quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Carta ao crítico Marcos Pasche




Caro Marcos Pasche,
como vai?

Hoje, recebi com grande alegria o seu livro “De pedra e de carne: artigos sobre autores vivos e outros nem tanto”. Belo título, belíssima capa. Ótimas vibrações. Aqui no sul sol lindo com a chegada do teu aguardado filho. Um espaço na minha estante estava reservado para ele desde que você me comunicou o envio.
Agradeço pela generosidade de ter lembrado do amigo que no ano passado críticou tua crítica no texto: “Literatura mediana ou crítica mediana?: Então você quer ser crítico?”. Agora me falta lê-lo, o que pretendo fazer antes do final das minhas férias. Até o presente momento, li apenas a lúcida apresentação do Roberto Acízelo de Souza, de quem sou admirador e leitor bissexto, e suas Palavras Prévias que muito me encantaram, não apenas pela qualidade de reflexão, mas também pela humildade que nela detectei, cujo tom só é encontrado nos grandes. Portanto, como ainda não li o livro, me são enigmáticas as palavras do título PEDRA/CARNE, mas já tomo a liberdade de imaginar alguns de seus possíveis sentidos.
Nem só de pão e pedra, mas também de carne, a crítica viverá! A crítica pode ser pedra (juízo), mas é também carne (poesia), não esqueçamos. O crítico também é homem ou mulher de carne e osso, ou melhor de carne e pedra. A capa, aliás, me sugere algo semelhante: Não poderia ser objetivo da crítica, além de julgar, abalar as estruturas daquilo que está estabelecido, produzir uma fissura naquilo que analisa, e no seu próprio corpo a partir daquilo que lê? Se os livros deixam cicatrizes no leitor, como sugere José Castello em sua mais recente publicação (As feridas de um leitor), será que a crítica também não deixa cicatrizes não apenas nos seus leitores, mas de forma inevitável nos livros que lê? Somos transformados, mas também transformamos aquilo que lemos.
Fiquei feliz não apenas em receber o seu livro, mas principalmente em recebê-lo com um carinhoso autógrafo, no qual me considera um primeiro e estimulante interlocutor. Não me julgo figura de importância e merecedora de elogio, mas de qualquer forma agradeço o carinho. O que para uns representaria um fetiche de leitor-colecionador, para mim soa como um gesto generoso de alguém que mora longe mas que lembra dos amigos, e que por se interessar pela literatura já me parece desde o início da amizade como um interlocutor interessante. Alegrou-me o fato de você ter me citado (diretamente na página 173 e indiretamente na página 14), não por uma questão de vaidade minha, mas por achar, como você, extremamente saudável o debate sobre a crítica e a literatura. Diletante e amador (nos dois sentidos) que sou, encanta-me ver o amigo “matar a cobra e mostrar o pau”. Acho extremamente saudável as leituras e contra-leituras que por ventura podem surgir no exercício crítico. De dobras e redobras são feitos os origamis. Apresentar esse outro olhar, nascido de um blog praticamente desconhecido mostra que o amigo valoriza o pensamento crítico que transcende os grandes jornais e os clubes do bolinha tão em voga hoje em rodas literárias. Agradeço a referência.
Recentemente, li o livro de João Cezar de Castro Rocha sobre a crítica literária e gostei bastante da maneira como ele discutiu a importância das querelas literárias que ultrapassam o âmbito pessoal para atingir um patamar criativo e produtivo para a produção literária e crítica. Aliás, nesse livro (editado pela Argos), ele defende uma “esquizofrenia produtiva” que penso ser uma das qualidades do teu trabalho, Marcos. Para ele, essa esquizofrenia está ligada à capacidade de promover um diálogo interessante e inteligente entre o jornalismo cultural e a academia, fazendo com que o analista saiba ser “bilíngue em seu idioma”. Outro detalhe que me chama a atenção no livro dele é a reflexão que faz sobre a crítica impressionista, crítica que tem recebido minha atenção ultimamente. O termo (crítica impressionista) é tão amplo que acaba sendo vítima de muitos equívocos interpretativos. Pode ser tanta coisa e nenhuma especificamente. Há nela coisas positivas e negativas (olha só, também estou julgando!) Tenho começado a pesquisar não apenas a crítica impressionista (com ênfase naquela produzida pelos simbolistas, que ainda não sei se poderíamos chamar de impressionista), mas também o processo de modernização dos estudos literários no Brasil. Saiu agora pela Iluminuras um livro organizado pela professora Susana Scramim (UFSC), chamado “O Contemporâneo na crítica literária” (creio que é esse o título), em que publiquei um texto sobre a crítica simbolista, a qual foi pejorativamente chamada de impressionista, entrando, assim, no bojo das críticas consideradas diletantes, falíveis, por não serem sistematizadas como foi a Nova Crítica, que encontrou em Afrânio Coutinho um de seus adeptos mais fervorosos na esfera acadêmica brasileira.
Penso, por exemplo, numa crítica que não seja apenas uma “manifestação palpiteira”, para usar uma expressão do Acízelo, mas que também não seja apenas uma manifestação sisuda e judicativa, pura e simplesmente, em que o crítico se sente senhor da própria obra que analisa, como se não estivesse produzindo também as suas ficções. Nesse sentido, relativizo, com prazer. Não se trata da “absolutização do relativo”, para usar novamente uma expressão do Acízelo, em que todo e qualquer julgamento é visto inocentemente como uma espécie de “bicho papão”.
Concordo com você quando diz que o exercício judicativo não deve ser visto como um gesto reacionário. Toda escolha, que pressupõe julgamento, desmente o fato. Acredito que o julgamento está implícito em toda e qualquer leitura, e não é necessariamente um tremendo “filho da pauta”. Agora, que ele precisa ser repensado nas nossas práticas, isso precisa! Lembro-me que no meu texto sobre sua crítica escrevi: “Depois de ready-mades como o Urinol, de Duchamp – para citar o exemplo mais óbvio e um dos mais curiosos – o que fazer com as noções tradicionais de valor?” Até agora tenho apenas hipóteses para responder a esta pergunta. O que seria motivo para uma longa digressão, convite à correspondência. 
Julgamento... Julgamento! O que eu penso é que a crítica pode ser mais do que só isso. E acredito que você também pensa assim. Por isso concordo plenamente quando você escreve que é absolutamente possível, e saudável, que o crítico compreenda a obra, torne-se também inventor quando do contato com ela e, a partir disso, formule uma opinião”. “Inventor”: essa palavra me entusiasma em seu argumento. De que vale ser crítico se a busca da invenção não fizer parte de sua rotina?
Independente do tipo de crítica que se produz, é possível ser inventor. Mario de Andrade, por exemplo, escreveu críticas lindas, fortemente judicativas. É o que vemos no “Empalhador de Passarinho”. O meu incômodo é com aquele tipo de crítica que se contenta apenas em julgar, não saindo desse estágio. Se como nos diria Tristão de Ataíde a crítica deve ultrapassar o estágio inicial das impressões, devo sustentar que a crítica, da mesma forma, não pode estacionar no mero julgamento, como se essa fosse a única forma de um pensamento crítico, e as impressões gerassem meros devaneios poéticos que não alcançam a dimensão crítica. Há muitas formas de se ler, não? Tão ou mais importante que aquilo que lemos é “como lemos”. Como ler? Gosto muito das observações do crítico Daniel Link, que no livro “Como se lê, e outras intervenções críticas”, pensa na crítica não apenas como interpretação ou julgamento, mas também como uma espécie de intervenção.
Impossível, na crítica, seja ela de que tipo for, abrir mão da imaginação e da criatividade. Há que se sujar as mãos, compreende? Expressão que usei no meu texto sobre o teu. No entanto, em relação a você, esse incômodo se deu por alguns textos específicos, como aquele sobre o Miguel Sanches Neto e aquele sobre a Estrela Leminski, que também me incomodou, além de ter incomodado a Marília Kubota. Não é um posicionamento que valha para todos os textos que você escreveu. Pelo contrário, muitas de suas críticas me encantaram fora do comum. Ao contrário do que talvez você pense em relação ao meu texto, não acho que a crítica poética seja a única possível (isso equivaleria ao fascismo), mas é aquela que mais me interessa. Não há crítica ideal, mas há aquela que mais me seduz e mesmo essa que “mais me seduz” pode errar também. Quando me refiro à crítica poética não penso necessariamente naquela que pretende apenas plasmar a linguagem poética, mimetizar seus sons, ritmos e palavras. Penso naquela que problematiza a cisão da palavra que, na cultura ocidental, a partir de Platão, colocou a poesia de um lado e a filosofia de outro. Por que os poetas precisam ser expulsos da República? Com isso a filosofia “deixou de elaborar uma linguagem própria, como se pudesse existir um caminho régio para a verdade que prescindisse do problema da sua representação, e a poesia não se deu nenhum método nem sequer uma consciência de si”(Giorgio Agamben, em Estâncias). Continuando com Agamben: “A crítica nasce no momento em que a cisão alcança o seu ponto extremo. Ela situa-se no descolamento da palavra ocidental e sinaliza, para além ou para aquém dela, para um estatuto unitário do dizer. Exteriormente, esta situação da crítica pode ser expressa na fórmula segundo a qual ela não representa nem conhece, mas conhece a representação. À apropriação sem consciência e à consciência sem gozo, a crítica contrapõe o gozo daquilo que não pode ser possuído e a posse daquilo que não pode ser gozado” (Agamben, em Estâncias). É essa a crítica que me seduz, aquela que não apenas é criativa mas enigmática (como a literatura), cujo objetivo não é o de reencontrar o objeto que analisa, ou meramente dissecar, mas aquela que está interessada também em “garantir as condições da sua inacessibilidade” (Agamben, em Estâncias). Por isso continuo acreditando nas palavras daquele texto que publiquei no blog, agora com a diferença de me sentir um pouco constrangido de proferi-las a um amigo (um crítico que aprendi a admirar quando decidi conhecê-lo melhor), por tratarem dele sem serem necessariamente uma espécie de vela acesa. Vamos lá, conhecer e gozar, como nos convida Agamben! Acolhamos, novamente, o poeta na República.

Receba minhas congratulações pela publicação
e o abraço afetuoso e agradecido deste
humilde diletante que é também seu admirador. 

Caio Ricardo Bona Moreira
União da Vitória (Cofrinho do mundo) / 2013  
    

O assassino da pátria: apontamentos sobre "La última de César Aira", de Ariel Idez




Quando todos imaginavam que César Aira seria para sempre apenas um escritor, acabamos, para nossa surpresa, sendo informados de que este renomado novelista contemporâneo se transformou no chefe do tráfico de drogas e dos prostíbulos do bairro de Flores, em Buenos Aires. E se não bastasse isso, o autor de “La Liebre” aliou-se a chineses subversivos, bem como aos membros da “Logia Lautaro”, seita de negros decididos a se vingarem dos brancos argentinos depois de séculos de exploração. Como se não bastasse isso, Aira também se transformou no responsável por um sistema clandestino de produção de livros, contando com o apoio de uma legião de "ghostwriters", com o objetivo de destruir a Argentina por meio da circulação de uma infinidade de novelas, já que a sua publicação provocaria uma saturação por “sobrecarga no sistema simbólico” . Se partirmos do pressuposto de que a Argentina é uma personagem de Facundo (Sarmiento), ou seja, uma ficção, implodir o sistema simbólico - literário – do país, equivaleria a destruí-lo. Agora sabemos como e porque o conspirador Aira escreve tanto. Mas calma! Tomemos cuidado com as especulações e com conclusões precipitadas. Isto é apenas literatura. As informações - fictícias -  fazem parte apenas do enredo de “La última de César Aira”, primeiro romance de Ariel Idez, jovem escritor argentino, publicado pela promissora editora portenha Panico al Panico. Aira continua sendo Aira, no entanto, sua obra, com a publicação de Ariel, parece ganhar uma “dobra” – AIRA/ARIEL. É dela que pretendo tratar brevemente neste texto.Como se não bastasse isso...

(Ariel Idez)

Os livros de Aira, grosso modo, tendem, na medida em que seus enredos progridem, a caminhar, de um estado narrativo pautado pelo “comum”, pelo “qualquer”, pela “normalidade” a outro, cuja lógica é regida pelo “inusitado”, pelo “acaso”, pelo “acidente”, e pelo gradativo enlouquecimento dos acontecimentos e do pensamento que é pensado enquanto se narra. Suas histórias, geralmente, começam de forma aparentemente “simples”e “banal” para depois caminharem para o imprevisto, frustrando expectativas pré-moldadas pelos seus leitores. Basta lembrar de duas novelas: “Las Noches de Flores”, em que um casal de idosos decide trabalhar a pé na entrega de pizzas no bairro e acaba por se envolver em situações bastante absurdas. E “El Volante”, em que o escritor parte de uma propaganda para, então, migrar para o universo fabular – com direito a condessa e elefantes -, transformando todo o percurso narrativo em algo impensado no início da leitura.

As histórias que imaginamos ser contadas em ambos os livros na medida em que são narradas se mostram sempre imprevistas. Penso que este é um procedimento que se repete – com diferença – em quase todos os livros de César Aira. Aliás, o escritor explicita suas reflexões sobre a importância do “procedimento” para a sobrevivência do literário no seu conhecido ensaio que leva o título de “A Nova Escritura”. Vale relembrar o seu ponto de vista.

No ensaio, Aira apresenta o procedimento como uma ferramenta herdada das vanguardas capaz de reconstruir a radicalidade constitutiva da arte. Reconstruir a radicalidade da arte, para ele, significa, em tempos de esgotamento – sinônimo talvez de "civilização envelhecida" -, remontar às origens. O procedimento seria uma alternativa a outras por sua vez melancólicas, pautadas pelo interesse de seguir escrevendo a velha literatura ou de tentar heroicamente, como ele mesmo diz, “um ou dois passos adiante”. No contexto das vanguardas, terceira alternativa, o procedimento estaria ligado ao construtivismo, ao "ready-made", à escrita automática, ao dodecafonismo, ao "cut-up", ao acaso, etc, ou seja, a um “modo de fazer”, estando mais interessado na ação, no processo de confecção do que nos resultados: “Tem de se desinteressar dos resultados para permanecer sendo ação”. Colocar o “modo de fazer” na frente de o “que fazer”, ou dos resultados, é o que fez John Cage, em “Music of Changes”, peça descrita e analisada por Aira no texto. Não pretendo aqui esmiuçar a leitura do ensaio tendo em vista que meu objetivo é propor uma rápida leitura do romance “La última de César Aira”, de Ariel Aidez.

Antes de seguirmos adiante, cumpre relembrar que Aira conclui que o procedimento, em geral, consiste em remontar às origens: “Daí que a arte que não utiliza de um procedimento, hoje em dia, não seja arte de verdade. Pois o que distingue a arte autêntica do mero uso da linguagem é justamente essa radicalidade”. 
Produzir um procedimento (ou mimetizá-lo com criatividade) parece ser também o objetivo de Ariel Idez no romance que apresenta Aira como vilão. Enquanto Aira cria um procedimento pensando a literatura como uma espécie de absoluto – uma grande máquina de produzir imagens -, Ariel produz um procedimento pensando em desmontar a máquina de Aira. Desmontar, aqui, não significa destruir, mas apenas “brincar” e consequentemente fazer “conhecimento”, como aquelas crianças que desmontam seu brinquedo para divertir-se e também para conhecê-lo melhor.

O traçado narrativo do livro de Ariel é semelhante ao das novelas de Aira. É óbvia a aproximação. Ariel escreve um livro sobre Aira de forma aireana, o que demonstra que estamos diante de uma antropofagia, que aqui é também uma espécie de homenagem, mas não apenas. Resta-nos ler Aira a partir de Ariel, ou Ariel a partir de Aira.

As teorias contemporâneas talvez caracterizassem o livro de Ariel como um pastiche ou como uma paródia. Penso que talvez seja mais do que isso. Leonidas Lamborghini, em um dos textos que integram “El Riseñor”, interessado em discutir a relação de um texto com o seu Modelo, pergunta se não seria possível pensar na paródia como “impotência”, ou seja, como “la impossibilidad de emular al Modelo mediante otro procedimiento que no sea el burlesco imitativo”. Nesse sentido, a paródia é pensada como uma possibilidade que não necessariamente nega o Modelo: a paródia como um outro modelo. Se o livro de Ariel é uma paródia, devemos concordar que é uma paródia muito singular. Não existe para negar o modelo, nem simplesmente para homenageá-lo. Seu procedimento parece ser criado para pensar o Modelo, e consequentemente os rumos da literatura argentina. Assim como Aira, Ariel parece ser sério não sendo sério. Penso que também poderíamos ler o livro como um acerto de contas bem formulado do jovem escritor argentino com o vilão: “Eu também sei fazer”.

(Cesar Aira)

Vejamos brevemente o seu enredo. Depois de ficar sabendo que seu amigo Joaquín, dono de uma nova e pequena editora, publicará um livro inédito de Aira, Dante, o Anão Mais Sexy do Mundo - que além de passeador de cães é também um escritor frustrado -, decide investigar o motivo de Aira publicar tantas novelas, muitas delas ao mesmo tempo. O personagem, então, começa a se envolver em uma série de peripécias ao lado de personagens curiosos como Leandro Tiressi, um vendedor de livros roubados, Figueraz, vulgo Puto Nazi, uma espécie de jovem neo-nazista, o Guru Chitarroni, Leslie Chueng, um taiwanes peronista que é também um ninja, Maira, uma prostituta virgem, entre outros, com direito à participação especial de Arturo Carrera. Paremos por aqui. Convém não contar o resto da história para não estragar a surpresa daqueles que ainda não a leram. 

Basta observar que Ariel, ao passo que ficcionaliza Aira, aproveita para “desmontar”a sua obra. Vejamos uma passagem em que o Guru Chitarroni observa: “Aira se limitó a crear el procedimiento, un gran invento, por otra parte, no le restemos mérito, y después se desentendió del asunto. Una vez construida la máquina, puede poner a cualquiera a operarla. Y el procedimiento está ahí, multiplicado en sus novelas, como el algoritmo al que todas ellas se sustraen, al alcance de todos. Cualquiera pude echarle mano y escribir una novela de Cesar Aira, de hecho...”. O argumento metaficcional é divertido e esclarecedor. Segundo o personagem, a maquinaria de Aira pode ser usada por qualquer um. De forma irônica é o que faz o próprio Ariel ao fazer procedimento de Aira, suplantando a mera cópia.

Se a ideia do procedimento, para Aira, é colocar em xeque a “miséria psicológica” a que chamamos de “talento”, “estilo”, “missão”, e “outras torturas mais”, entram em uma outra dimensão os conceitos de cópia, influência, modelo, nação, ou mesmo paródia. Nesse sentido, penso que o livro de Ariel Idez é além de divertido uma máquina que nos permite pensar nos rumos da literatura argentina. Dessa forma, o livro positivamente, é mais ambicioso do que parece. Se o resultado do livro é o apocalipse e a consequente morte da nação – ou seja, da própria idéia de missão ou autenticidade – cabe pensar na sobrevivência do literário, aquilo que suplanta a própria ideia de nação como um todo organizado, ou da boa literatura como surgida da originalidade. Assim como Aira, Ariel, redobrando as dobras de seu “Modelo”, pensa a literatura como um absoluto capaz de suplantar a própria ideia de nação. A nação, para Ariel, também é uma ficção, assim como a ficção é o centro de seu território. E Aira parece ser aquele responsável por apertar o botão da bomba.           

Chama a atenção no livro a parceria de Aira com uma infinidade de ghostwriters subterrâneos responsáveis pela escrita de sua obra. Como poderia um escritor escrever tanto? Aliás, é esse questionamento que motiva o Anão Mais Sexy do Mundo a investigar o caso. Como escritor frustrado, aterrava-o o contraste com a sua situação atual, “saber que cada tarde mientras el cursor de su computadora titilaba al ritmo del interrogante, en el otro extremo de la ciudad, en un bar de Caballito o Flores, César Aira, ese demiurgo literario, escribía sin pausa su próxima novela”.



Para finalizar, gostaria de lembrar da novela “O Mago” (que misteriosamente me veio na lembrança), em que César Aira cria um personagem que é mágico de verdade, mas não possui imaginação. Ou seja, possui o procedimento, mas não consegue manejá-lo, lhe falta tato e talento para isso. Ao longo do livro, depois de concluir que a magia é a sua realidade e de suspeitar de que, por isso, a sua realidade é fruto de sua magia (iMAGInAção) – ou seja, invenção ou devaneio – o mago encontra um grupo de editores que o motivam a escrever livros em série. Se era mágico poderia fazer aparecer muitas e muitas obras. Seria um escritor reconhecido e ganharia dinheiro. Por que não pensara nisso antes? Seguramente, despertaria nos leitores a desconfiança por escrever tanto, ou “mejor, podía dejar que pensaran que usaba escritores fantasmas a sueldo”. Por trás, estaria apenas o mágico e o seu procedimento. Ao contrário do Mago, Aira e Ariel, dobra e redobra, parecem possuir não apenas o procedimento, mas também a imaginação. De que vale uma literatura sem ela?    

caio ricardo bona moreira

(trailler do livro de Ariel Idez)