sábado, 21 de julho de 2018

Enrique Vila-Matas, explorador de abismos




Enrique Vila-Matas inicia “Exploradores do Abismo” (Cosac Naify, 2013) com uma reflexão que pode nos ajudar a compreender melhor não apenas o grande tema do livro, mas principalmente um projeto literário embutido na trajetória do escritor catalão que fez da literatura o grande assunto de sua obra: “Vou pensando que um livro nasce de uma insatisfação, nasce de um vazio, cujos perímetros vão se revelando no decorrer e no final do trabalho. Escrever, certamente, é preencher esse vazio”. A reflexão integra o texto “Café Cubista”, uma espécie de prefácio para a coletânea de contos, ou melhor, de relatos, ou mesmo tijolos, como sugeriu Daniel Pellizari, ao tratar de “Exploradores do Abismo”. Isso porque, segundo ele, os textos deste volume “compartilham personagens, ideias, linhas narrativas”. Todos eles, direta ou indiretamente, trazem à baila o vazio, o abismo, ou o desaparecimento que move os seres na vida cotidiana, bem como a atividade do escritor na seara da arte contemporânea.


A questão do desaparecimento do autor, bem como o mergulho no vazio ou abismo como essência da atividade literária, que aparecem com recorrência em Vila-Matas, encontram ressonância em outros autores que são evocados em seus livros, como Robert Walser (principalmente em “Doutor Pasavento”), Bob Dylan (em “Ar de Dylan”), James Joyce (em “Dublinesca”), Michel Foucault, Giorgio Agamben, Sergio Pitol, Franz Kafka, Maurice Blanchot, Fernando Pessoa, entre tantos outros - alguns às vezes inventados, como boa parte daqueles que figuram em “Bartleby e companhia” e “Mal de Montano”, duas de suas publicações mais interessantes. Todos eles poderiam ser considerados como exploradores do abismo. Aliás, no livro que leva este nome, os exploradores, segundo o escritor, são otimistas e suas histórias são, em geral, a de pessoas comuns que, ao se ver à beira de um precipício fatal, “adotam a postura do expedicionário e sondam o horizonte plausível, perguntando-se o que pode haver fora daqui, ou além de nossos limites”. São pessoas que “desdenham o tédio existencial tão em voga, parecendo gente antiquada e muito ativa, que mantém uma relação desinibida e direta com o vazio”. Aliás, como observei, é com o vazio que Vila-Matas preenche seu livro “Exploradores do Abismo”.
No conto “A modesta”, por exemplo, o narrador mergulha na procura vazia de uma passante que, à maneira daquela personagem do poema de Charles Baudelaire, lhe escapa e desaparece. Em “Os autistas são assim”, o protagonista tem amor por plateias vazias. Em outro conto, um sujeito escuta a conversa de um casal de vizinhos a falar sobre a matéria escura, esse mistério da astronomia cuja natureza ainda não é bem conhecida e que está centrada no vazio. Em “O dia assinalado”, uma jornalista recebe de uma cigana a previsão de sua morte, passando a viver a vida com o abismo da morte colado em seus passos. É comum, aliás, os seres humanos preencherem o vazio de suas vidas com o medo de outro vazio, o da morte. Em “Amei Bo”, um homem do futuro pousa em um outro planeta para assistir ao fim do mundo”. Em “Vazio do poder”, Vila-Matas aponta politicamente para a ideia de que todo estado é “pura aparência e ficção que responde a uma estrutura falsa, armada em torno de um centro abissalmente vazio”. No conto “Vida de poeta”, uma frase ouvida transforma a vida do narrador: “As obras de arte, escassas, dão conteúdo intelectual ao vazio”. A frase poderia figurar como epígrafe para os contos do livro, já que em todos eles, deparamo-nos com a vaziez da vida a ser preenchida com a própria literatura. Trata-se de um procedimento natural para um escritor que certa vez escreveu: “Tudo o que não for literatura não existe”. 


O relato mais interessante do livro se encontra no texto “Porque ela não pediu isso”, no qual o escritor catalão produz um jogo muito bem arquitetado que arma múltiplas perspectivas narrativas para refletir sobre a capacidade da literatura de criar artifícios e mundos. Nesse caso, trata-se de pensar no abismo e no vazio da própria literatura capaz de ser preenchida com imaginação e talento literário. O mote do texto é a vontade de transportar a literatura para a vida, fazendo da escrita um recurso para se preencher o “tenebroso buraco que chamamos de vida”. Só a leitura desse conto já vale a aquisição da obra.          


A tradução de “Exploradores do Abismo”, que ficou a cargo de Josely Vianna Baptista, foi uma das últimas publicações de Vila-Matas pela Cosac Naify (a última foi “Não há lugar para a lógica em Kassel”, em 2015), antes do desaparecimento da editora, no abismo econômico do mercado editorial contemporâneo. Agora os direitos da obra do autor estão com a Companhia das Letras, que está lançando nesta semana “Mac e seu Contratempo” que, como os livros anteriores, explora os limites entre o romance cômico, a autoficção, a crítica literária e o gênero ensaio. A obra que se publica agora dá continuidade ao projeto vila-matiano de fazer da literatura o grande tema e personagem de sua obra, lançando mão de uma série de citações e referências que direcionam suas histórias para uma reflexão sobre as condições de produção, de existência e de circulação da literatura na contemporaneidade, bem como sobre o lugar do escritor e do leitor nesse processo. Em outras palavras, com sua literatura, Vila-Matas está sempre perguntando: O que pode um escritor? O que estamos fazendo quando fazemos literatura? O que significa escrever hoje? Quais os limites entre a vida e a literatura? Como viver na vida o texto que escrevemos na arte? Como conviver com o vazio da vida na escrita?   

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 21 de julho de 2018.

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Cristovão Tezza e a tirania do amor



Cristovão Tezza, certamente, figura entre os melhores prosadores da literatura brasileira contemporânea. Tenho acompanhado com interesse seu trabalho desde há alguns anos quando o escritor ainda não era muito conhecido do grande público. Embarquei com ele nas aventuras teatrais com toques fantásticos que povoam seu romance “Ensaio da Paixão”, encantei-me com o poeta marginal “Trapo” e suas incursões literárias pela cidade de Curitiba, aventurei-me pelo universo da arte em seu “Breve espaço entre cor e sombra”, emocionei-me com o premiado “O filho eterno” - no qual Tezza ofereceu aos leitores uma comovente autoficção inspirada no seu contato por meio do filho com o universo da síndrome de down -, passeei pelos registros de “O fotógrafo”, conheci um pouco de sua jornada como escritor na autobiografia literária “O espírito da prosa”, li alguns de seus contos e crônicas, e na semana passada escrevi aqui sobre a publicação de suas conferências literárias, reunidas no livro “Literatura à Margem”, publicado em junho de 2018, no mesmo ano em que o escritor lançou seu novo romance, “A tirania do amor”. Ambos saindo do forno.


Tezza vinha nos últimos anos trabalhando com protagonistas oriundos do universo das letras ou do magistério. Tomem-se como exemplo personagens emblemáticos como a tradutora que dá nome a um de seus mais recentes livros, ou o professor Heliseu, sobre o qual o também professor aposentado Tezza se debruça em um romance publicado em 2014. Aliás, a figura do professor já havia aparecido em “O filho eterno”, e também em “Uma noite em Curitiba”.
Agora, no seu mais recente romance, “A tirania do amor”, o protagonista Otávio Espinhosa é um renomado economista que se relaciona com o mundo por meio de números. Ele é capaz de extrair raízes quadradas complexas em segundos e de solucionar cálculos variados sem qualquer esforço aparente. A todo momento, o protagonista opera suas contas, mas é incapaz de resolver problemas pessoais básicos que envolvem um casamento falido, a relação difícil com o filho revoltado, o abandono da vida acadêmica, bem como o emprego no escritório (prestes a ser incluído em uma operação investigativa pela denúncia de desvio de dinheiro). Some-se a isso uma relação difícil com seu passado, a saber uma convivência complexa com o pai e uma breve carreira como escritor de literatura de autoajuda, em uma obra cujo título sugestivo de “A matemática do amor” foi publicada com o pseudônimo Kelvin Oliva. Depois de descobrir que está sendo traído pela mulher, Otávio toma uma decisão radical: abdicar do sexo. Este é um dia difícil, porque é nele que o protagonista será também despedido do seu emprego.


A ruína profissional e a falência do amor são retratadas em meio às crises políticas do Brasil contemporâneo. À medida que Otávio Espinhosa vai mergulhando no caos afetivo e profissional, o leitor assiste no livro à decadência social e econômica do país. Qualquer semelhança com a vida real não é mera coincidência. Isso porque Tezza capta com absoluta eficiência os dramas políticos do presente, refletindo sobre os dilemas enfrentados por uma sociedade que vem a cada dia se sentindo deslocada e abandonada por seus dirigentes.
Em vários momentos da narrativa, Otávio Espinhosa alude à “Ética”, de Spinoza, produzindo conexões com a filosofia para tentar entender a sua vida. Aliás, o filósofo renascentista escreveu sobre a origem e natureza dos afetos, considerando o amor uma alegria acompanhada da ideia de sua causa. A escolha paronomástica do nome da personagem e do filósofo que o acompanha não é fortuita em um livro sobre o amor e sobre a matemática. À medida que o enredo avança, a personagem vai percebendo que sua lógica matemática e racionalista não dá conta de resolver os problemas de seu coração. A beleza do livro, nesse sentido, parece estar ligada a um processo de gradativa transformação da personagem. No entanto, o que mais chama a atenção em “A tirania do amor” é a qualidade na arte de narrar. Influenciado pela teoria da polifonia desenvolvida pelo teórico russo Bakhtin, sobre o qual o escritor/professor desenvolveu sua tese de doutorado, Tezza mescla com eficiência um realismo plástico com o fluxo da consciência das personagens, misturando vozes e discursos em um vai e vem de ideias capaz de tornar sua narrativa mais complexa, mas ao mesmo tempo mais rica, pela pluralidade de impressões e pontos de vista que, inevitavelmente, enriquecem a leitura de uma obra literária.


O tema do romance pode parecer um pouco banal – apesar de que escrever um bom livro sobre o amor parece continuar sendo o desejo de quase todos os grandes prosadores – no entanto, o que torna o romance agradável é a forma como a história é contada. No fim das contas, não importa de que trata o amor, importa o que fazemos com ele. E sua tirania, querendo ou não, nos empurra com força para a vida e, como uma boa ficção, ele sempre pode acabar ou começar em uma boa história.

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), no dia 07 de julho de 2018