” foi extraído ipsis litteris da edição brasileira de Tristes Trópicos. Mas o fato é que a figura de Lévi-Strauss, ou melhor, de sua obra, no bojo do pensamento estrangeiro sobre o Brasil é uma constante na obra não só do tropicalista, mas de vários intelectuais. Em novembro de 1993, Caetano proferiu uma conferência no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro intitulada “Diferentemente dos americanos do norte” (No mesmo ano, a revista Veja - 16 de junho de 1993 - realizou uma matéria sobre o pai do estruturalismo. Nela, publicou fragmentos de uma entrevista em que ele observava de maneira pessimista as transformações sociais lembrando que chegaria o dia, e ele estaria próximo, em que os antropólogos serviriam de “tema de estudo para os índios que andam de carro e avião”. A matéria observa que a moda estruturalista passara. Sua vertente marxista não ressoava mais, e seu arauto, Louis Althusser, morrera louco. Seu veio psicanalista “esfacelara-se em mil igrejinhas já antes da morte de seu xamã, Jacques Lacan”. Restara Lévi-Strauss, pelo menos até essa semana). A conferência de Caetano foi publicada integralmente no livro O mundo não é chato, e também em uma versão reduzida, sob o título “Utopia Z”, na Folha de São Paulo, no suplemento Caderno Livros, em 1994. Em uma das passagens da conferência, Caetano levanta uma breve reflexão acerca da visão pessimista dos estrangeiros sobre o Brasil. Lembra de Contardo Calligaris, que, tendo se apaixonado pelo país, escreveu um “livro devastador das nossas possíveis esperanças”, em que vê nas projeções dos poetas populares da Bahia o nosso possível único esboço de um projeto de identidade e nacionalidade. Nesse contexto, Caetano enxerga no tropicalismo a regeneração do mercado de música popular no Brasil e a elevação do nível intelectual de sua produção e sua crítica, a outro tipo de diálogo com os estrangeiros. Lévi-Strauss reaparece na conferência. Caetano lembra que o antropólogo fez um retrato desalentador da vida intelectual brasileira. Em uma das passagens de Tristes Trópicos, sobre São Paulo, afirmou que no contato com seus alunos da então inaugurada USP, aprendeu, vendo-os “Transpor em poucos anos uma diferença intelectual que se poderia supor da ordem de muitas décadas, como morrem e como nascem as sociedades”. Aliás, nessa época, falo dos anos 30, depois de aceitar o convite de Célestin Bouglê para lecionar sociologia na USP e antes de voltar para a Europa em 1939, Lévi-Strauss vem para o Brasil e faz amizades importantes. Basta citar Mário de Andrade e Oswald de Andrade. A sua comunicação com os modernistas foi profícua. Segundo Fernanda Peixoto, “é Mário quem atrai o casal Claude e Dina Lévi-Strauss para os projetos culturais e científicos implementados em sua gestão (Mário dirigia entre 1935 e 1938 o Departamento de Cultura de São Paulo). Aliás, é a municipalidade de São Paulo, por meio do poeta, uma das financiadoras da expedição de Lévi-Strauss ao Brasil central, realizada em 1937 e 1938” (Folha de São Paulo, 22 de maio de 2005). Durante a expedição, Mário e o antropólogo trocam correspondência. Numa delas, Lévi-Strauss confessa que as condições materiais da expedição eram duras. Em outra, agradece ao material enviado por Mário – livro e ensaio, afirmando que o autor de Macunaíma permitiu que ele se aproximasse de mais um aspecto do Brasil, a música: “Sou-lhe mil vezes grato”. Na carta de 17 de janeiro de 1938, observa que os nambiquara exibiam uma nudez agressiva, o que era uma pena, pois “seus corpos não são bonitos”. E por aí vai.


Em Verdade Tropical, o fantasma do francês também aparece algumas vezes para confirmar o interesse de Caetano por seu pensamento. Mas se no primeiro momento Lévi-Strauss se decepciona com o que encontra nos trópicos, querendo talvez voltar logo para a sua terra natal, por outro, o país o faz repensar toda a sua postura como etnólogo europeu. Relembremos uma das cartas que trocou com Mário em 38: “Quanto à viagem, foi longa e difícil. Mas jamais esquecerei esses oito meses, repletos de experiências apaixonantes. Em termos científicos, creio que recolhemos um belo material, e muita coisa nova. O suficiente para alterar profundamente os conhecimentos atuais. Sinceramente, penso que a expedição marcará época”. Daí um otimismo até aparece para marcar presença. Em uma das passagens finais de Tristes Trópicos, afirma que o indivíduo não está sozinho no grupo e cada sociedade não está sozinha entre outras, o homem não está sozinho no universo: “Quando o arco-íris das culturas humanas tiver terminado de se abismar no vazio aberto por nossa fúria; enquanto estivermos aqui e existir um mundo, esse arco tênue que nos liga ao inacessível permanecerá, mostrando o caminho contrário ao de nossa escravidão, e cuja contemplação proporciona ao homem, ainda que este não o percorra, o único favor que ele possa merecer: suspender a marcha, conter o impulso que o obriga a tapar, uma após outra, as rachaduras abertas no muro da necessidade e a concluir a sua obra ao mesmo tempo em que fecha a sua prisão”. O estilo literário do livro só confirma o que o etnólogo defendeu algumas vezes: a idéia de que Tristes Trópicos surgiu em parte em um estado de raiva. Raiva de si mesmo. Sem perceber, ele cedia ao desejo de fazer uma obra literária.


A morte de um dos últimos grandes intelectuais do século XX (Ser tratado como um clássico e ser classificado entre os maiores pensadores do nosso tempo o comovia, mas ao mesmo tempo o incomodava e o irritava) não apaga o seu pensamento, que deixou rastros fortes nas ciências humanas em geral. Tristes Trópicos, publicado pela primeira vez em Paris, pela editora Plon, em 1955, continua sendo um dos principais livros de antropologia do século XX.
Jacques Derrida, que era um exímio leitor de Lévi-Strauss, soube “jogar” com seu o pensamento estruturalista, desconstruindo-o. O filósofo da différance, em um dos textos que integram A escritura e a diferença, lembra que em La Pensée sauvage, Lévi-Strauss apresenta com o nome de bricoleur aquele que utiliza “os meios à mão”, isto é, “os instrumentos que encontra à sua disposição em torno de si, que já estão ali, que não foram especialmente concebidos para a operação na qual vão servir e à qual procuramos, por tentativas várias, adaptá-los, não hesitando em trocá-los cada vez que isso parece necessário, em experimentar vários ao mesmo tempo, mesmo se a sua origem e a sua forma são heterogêneas”. Derrida lembra que o termo bricolagem foi associado ao princípio de escritura da crítica literária. No entanto, vai mais longe. Para ele, toda a operação de texto é uma operação de bricolagem, pois nenhum sujeito é a origem absoluta do seu próprio discurso. A bricolagem estaria para a noção de procedimento, tal como Aira desenvolve em seus romances e “teoriza” em Pequeno Manual de Procedimentos. Ready-made como procedimento e bricolagem. Nesse sentido, o próprio Tristes Trópicos vai mais longe. Não se trata apenas de um relato, mas de procedimentos de leitura, desenvolvidos a partir do contato com o outro – que é ele próprio. Somos estranhos para nós mesmos. Acender uma vela para o estruturalismo, rezar para Saussure, por mais estranho que pareça, foi uma forma de desmontar o discurso tradicional das ciências humanas. As reflexões de Lévi-Strauss sobre o poder da escrita em comunidades selvagens foram mote para Derrida desenvolver seus argumentos de Gramatologia, obra fundamental do teórico franco-argelino. Derrida faz um elogio a Lévi-Strauss no texto “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”. Observa que La Pensée sauvage é o momento em que o seu discurso sobre o mito se reflete e se critica a si próprio. Mas qual seria, assim, a virtude mitopoética da bricolagem? O desconstrutor responde: “Efetivamente, o que parece mais sedutor nesta pesquisa crítica de um novo estatuto é o abandono declarado e toda referência a um centro, a um sujeito, a uma referência privilegiada, a uma origem ou a uma arquia absoluta. Em Gramatologia, Derrida lembra das páginas que o antropólogo escreveu sobre a escritura: “Poucas páginas, sem dúvida, mas notáveis sob vários aspectos: belíssimas e feitas para espantar, enunciando na forma do paradoxo e da modernidade o anátema que o Ocidente obstinadamente retomou, a exclusão pela qual ele se constituiu e se reconheceu, desde Fedro até o Curso de Lingüística Geral.


Lévi-Strauss, que fez sobreviver o pensamento primordial de Rousseau, de certa forma, perpetuou certas concepções de linguagem que remontam a Platão, no que se refere à violência da escritura. Os Nambiquara que não escrevem são considerados bons, puros. Possuem um poder fantástico de mnemotécnica. O antropólogo, numa das passagens dos seus estudos, lembra de um índio que para exercer poder sobre os outros, fingia que sabia ler. Daí poderíamos supor a crítica endereçada aos jesuítas, que através da escrita, teriam violentado esses bons selvagens. Derrida percebera que o campo da fala não-escrita também deveria ser tratado como escritura, o que colocaria em xeque certas noções platônicas: “Isso quer dizer que, se é preciso ligar a violência à escritura, a escritura aparece bem antes da escritura no sentido estrito: já na diferência ou na arquiescritura que abre a própria fala”. Neutraliza-se assim a fronteira entre os povos dotados de escritura e os povos desprovidos de escritura. Derrida não destrói Lévi-Strauss. Pelo contrário, desconstrói o seu sistema, ou seja, percorre suas linhas até chegar a um ponto nevrálgico. Lá, inverte-o, reinventa-o. As oposições são questionadas pelo filósofo, portanto é comum encontrar abraços e socos aos longo das referências a Lévi-Strauss. Minha hipótese (a de um humilde e reles leitor que se considera um simples aprendiz) é a de que se Lévi-Strauss é o pai do estruturalismo (Saussure seria o seu avô e Hjelmlev seu padrasto), Derrida é o pai do pós-estruturalismo (estranho chamar Derrida de pai, tendo em vista toda a sua crítica em relação ao PAI FUNDADOR (Ver a Farmácia de Platão). No entanto, não podemos desconsiderar que o pós-estruturalismo não destrói o estruturalismo. Desconstruir, para usar uma explicação de Derrida, “significa” pensar a genealogia estrutural de seus conceitos “de maneira mais fiel, mais interior, mas, ao mesmo tempo, a partir de um certo exterior, por ela inqualificável, inominável, determinar aquilo que essa história foi capaz – ao se fazer história por meio dessa repressão, de algum modo, interessada – de dissimular ou interditar”. Em outras palavras, RELER. Ora, reler não é uma das mais bonitas formas de render homenagem? Então, digam o que disserem, que o estruturalismo já morreu, e Lévi-Strauss continuará suscitando uma série de questões fundamentais não só no âmbito da antropologia, mas da lingüística, da literatura, da filosofia, entre outras áreas. E para não perder a poesia: Imagino que os pais do etnólogo, vendo o filho embarcar para o Brasil em 1934, desejaram-lhe boa viagem. Agora, alguns dias depois de sua morte, resta-me dizer: Boa Viagem! A essa hora, ele deve estar em alguma tribo do vasto universo, sentado ao lado de Foucault, Lacan e Barthes, tal como aparece no desenho de Maurice Henry. Todos vestindo uma bela tanga e discutindo as estruturas elementares de parentesco. Lacan, é claro, com gravata borboleta.


c.moreira

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

PROCEDIMENTOS DE CÉSAR AIRA: ABANDONANDO O ABANDONO


O primeiro livro que li do escritor argentino César Aira foi Un Episodio en la vida del pintor viajero (2000). Já faz algum tempo. Ele foi traduzido para o português por Paulo Andrade Lemos, em uma publicação da Nova Fronteira (2006). Nele, Aira recupera a história da viagem do pintor alemão Rugendas pela Argentina, no século XIX (o pintor veio também para o Brasil com a expedição chefiada pelo Barão de Langsdorff). Aira, que é hoje um dos mais criativos escritores da terra de Gardel, percebeu em Rugendas não apenas o produtor de documentos, mas o precursor do impressionismo.
.
(Rugendas)
.
Raúl Antelo, em um texto sobre Aira, incluído no livro, observa que ele pratica uma estética do abandono: “É uma obra em miniatura que se derrama, como efeito potlatch, através de infinitos títulos. (...) Na estética do abandono, aquilo de que se toma distância é a vida tal como era concebida. A literatura de Aira torna-se assim instrumento privilegiado de negação: ela vê a vida como algo já vivido mas, longe de propor um retorno do mesmo – a vivência do déjà vécu -, o abandono se traduz em êxtase, reverso exato, certamente suplementar, da melancolia modernista”. Carlito Azevedo percebeu que em sua literatura a ética primeira é a do imprevisível, “o maior pecado é o da repetição”. Ou como nos disse Vilma Costa, sobre o livro, “uma história que perde seu atributo exclusivo de testemunho e ganha estatuto de ficcionalidade, num registro do que poderia ter sido”.
Ver a vida como algo já vivido, no entanto, não completamente passado e resolvido, é o que faz Aira re-colocar, com diferença, um urinol no museu. Assim, o escritor mergulha no anacronismo, desenvolvendo um “procedimento” semelhante ao de Duchamp, a partir de um ready-made. Aliás, acabo de ler Pequeno Manual de Procedimentos, livro organizado por Eduard Marquardt e Marco Maschio Chaga, que reúne vários textos esparsos de Aira. Nele, a noção de procedimento e abandono é recorrente, desde o primeiro ensaio, intitulado “O a-ban-do-no”, em que o escritor parte da idéia de que o abandono está no cerne da prática do escritor: “No princípio está a renúncia. Dela nasce tudo o que podemos amar em nosso ofício”. É graças ao abandono que se pode superar o “velho”. Ou como disse Marquardt, no posfácio do livro, “Como procedimento-base, o abandono prima pela renúncia como possibilidade do novo (...). E pensar a literatura pela idéia do abandono implica, então, no abandono das noções primeiras de abandono e de literatura”. O que está em jogo aqui é um procedimento que desconstrói as tradicionais noções de literatura a partir dos conceitos de valor e qualidade. Ao invés de entender o literário como um sistema orgânico, autonomista, “identitário”, nacional, formal, o procedimento o concebe a partir de outras categorias, estas geradoras de um corpo singular que é ao mesmo tempo disperso e informe. Não se trata, como diz Antelo, de pensar o movimento pendular entre o local e o cosmopolita, mas postular “a diferença de uma singularidade irredutível”. No texto “Arlt” (publicado em 1993, em Paradoxa 7), e que, infelizmente, não consta no livro, Aira lembra que O Grande Vidro, de Duchamp foi abandonado pela metade e que Arlt deixou de escrever romances aos trinta anos. Assim, o que importa não é tanto fazer quanto “encontrar o modo de deixar de fazer, sem deixar de ser artista”. Ou seja, aquilo que Benjamin percebeu no expressionismo, uma vontade, um querer artístico e não um fazer. O que me leva a pensar que a literatura argentina vive um ótimo momento. Sobre isso, vale lembrar as observações feitas por Daniel Estill, quando se refere ao Pequeno Manuel de Procedimentos, de César Aira: “E o homem cita. E discute. Literatura francesa, inglesa, latino-americana, brasileira. E artes plásticas. E jazz. Vanguarda, estética. Esse enciclopedismo portenho que me mata de despeito. Afinal, eles têm Borges, têm Cortázar, têm Piglia e, mesmo não gostando muito de ser incluído nesse rol, têm Cesar Aira também. Claro que temos os nossos monstros sagrados. Mas a impressão que tenho é de que os argentinos incorporaram as lições do "Instinto de nacionalidade" do Machado melhor do que muitos de nós. Há uma universalidade nessa literatura que eles fazem que é genuinamente argentina - o que quer que isso possa significar. Algo que atordoa. Talvez seja melhor esquecer, abandonar, e seguir adiante”.

A renúncia é tomada por Aira como utopia. Segue-se assim a lição de Rimbaud, mas apenas em parte. Basta lembrar da entrevista que o escritor argentino concedeu ao programa “Off the Record”, do Chile, lembrada no posfácio do livro, em que ele confessou que a certa altura assumira em sua vida uma postura rimbaudiana para com a literatura: abandoná-la ou não escrever mais. No entanto, na mesma entrevista, dizia que jamais poderia abandoná-la, porque é preciso continuar: “Mesmo o abandono deve ser abandonado”. Outra maneira de entender a mesma premissa seria interpretar o conto sintomático de Melville da seguinte maneira: “Eu prefiro não fazer!”, dizia Bartleby. O personagem talvez “preferisse não” apenas para nos confessar: “Façam vocês!”. Implicitamente, Melville bem poderia estar sugerindo: “Abandonem esse abandono”. Esse abandono é um procedimento. Um procedimento que nos salva ao passo que nos leva eternamente a repeti-lo, em outras séries, em uma outra lógica. Numa das passagens de um dos ensaios do livro, Aira pergunta o que devemos fazer com a literatura, com a “literatura arte”. Para, então, responder: “Escrevê-la, evidentemente”. E nesse contexto, como pensar aquela literatura que não necessariamente é uma “literatura arte” e que inunda todas as livrarias? Dias atrás, fiquei bastante perplexo quando, folheando os livros de uma pequena livraria de uma pequena cidade (União da Vitória), presenciei quatro ou cinco jovens, num curto espaço de tempo, entrarem e pedirem à atendente o mesmo livro. Um tal de Crepúsculo. Fiquei pensando quando veria o mesmo acontecer com Guimarães Rosa. Entra um e sai outro, todos perguntando: “Você tem aí o Grande Sertão Veredas?”. Mas pensei um pouco e cheguei à conclusão: “Ótimo, melhor lerem o Crepúsculo do que não lerem nada”. Talvez foi um pouco o que o Aira pensou sobre Best Sellers. Ele sabe que esse tipo de literatura não é necessariamente um horror, mas sabe também que a verdadeira literatura continua sendo o que há de melhor: “E com isso podemos terminar denunciando outro equívoco freqüente, o daqueles que afirmam que o best-seller é um atentado contra a cultura. Tudo ao contrário. Lendo-os se aprende história, economia, política, geografia, sempre à escolha e de forma divertida e variada. Lendo-se literatura genuína, no entanto, não se adquire nada além de cultura literária, a mais inofensiva de todas”. Quem lê um Best Seller sobre conspirações, talvez sinta vontade de ler outros livros sobre conspirações. Quem lê um livro de Guimarães Rosa, sobre o sertão-mundo, provavelmente desejará ler outros romances de Guimarães Rosa, e não apenas outros romances sobre sertão. É um pouco o que pensa Aira. Na boa literatura, o autor é mais importante do que a história.
Os procedimentos aparecem a todo momento nesse livro de artigos, ou ensaios, seja lá qual for o gênero. A nova escritura como sinônimo de procedimento, como sinônimo de ready-made (Aira faz várias referências explícitas a Duchamp). A poesia como suporte, e não como fruto de um gênio: “Ninguém leva uma obra para casa, porque isso equivaleria a levar o artista, seu trabalho, sua vida. Apenas se desdobrando em Sábio Louco, em engenheiro secreto de suportes, o artista pode continuar sendo artista e vender convenientemente suas obras. Assim todos ficamos contentes”. O escritor lembra o exemplo de Klee que pintava ou desenhava sobre um suporte por alguns minutos, apenas para justificar o imenso trabalho de preparação do suporte: passava horas preparando tintas e telas. Assim, o procedimento não dá importância ao momento convencional da criação: “Põe de cabeça para baixo a história tal qual a conhecemos”. Agora, fica um pouco mais claro o motivo de reler a história de Rugendas. Em um dos momentos, o narrador de Um acontecimento na vida do caixeiro-viajante observa: “(...) existe um abismo tão grande entre uma história e outra ou entre uma história e a falta de história, entre o vivido e o reconstruído (mesmo quando a reconstrução é organizada com perfeição), que diretamente, ele (a personagem) não vê nenhuma relação entre elas”.
Em um dos textos mais interessantes do Manual, “Por que Escrevi”, Aira se propõe a pensar por que escreve, por que escreveu, por que poderia continuar escrevendo: “Uma vez que se reconhece poder à literatura, tem-se de perguntar pelo que pode esse poder. Aqui, o mínimo coincide com o máximo. O mínimo: continuar vivo. Mesmo em más condições, doente, pobre, decrépito, ter sobrevivido aos fatos para dar testemunho. Escreve-se a partir desse mínimo, mas só pelo fato de escrevê-lo já se torna um máximo. A transformação do sujeito em testemunha cria o indivíduo, ou seja, a particularidade histórica intransponível. O escritor se investe dos superpoderes do único”. Por isso, penso, seguindo as pegadas de Aira, o escritor deve continuar!
Depois de ler a ficção sobre Rugendas, e antes de ler Pequeno Manuel de Procedimentos, li As noites de Flores (2004). Deixei para o final porque quero terminar com seu começo. Neste romance, Aira imagina a rotina de um casal, Aldo e Rosa, que se vê obrigado, depois da crise que assolou a Argentina, a trabalhar durante a noite, entregando pizzas a pé no bairro de Flores, nos arredores de Buenos Aires. Em uma entrevista para o jornal O Estado de São Paulo (30 de junho de 2007), Aira falou que concebeu a idéia de escrever o livro certa noite, quando voltava para casa com a mulher. Lembrou que o filho voltaria da aula à meia-noite. Então, compraram uma pizza para ele e levaram para casa. Era uma noite agradável de primavera, caminhavam pelas ruas vazias, com a pizza. Pensou que poderia ser um trabalho agradável para um casal mais velho. No dia seguinte, começou o romance. Como o idílio não fornecia material para, no máximo, três páginas, então teve de começar a inventar. Na orelha do livro, publicado no Brasil também em 2006 e também traduzido por Paulo Andrade Lemos, Carlito Azevedo – que escreveu também 13 Variações sobre César Aira, em que analisa a obra do autor - observa que há autores de uma inteligência radical, outros que impressionam pela capacidade aparentemente inesgotável de inventar histórias: “Quando as duas qualidades se unem (mas isso é tão raro) surge um Raymond Roussel, um César Aira, que um dia já foi chamado o segredo mais bem guardado da literatura argentina”.
Cito o Carlito apenas para dizer que apesar de Aira construir uma máquina narrativa que suscita uma série de reflexões teóricas sobre a arte, ele não deixa de criar boas histórias – no fim das contas toda teoria é também uma ficção. Basta lembrar as primeiras frases de As Noites de Flores, para perceber que só o enredo já bastaria para nos convidar à leitura: “Um casal de meia-idade de Flores, Aldo e Rosita Peyró, adotou um ofício curioso no qual eram únicos, despertando a curiosidade dos poucos que sabiam disso: faziam entregas noturnas em domicílio para uma pizzaria do bairro. Não que eles fossem os únicos a fazê-lo, como ficava patente pelo exército de rapazes de moto que ia e vinha pelas ruas de Flores e por toda Buenos Aires desde o pôr-do-sol, como camundongos no labirinto de um laboratório. Mas não havia nenhum outro casal de meia idade (nem jovem) que fizesse isso a pé, e do seu próprio jeito”.

c.moreira

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Não entendi Cabeças Cortadas, de Glauber Rocha, talvez sonhei tê-lo entendido

Jorge Luis Borges encerra (ou começa?) seu Livro dos Sonhos com uma explicação de Nathaniel Hawthorne, do Livro de anotações (1868): “Um homem na vigília, pensa bem de um outro e nele confia plenamente, porém o inquietam sonhos em que este amigo age como um inimigo mortal. Revela-se, afinal, que o caráter sonhado era o verdadeiro. A explicação seria a percepção instintiva da realidade”. O caráter verdadeiro do sonhado tem muitas máscaras. Glauber Rocha, um leitor de Borges, escreveu em 1971 o texto Eztetyka do sonho, para ser apresentado aos alunos da Universidade de Columbia. No texto, lembra o “Seminário do Terceiro Mundo”, realizado em Gênova, em 1965, onde apresentou a propósito do Cinema Novo Brasileiro, A estética da fome. A comunicação, que situava o artista do Terceiro Mundo diante das potências colonizadoras, defendia que “apenas uma estética da violência poderia integrar um significado revolucionário em nossas lutas de liberação”.
Entre a repressão interna da década de 60 e a repercussão internacional conquistada com Terra em Transe, Glauber aprendeu a lição: “O artista deve manter sua liberdade diante de qualquer circunstância”. O texto apresentado em 1971 retomava a discussão central da conferência de 1965: arte e revolução. Para o cineasta baiano o pior inimigo da arte revolucionária era a mediocridade: “diante da evolução sutil dos conceitos reformistas da ideologia imperialista, o artista deve oferecer respostas revolucionárias capazes de não aceitar, em nenhuma hipótese, as evasivas propostas". Mas engana-se quem pensa que a proposta de Glauber está situada somente no nível político, já que para ele a arte deveria também promover a especulação filosófica, “criando uma estética do movimento humano rumo a sua integração cósmica”. O racionalismo entendido como repressor. O que o leva, penso, a superar tanto a razão de esquerda quanto a de direita, entendidas como sistemas culturais atuantes que estão presos a uma razão conservadora. Assim, propõe responder à razão opressiva não com a razão revolucionária, mas com a anti-razão (a expressão é do próprio cineasta). Feito um Lezama Lima brasileiro, Glauber percebe nas raízes índias e negras do povo latino-americano a única força desenvolvida desse continente. Ele observa que a cultura popular será sempre uma manifestação relativa quando apenas inspiradora de uma “arte criada por artistas ainda sufocados pela razão burguesa”. Somar o revolucionário com as estruturas mais significativas da cultura popular significava para ele a primeira configuração de um signo revolucionário.
Mas o que a afirmação de Hawthorne, postulada por Borges, tem a ver com isso? É que para Glauber “o sonho é o único direito que não se pode proibir”: “Arte revolucionária deve ser uma mágica capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não suporte mais viver nesta realidade absurda”. Quem indica a Hawthorne o inimigo é o sonho. É também na dimensão do sonho que Glauber aponta seus inimigos. Estou nesse vai-e-vem desmiolado porque acabo de assistir ao Cabeças Cortadas, filme que me levou às portas da loucura. Enquanto assistia, pensava: “Onde Glauber está querendo chegar?” É claro que um mínimo de conhecimento acerca de sua obra nos permite fazer algumas inferências. Sabemos, por exemplo, que há um soberano que se chama Díaz II, uma referência ao personagem de Terra em Transe, Porfírio Díaz, protagonizado por Paulo Autran. Em Cabeças Cortadas, reaparecem a imaginária Eldorado, a multinacional Explint, entre outras referências. Como disse Sylvie Pierre sobre o filme, “a terra continua em transe. Mas, desta vez, está acontecendo o apocalipse”. Sabemos que as alegorias se materializam relacionadas à relação entre colonizador/colonizado. Mas uma leitura despretensiosa não nos leva muito adiante. Seria preciso pensar muito. O excesso de alegorias me pareceu, em um primeiro momento, um problema para o filme. Mas pensando bem, não podemos esquecer que se trata de Glauber Rocha. Qualquer tentativa de “compreensão plena” do significado seria completamente fadada ao fracasso. É, precisamos nos acostumar com as imagens. Viajar com elas, talvez até deixar que elas cortem a nossa cabeça, como aquele personagem que passa o filme cortando a cabeça de todos, como que ressuscitando a degola do bando de Lampião, às avessas.
Às vezes, algumas cenas valem a pena apenas pelo teatro que se desenrola como uma pintura medieval em movimento: Cavalos, Cavaleiros, Donzelas, Dulcinéias, e as ruínas de uma paisagem desconhecida (que descobri ser a de Barcelona - ruínas espanholas. Aliás, não seria desimportante analisarmos a obsessão de Glauber por ruínas. A cena inicial de Claro se passa nas ruínas de Roma). O filme foi realizado em 1970, portanto um ano antes da conferência da Eztetyka do sonho. As aproximações não são fortuitas. Em 1979, quando o filme foi projetado pela primeira vez no Brasil, segundo informações de Sylvie Pierre, Glauber declarou ao Jornal do Brasil, que o cinema é o instrumento que permite materializar o inconsciente: “Cabeças Cortadas é um filme que deve ser visto através de símbolos e significantes. É um filme estruturalista. Reduzi toda história ao significante. Temos mouros, índios, América Latina colonizada, Espanha moura, encontros de vários mundos. Díaz poderia ser a história de um louco que pensa que é ditador. (...) Cada vez que vejo o filme encontro novas explicações. Há todo um arco de sugestões. Deixei que o trabalho seguisse a estrutura do sonho, tal como Borges e em Skakespeare”. A frase nos ajuda a aceitar certas loucuras do filme. “A história poderia ser...”. é no espaço e tempo do "poderia ser" que devemos pensar não apenas esse filme, mas toda a obra de Glauber Rocha. Eldorado poderia ser...Brasil. Glauber não fez feio na onda do Estruturalismo. No final da conferência de 71, é justamente Borges que é lembrado, por superar esta realidade: “Sua estética é do sonho. Para mim é uma iluminação espiritual que contribuiu para dilatar a minha sensibilidade afro-índia na direção dos mitos originais da minha raça. Esta raça, pobre e aparentemente sem destino, elabora na mística seu catolicismo, que é feitiçaria da repressão e redenção moral dos ricos". Como diria Antonio Machado, também lembrado por Borges, em seus sonhos: “De toda a memória somente vale o dom esclarecido de evocar os sonhos”. Explicá-los, comentá-los, esgotá-los, entendê-los é tarefa impossível - nem vale a pena comprar um dicionário de sonhos nas bancas de jornal, ou perder metade da minha vida estudando Freud e Jung. Isso me conforta depois de assistir Cabeças Cortadas, um filme que não entendi – e que agora orgulhosamente confesso que não entendi. Glauber, feito o cego mais visionário da Argentina, declara no final da conferência: “Não justifico nem explico meu sonho porque ele nasce de uma intimidade cada vez maior com o tema de meus filmes, sentido natural de minha vida”.
c.moreira

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A primeira, a segunda e a terceira mulher

Apontamentos sobre um livro de Miguel Sanches Neto

Costumam dizer que todo crítico literário e todo professor de literatura é um escritor frustrado. A afirmação é errônea. Bastaria lembrar que grande parte da boa literatura brasileira contemporânea vem sendo produzida justamente por professores universitários. Silviano Santiago, Milton Hatoum, Cristóvão Tezza, Veronica Stigger, Marcos Siscar, só para citar alguns. Todos professores. Mas há um nome que não poderia faltar nessa lista – apesar de que uma lista - todo e qualquer paideuma -, sempre é uma coisa muito questionável. Falo de Miguel Sanches Neto, que além de professor de literatura, da UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa), vem se destacando como um dos principais escritores e críticos do nosso país. Entre 2000 e 2002, o autor desenvolveu um trabalho importante na direção da Imprensa Oficial do Paraná. Ele foi responsável pela louvável reedição da revista Joaquim, publicada originalmente na década de 40, por Dalton Trevisan, e estudada por Sanches Neto em sua tese de doutorado. Outro trabalho que merece destaque foi a organização em livro dos contos que haviam sido publicados na década de 70 em Ficção, uma revista praticamente esquecida pelo grande público.


Miguel Sanches Neto já se aventurou em diversos gêneros literários: escreveu poesias, contos, crônicas e romances. No entanto, como bom escritor que é, sabe que os gêneros são sempre movediços. Os gêneros existem para serem experimentados. Prova disso é o seu mais recente romance, A primeira mulher, lançado em 2008, e considerado por ele como um romance “quase” policial. Segundo Vilma Costa, em artigo publicado no jornal Rascunho, o suspense é um dos fios desse tecido textual, mas não tem um fim em si mesmo, não pretende o grande desfecho de soluções acabadas. Nesse sentido é “quase”: “Não porque fique devendo, mas porque é mais que isso, outros fios sustentam a trama e ganham importância, tanto na constituição da temática amorosa, quanto na discussão da linguagem que experimenta dizer o indizível”. Esse universo do “quase” poderia passar despercebido por um leitor desatento.
Na trama, um professor de literatura, Carlos Eduardo, reencontra uma antiga namorada, Solange, agora candidata à prefeita da cidade. Ela está sendo ameaçada e pede proteção ao professor; pede também que a ajude a encontrar o filho desaparecido. Ao passo que se envolve novamente com a mulher, deixando para trás as aulas na universidade e a vida relativamente comum que levava antes de reencontrá-la, Carlos mergulha numa investigação que é apenas mote para o desenrolar da narrativa. Isso porque outras veredas se bifurcam e outras mulheres também estão em jogo: Lílian, sua aluna e namorada - pelo menos a daquele ano letivo -, e dona Ilza, a mãe carinhosa que vive em um mundo bastante diferente do filho. Nesse sentido, talvez pudéssemos falar não apenas da “primeira mulher”, mas da “segunda” e da “terceira”. Há um momento muito especial no livro, as passagens de um poema que o professor de literatura considera uma versão autoral do “Cântico dos cânticos”. Esses fragmentos que permeiam a obra nos fazem lembrar a paixão de um pastor árcade, Dirceu cantando Marília. Eles parecem sobrar no conjunto do livro. No entanto, se prestarmos atenção, essas sobras, esses restos, esses suplementos, são tão importantes quanto os fatos propriamente ditos. De um lado, operam um corte na narrativa, uma fissura, potencializando um estranhamento, uma destituição, “o saber de uma ausência”, como nos diria o crítico Raúl Antelo, já que na linguagem da poesia a destituição faz o sujeito se confrontar com o lugar vazio da representação. De outro, redimensionam a própria narrativa - dialogando com ela - já que a prosa também é tocada pelo vazio: a memória do narrador, assim como uma moeda, possui sempre dois lados: a lembrança e o esquecimento. Em Carlos, a lembrança da juventude escapa, assim como escapa a primeira mulher que, depois de muitos anos, já não é a mesma. Mas ao invés de falar sobre o livro, ou de tentar em vão resumi-lo, prefiro convidar o leitor a abrir as páginas de A primeira mulher e ler. A primeira mulher também é nossa.

Se falei que o assunto do livro é apenas mote, isso não significa que o enredo não seja interessante. Pelo contrário. Sanches Neto consegue explorar com destreza aquelas duas dimensões da narrativa abordadas por Michel Foucault no ensaio “Por trás da fábula” (que tratei em um texto anterior sobre Chico Buarque), de 1966. Trabalha com a dimensão da fábula (episódios, personagens, acontecimentos) e com a dimensão da ficção (regime da narrativa, os modos de contar, de “cortar e repetir”, usando aqui uma terminologia do filósofo Gilles Deleuze a respeito do cinema). Nesse sentido, o escritor paranaense desenvolve uma literatura que pensa a própria literatura, “possibilitando uma discussão do processo de produção, sua fisionomia de ensaio, experimento, arte, artifício”, segundo as palavras de Vilma Costa. O que faz com que o romance “A primeira mulher” participe de um contexto muito especial da literatura do presente, produzida por escritores como Bernardo Carvalho, Wilson Bueno, Rubens Figueiredo e João Gilberto Noll, produtores de uma literatura que, a despeito de suas particularidades, aponta com força para a desterritorialização do sujeito, para as armadilhas da memória, para as aporias, para os impasses com os quais convive a narrativa, para as experiências com a palavra, procurando caminhos para a sobrevivência do literário. E isso não é pouca coisa.
c.moreira

A cidade, a ilha, o homem

Até que enfim foram reunidos em livro os contos de Milton Hatoum. A antologia, que leva o nome de um dos textos do livro A cidade ilhada, traz o sabor dos romances já publicados por esse excelente escritor manauara. Alguns contos já eram conhecidos desde a década de 90, como “A ninfa do teatro Amazonas” e “A natureza ri da cultura”, publicados inicialmente no Caderno Especial, do jornal O Estado de São Paulo, em 1996. Outros são inéditos, como “Dançarinos na última noite” e “O adeus do comandante”. Outros tinham sido publicados apenas na Europa, como “Dois poetas da província”. Gostei especialmente de “Varandas da Eva”, a rememoração da primeira aventura sexual de um jovem e de seus amigos. Talvez seja um episódio das memórias do próprio Hatoum. No entanto, não podemos esquecer, o escritor tem consciência da literatura como um jogo com o tempo e com os fatos. Quando Milton Hatoum lançou Dois Irmãos, romance que considero um dos mais importantes da literatura produzida no Brasil nos últimos anos, foi entrevistado pela professora Susana Scramim, na antiga Cult. Perguntado sobre a questão da memória como elemento fundante da sua narrativa,o escritor respondeu que as memórias se desentendem, lembrando um personagem de Guimarães Rosa: “Quando um narrador ou personagem se lembra de tudo, então o passado vira um inferno, ele vive o tempo todo em vigília, vive o pesadelo da insônia, como aquele Funes, o memorioso, do conto de Borges. Talvez para um ficcionista a memória seja sinônimo de imaginação”.

Um detalhe que chama a atenção na obra de Hatoum, e que pode ser percebido com força em A cidade ilhada é a questão do território, que a professora Susana Scramim já tinha apontado em Dois Irmãos e Relato de um certo Oriente – a geografia de uma narrativa que “revela um território constituído por uma malha cultural variada”. No livro de contos esse aspecto pode ser percebido na constante troca de experiências entre personagens de culturas diferentes: o poeta Albano que viaja para a França para tentar a carreira literária, enquanto Zéfiro, um poeta mais sábio e mais velho, nunca saiu do país, no conto “Dois poetas da província”. A jovem estrangeira que seduz o narrador, no conto “Uma estrangeira em nossa rua”. O japonês que se apaixona por Manaus, em “Um oriental na vastidão”. O jovem subversivo que é exilado com a mulher na França, em “Bárbara no inverno”. Entre outros exemplos igualmente importantes. Os personagens de Hatoum, em “A cidade ilhada” estão sempre indo e vindo, formando a sua identidade a partir do contato com o outro. É o caso de “Dois tempos”, em que o narrador, reencontra a infância, o tio e a professora de piano, depois de voltar para a sua terra natal. Mais do que formar a identidade a partir do outro, os textos de Hatoum sugerem a transformação a partir do contato, da experiência com o outro. Nesse sentido, o título do livro é sintomático. Diante dos seus contos estamos diante de cidades e pessoas. Em ambos os casos, ilhas. Não à toa, Luiz Costa Lima, em um texto sobre Dois Irmãos, intitulado “A ilha flutuante” (Folha de São Paulo, 12 de Agosto de 2000), tenha percebido o mito criado e fecundado por uma obra que pressupõe uma matéria social bem diferente da ficção do Primeiro Mundo: “A casa que se destrói conta de uma sociedade absolutamente sem amarras, em que repontam poucas ilhas, que se fazem e desfazem”. Hatoum fala da ilha próxima ao igarapé, mas essa ilha é pretexto para falar de outra, aquela que transforma a vida do cientista Lavedan, que perde a esposa para um dançarino, no conto que dá nome ao livro. Nesse caso, a natureza ri da cultura (título de um outro conto do livro), pois a despeito de “dissertar sobre pássaros, símios e mariposas, ou orquídeas raras e a arquitetura móvel dos cupins”, o cientista aprende que o Bosque da Ciência nem resume toda a felicidade: “Dois dias depois, Lavedan voltou sozinho para a Europa”. Numa carta, ele escreveu que deixou Manaus e a esposa por causa de um dançarino: “Estavam numa festa do Shangri-Lá com a turma de notívagos intrépidos, e dançavam mambo e bolero numa atmosfera impregnada de álcool, suor e lança-perfume. O salão azulado do Shangri-Lá – uma maravilha, sublinhou Lavedan na carta – os envolvia, e eles trocavam de parceiro a cada música, bebiam no gargalo o melhor uísque e se enrolavam de tanto rir e falar alto, embalados pelo brilho extático dos metais. No clímax dessa euforia, um homem altivo e sério demais atravessou o salão com passos meticulosos, aproximou-se da mesa e, com um gesto reverente, pediu para dançar com Harriet”. O resto não preciso dizer.
Leyla Perrone Moisés, comentando a obra de Milton Hatoum, observou que a Manaus do escritor é uma ruína pululante de vitalidade: “O cheiro da floresta ali se mistura com o cheiro de lodo. A Cidade Flutuante (...) poderia ser uma metáfora dessa cidade suspensa na memória do romancista, cidade cujas misérias ele desejaria esquecer, e de cujos encantos ele se mantém cativo”. Aliás, a questão da ruína é recerrente em sua obra. Bastaria lembrar que a revista Babel, em 2000, publicou o seu poema “Amazonas: palavras e imagens de um rio entre ruínas”, em que Hatoum canta um rio que passeia por uma natureza caída: “Tua história é a remoção / a tua face em planície / já desabriga sonhos, e o úmido / se esvaiu no árido, se infiltrou / nas ranhuras de tantas máscaras”. No entanto, mesmo apontando para ruínas da natureza, do homem, da família, da instituição, resta um doce guardado na boca, uma beleza, uma flor (talvez de maracujá), que sobrevivem na paisagem de uma cidade e de uma literatura que mantêm cativo o escritor.


c. moreira

O filho da mãe e o filho da puta

Dias atrás, recebi a visita de um amigo. Conversamos, como sempre, sobre literatura, mulheres e outros bordéis. Ele viu na minha prateleira os livros do Bernardo Carvalho – todos, com exceção de O sol se põe em São Paulo, que ainda não li. Fiquei surpreso quando comentou que não gostava nem um pouco dos livros de B.C. Achava-o metido à cosmopolita, “presunçoso demais”, como “a maioria dos paulistas”. Só faltou chamá-lo de “filho da puta”. Não concordo com a afirmação desse amigo, que por sinal é um ótimo lingüista e exímio professor. Difícil julgar a pessoa pela obra. Por exemplo, ao ler Amor Natural, de Drummond, não posso dizer que o poeta era pervertido, ou julgar Dalton Trevisan um tarado por ter escrito A polaquinha e O vampiro de Curitiba. Agora se a literatura de B.C. é presunçosa, isso são outros 500. Presunçoso é aquele que é pretensioso, orgulhoso, metido. Acho que não é o caso da literatura de Bernardo Carvalho. É claro que o projeto literário do escritor, que também é colunista da Folha de São Paulo, é ousado para os padrões brasileiros, estando muito mais próximo do labirinto narrativo de Jorge Luis Borges, e de outros escritores cosmopolitas, do que das palmeiras e dos sabiás de Gonçalves Dias. Acostumados com “macumbas para turistas”, “Tietas”, “Gabrielas”, e outros carnavais, tomamos um susto com os jogos literários propostos pelo autor de Nove Noites e Mongólia. Jogos literários que contam sempre com personagens desterritorializados, sempre em movimento, em constante deslocamento.
Anderson Luis Nunes da Mata, no texto “À deriva: espaço e movimento em Bernardo Carvalho”, observa que os personagens do escritor estão sempre em trânsito: “migrando, viajando, ou, simplesmente, passando, esses sujeitos não têm uma territorialidade definida”. Em Nove Noites, o narrador empenha-se numa viagem ao Xingu à procura dos passos de Buell Quain, um antropólogo americano que se matou quando tentava voltar para a civilização. Em Mongólia, um diplomata brasileiro recém-chegado da China é enviado à Mongólia para procurar um fotógrafo desaparecido. Em Teatro, romance dividido em duas partes, o narrador paranóico, metido à terrorista, foge para o país de seus pais. Nas palavras de José Geraldo Couto, este não é um romance sobre a paranóia; “é um texto cuja própria construção reproduz o mecanismo da paranóia, entendida como tentativa de dar sentido ao mundo a partir da leitura parcial e distorcida de seus fragmentos”. Diga-se de passagem, um significado que nunca é consumado. Em todos os casos, a impossibilidade de atingir o real é sintoma de uma narrativa que conduz o leitor a jogos narrativos cada vez mais intrincados.

Acabo de ler O Filho da Mãe, seu mais recente romance. Em 2007, o escritor passou um mês em São Petesburgo para escrever uma história de amor para a coleção “Amores Expressos”, idealizada pela Companhia das Letras. Eduardo Simões, na Folha de São Paulo, lembrou que Carvalho, quando estava em São Petesburgo, foi influenciado pelo livro “Vida e Destino", de Vassili Grossman: “O enredo de Grossman - que fala, entre outras coisas, de uma mãe forçada a despedir-se do filho e do amor de uma jovem, em meio à Segunda Guerra - guardava coincidências com a trama que Carvalho tinha em mente: uma história de amor (aqui, entre dois homens) e uma reflexão sobre o amor maternal e sua relação com a guerra, inspiração que o autor teve quando, em suas pesquisas, soube do Comitê das Mães dos Soldados, que ajuda jovens enviados à Tchetchênia”. Comitê que, por sinal, vai aparecer ao longo de toda a narrativa de O Filho da Mãe.
Em O Filho da Mãe, Bernardo Carvalho, à maneira de seus livros anteriores, mescla diversas vozes e pontos de vista. A diferença é que neste livro, o escritor narra em terceira pessoa, o que não é comum em sua obra. Esse foco narrativo permite que Carvalho mergulhe no íntimo das fortes personagens que criou, enfocando o sentimento de orfandade e de desamparo. Tudo em meio à barbárie da guerra da Tchetchênia e da reconstrução de São Petesburgo às vésperas de seu terceiro centenário. Mas a guerra é apenas pano de fundo para desenvolver uma narrativa sobre a figura da mãe, nas diversas histórias que se entrelaçam no livro. O Filho da mãe nos convida a reler com cautela a obra de Carvalho, - o talvez nos faça repensar aquele preconceituoso argumento de que sua literatura é metida à cosmopolita e presunçosa. Esse argumento é geralmente falacioso quando o que está em questão é a literatura de B.C. – cuja mobilidade desarma, a partir do modus operandi de sua narrativa, discursos estáveis, dogmáticos e tradicionais.

c. moreira