domingo, 20 de maio de 2018

O orangotango marxista ou somos todos macacos



Depois de sofrer um grave acidente que o deixou paraplégico, Marcelo Rubens Paiva escreveu um dos romances mais populares do Brasil nos anos 80, “Feliz Ano Velho”, não só um depoimento jovial e coloquial de seu processo de adaptação à nova realidade, mas também um testemunho da geração que crescera em meio aos “anos de chumbo” e que se preparava, entre o som do rock and roll e as incertezas do futuro, para o processo de redemocratização do país. Depois do sucesso do livro, o escritor mergulhou fundo na literatura e no jornalismo.
Em 2015, Paiva publicou um dos seus livros mais delicados e profundos, “Ainda estou aqui”, uma autoficção na qual revisitou o sinistro episódio familiar envolvendo o desaparecimento de seu pai, o então deputado Rubens Paiva - na ditadura militar -, cujo paradeiro é desconhecido até hoje. Mais do que uma homenagem ao progenitor, o livro é também e principalmente sobre a mãe, Eunice Paiva, uma guerreira que, naqueles tempos, assumiu sozinha as responsabilidades frente ao lar e que, hoje, sofre do Mal de Alzheimer. O romance, poético e político, trata então de dois dilemas, o do pai que nunca foi encontrado – pairando, assim, como fantasma sobre a família - e o da mãe, transformada dia após dia pela doença. Em tempos de revisão histórica, e de um aprofundamento em doenças degenerativas, “Ainda estou aqui” - cujo título vale para tanto para a mãe quanto para o pai - é um dos mais fortes e bonitos livros da literatura brasileira contemporânea.


Agora, Marcelo Rubens Paiva acaba de lançar “O Orangotango Marxista” (2018), que saiu pela Alfaguara. Seria apenas mais um livro entre tantos outros preocupados com nossa crise política e social não fosse a sagacidade narrativa do autor. A começar pelo narrador, um orangotango que desfia em sua zoológica narrativa uma espécie de fábula sem moral sobre os seres humanos e suas contradições.
O romance - ou melhor, a novela - conta a inusitada história de um símio capturado em Bornéu, que cresceu no laboratório de uma universidade do interior de São Paulo. Lá, aprendeu sozinho a ler e quando todos os funcionários iam para casa, ele passava horas estudando na biblioteca. Virou cristão ao ler trechos do Novo Testamento, mas com o tempo passou por um desapontamento metafísico ao perceber que “tudo era uma questão de explorados e exploradores, ou melhor de divisão de classes (espécies)”. Cada vez mais, o narrador vai se interessando pela obra de Darwin, com quem descobriu a proximidade entre macacos e humanos. Encantou-se pela filosofia, conhecendo em profundidade textos de Hegel, Kant e Marx, tomando, então, consciência de sua condição de explorado, o que mudaria a sua forma de encarar o mundo. Depois de se apaixonar pela sua pesquisadora, o orangotango é levado para um zoológico, deixando de ser objeto de estudo para virar uma peça na engrenagem da indústria do entretenimento, na sociedade do espetáculo. A partir de então, ele passa a observar o comportamento dos visitantes, invertendo a lógica natural dos fatos. O homem é seu opressor, mas também sua atração.


Para o orangotango, aqueles que nasceram em cativeiro só conhecem o mundo do opressor e do oprimido: “Mas a maioria, com eu, caçada e aprisionada, arrastada em navios, colocada em containers à força, deve ter, nem que reprimido, o verdadeiro sentido da vida, em contraste com o efeito absurdo que nasce da dominação de um grupo sobre o outro: a liberdade”.
Aos poucos, durante a noite, a personagem começa a incursionar pela cidade, depois de descobrir uma forma de sair do parque. Isso com o objetivo de investigar a vida dos humanos e encontrar uma forma de se libertar de sua condição de explorada. Nessa, que é uma das partes mais interessantes do livro, o orangotango, depois de muito observar o cotidiano das pessoas, acaba concluindo que a vida dos humanos não é tão interessante quanto poderia parecer: “No final de contas, a liberdade que poderia trazer alegria, felicidade e alívio àquelas pessoas mostrava que eram todas escravas de um sistema alienante que impedia de admitir que, no fundo, aquele estilo de vida era triste, deprimente, vazio, entediante e sem sentido”. O primata letrado questiona também a alienação das pessoas por meio dos aparelhos de celular, que fazem com que os macacos nus (homens) deixem de olhar para o mundo, concentrados que estão apenas nas telas da máquina: “Os humanos chegaram num estágio tão elevado de conhecimento e tecnologia que acabarão aprisionados por ela. Já começou”. Isso sem contar nas contradições sociais apontadas pelo símio, que demonstram a incapacidade do homem de viver em sociedade sem subjugar seu semelhante. Lembremos que estamos diante de um narrador marxista.
Inspirado por um rebelde gorila chamado Fidel, que vivia isolado em uma ilha do zoológico, o orangotango desenvolve seus planos de ação revolucionária. E paro por aqui para não “entregar o ouro ao bandido/leitor”.
      Vale observar que o livro de Marcelo Rubens Paiva, em um momento de intensa conturbação política, lança um curioso olhar sobre os dilemas do homem contemporâneo. Faz isso com qualidade alegórica ao propor que vejamos a nós mesmos pela ótica do outro, neste caso a do orangotango. Naturalmente, há uma ironia neste quesito, pois a racionalidade, no livro e talvez fora dele, parece estar mais ao lado dos macacos do que dos homens. Vivemos como os bichos presos em um zoológico. Aliás, segundo uma lógica perspectivista, poderíamos dizer que para o orangotango somos nós os macacos.     

Publicado originalmente no jornal Caiçara, 
de União da Vitória (PR), em 19 de maio de 2018. 

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Wilson Bueno, Mascate de Palavras




Em maio de 2010, o escritor paranaense Wilson Bueno foi brutalmente assassinado em sua própria casa. Ele vivia no Bacacheri, em Curitiba, mas sua verdadeira morada estava situada no mundo das belas palavras, com seus variados matizes, suas nuances fronteiriças que, sem dúvida, contribuíram para expandir sua língua literária. Desde então, lamentamos a perda de um dos escritores mais inusitados, inventivos e singulares da literatura latino-americana contemporânea.
Bueno tencionou como poucos no Brasil os limites da língua. Com suas fusões linguísticas trans-geográficas, em seus volteios transbarrocos, em suas torções sintáticas, extraiu do encurvamento de suas formas uma potência poética bastante incomum, capaz de contagiar e contaminar o nosso idioma com outros falares. Aliás, André Dhôtel escreveu certa vez que a única maneira de defender uma língua é atacá-la e que “cada escritor é obrigado a fabricar para si uma língua”. Os bons escritores são aqueles que criam a sua própria língua. Guimarães Rosa que o diga. Gilles Deleuze, o filósofo das dobras, por sua vez, observou que escrever não significa impor uma forma a uma matéria viva. Isso porque a literatura está antes “ao lado do informe, ou do inacabamento”. Nesse sentido, para ele, escrever é um caso de devir, “sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida”. Clarice Lispector diria, com outras palavras: “Quero não o que está feito mas o que tortuosamente ainda se faz”.

Ilustração: Ricardo Humberto

A prosa de Wilson Bueno desabrocha em rodas de redemoinho, dobrando-se e desdobrando-se sobre si mesma, cada vez que abrimos seus livros a dançar com suas palavras. Das crônicas poéticas de “Bolero´s Bar” (1986) ao testamento literário de “Mano, a noite está velha” (2011), o autor produziu uma série de pérolas que transitaram da poesia concisa aos bestiários, passando pelo diálogo com outros autores – Machado de Assis e Kafka em dois livros específicos - e pela confecção de uma prosa poética neobarroca. Em sua obra, o autor forjou uma curiosa língua literária, misturando o português, o espanhol, o guarani e inclusive o árabe, fazendo do contato entre tais domínios linguísticos um caso amoroso com conotações eróticas. É o que desenvolveu, por exemplo, na bela e inquietante novela “Mar Paraguayo” (1992), que segundo Heloísa Buarque de Hollanda, “promove a declaração, subterrânea, da falência das fronteiras”. Sua política de (des)territorialização da linguagem parece ter reafirmado o argumento de Sérgio Buarque de Holanda de que “somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”, ou ainda de que somos sempre e inevitavelmente, na língua que for, estranhos a nós mesmos. 



Há um livro ainda muito pouco conhecido de Bueno no qual a mistura erótica das línguas se expande para a própria narrativa. Trata-se de “Mascate”, novela publicada postumamente, em 2014, pela Yiyi Jambo Cartonera, e ambientada na fronteira do Brasil - possivelmente no Mato Grosso do Sul - com seu país hermano, o Paraguai. A obra discorre sobre a relação amorosa entre uma prostituta - possivelmente um homem travestido de mulher ou um transgênero, fica apenas sugerido - e um árabe de nome Faissal Mohamed el-Rachid, um mascate que se torna amante da protagonista. No texto, a narradora, que se diz “marafona” (como na novela “Mar Paraguayo”), se põe a escrever sobre o seu amor ao sírio, que conheceu “en la tarde preguiçossa del putero de Eldorado do Paraná con su maletita comercial llena de bugigangas preciosas”. A história deste encontro, “aberta a la felicidade del viento”, é considerada pela protagonista como uma “charla mateada de azúcar y vino”.


Com suas alegrias e tristezas, a marafona vai desfiando lembranças de seus encontros amorosos com Faissal, expressando seus desejos, lamentando sua partida: “tratê desto muezim pî’aitteguivé, com carícias y indormidas auroras”. No entanto, o grande tema do livro parece ser a própria linguagem amorosa. E como nos ensinou Barthes, o discurso amoroso é sempre de uma extrema solidão. Para ele, o amante não para de correr dentro da própria cabeça. Sua fala existe unicamente por “ondas de linguagem”. Nas linhas de “Mascate”, mais do que escrever sobre o desejo – que em certo sentido se revela impossível – a narradora corporifica a própria linguagem como objeto de desejo. O que deseja aqui e quer ser desejado é o próprio texto, cama de lençóis e palavras. E naturalmente o desejo do amor aumenta à medida que surge a impossibilidade de satisfazê-lo. É quando Rachid vai embora. E sofre o coração da narradora: “En esto momento turbinado y turbilhonado es apenas um corazón latindo às ecâncaras, descarado y lacrimoso, mi marafo corazón pidiendo a los derruimentos del dia ni que sea un miligrama de ternura, atención ô lo que sea el amor”.  


Em meio às frases do livro, surgem palavras árabes e guaranis que vão se integrando ao portunhol selvagem de Bueno: Ahd lulo (colar de pérolas), Ãrtiah nafse (paz de espírito), biah (mascate), shoh lal watta (crepúsculo), biah ashiah sãcar (doce mascate amante meu), purahéirori (canção alegre), tecorori (alegria), taperé (povoado deserto), ñuatimbucú (espinho), che che mandu´á (eu me recordo), entre tantas outras. Essa algaravia babélica poderia ser lida de vários modos na obra de Bueno. Aponto apenas para uma das possíveis reflexões. Trata-se de pensar nos contatos entre culturas diferentes, principalmente em zonas fronteiriças, gerando falares híbridos que problematizam a ideia de uma territorialidade estável. Essa pluralidade linguística e cultural é bem assimilada por Wilson Bueno que soube tirar proveito disso sem esquecer de que as palavras não têm fronteiras. 

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR),
 em 12 de maio de 2018.


domingo, 6 de maio de 2018

Onde estão os anônimos que assentaram os tijolos? Por onde anda Raduan Nassar?



Há alguns dias, 23 de abril, a juíza Carolina Lebbos negou vários pedidos de visita a Lula, que está preso na Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba. Isso dias depois de não autorizar também as visitas do teólogo Leonardo Boff e do prêmio Nobel da Paz, o argentino Adolfo Pérez Esquivel. As fotos de Boff sentado em frente à sede da PF, independente de questões partidárias, são comoventes, lembrando um quadro de Edward Hooper. Entre os vinte e três pedidos indeferidos pela juíza, um chamou-me a atenção em especial, aquele feito pelo escritor Raduan Nassar. 
Autor de uma das obras mais potentes e bonitas da literatura brasileira do século XX – certamente uma das que mais me emocionam -, Raduan Nassar ficou conhecido depois de publicar “Lavoura Arcaica” (1975) e “Um Copo de Cólera” (1978). Causou um frenesi nos meios literários pela alta qualidade de sua narrativa e logo depois, misteriosamente, silenciou, parando de escrever e abandonando, assim, a literatura. Os leitores tiveram que se contentar com a publicação nos anos 90 de uma série de pequenos relatos antigos, reunidos pela Companhia das Letras com o título “Menina a Caminho”. Raduan desapareceu da mídia, comprou um sítio e virou agricultor, talvez pensando em cultivar plantas mais nobres. Os motivos que o levaram a abandonar a escrita literária foram amplamente discutidos pela crítica, mas nunca devidamente elucidados. São mistérios do autor e sua arte.



Raduan prosperou como agricultor, a fazenda cresceu e há alguns anos o escritor reapareceu na mídia devido ao fato de ter doado a propriedade para o Governo Federal com a contrapartida de que ali fosse instalado um complexo universitário que oferecesse acesso gratuito ao ensino superior a filhos de trabalhadores rurais, negros e indígenas. O Governo, na época presidido por Lula, aceitou e hoje ali funciona um campus vinculado à UFSCAR (Universidade Federal de São Carlos), atendendo mais de quinhentos alunos. Uma parte da propriedade foi doada a um antigo e leal funcionário de Raduan.
Avesso a entrevistas e aparições na mídia, o discreto autor voltou a aparecer em 2016 quando recebeu o Prêmio Camões de Literatura, o mais importante da Língua Portuguesa. Na cerimônia de premiação, Raduan disparou um discurso crítico contra o Governo – um dos responsáveis pela premiação -, sustentando que os fatos atuais, pós-impeachment, configuram um governo repressor atrelado ao neoliberalismo com sua “escandalosa concentração de riquezas”: “(...) mesmo o governo que está aí foi posto e continua amparado pelo Ministério Público e de resto pelo Supremo Tribunal Federal”. O discurso foi rebatido logo após pelo Ministro da Cultura na época, Roberto Freire, em uma veemente defesa ao Governo de Temer. Freire foi vaiado pela plateia.


Fico pensando nesses três episódios, o pedido de visita negado, a doação de sua propriedade para a construção de um campus universitário, o forte discurso contra o Governo na premiação Camões. Soma-se a esses acontecimentos um outro, não menos curioso. Durante a campanha presidencial de Dilma, o autor gravou um vídeo que circulou na internet em apoio à candidata. Fatos inusitados para quem conhece o perfil do escritor e agricultor recluso. Episódios que demonstram não ser assim tão silencioso o seu silêncio. Pelo contrário, Raduan reverbera politicamente na literatura e fora dela. Trata-se da tomada de posição do intelectual em tempos de crise.
Depois do Prêmio Camões, em 2016, Raduan teve toda a sua produção reunida em um volume intitulado “Obra Completa”, que saiu também pela Companhia das Letras. Além dos já citados livros, a publicação trouxe ainda dois contos inéditos e o curioso e belo ensaio “A corrente do esforço humano”, escrito em 1981, mas publicado só em 1987, na Alemanha. Imagino que este ensaio nos ajuda a entender melhor o pensamento do literato, bem como compreender os episódios citados.
No texto, Raduan critica o complexo de inferioridade que ronda os brasileiros, a se sentirem, em sua grande maioria, menos importantes que os estrangeiros. Para o autor, as ideias de que os produtos importados são melhores e de que o homem europeu é superior são antigas e estão muito presentes no pensamento do brasileiro e mesmo no do estrangeiro. Para Raduan, apesar das mudanças ocorridas no pós-guerra, o prestígio europeu ainda é enorme. O homem comum assim como os povos periféricos jamais tiveram seus nomes inscritos como vencedores: “Entretanto, quando se entra em uma residência bem posta, é legítimo perguntar, diante do orgulho do dono da casa, onde estão os anônimos que assentaram os tijolos”. Como seria legítimo perguntar, para os países desenvolvidos, “onde estão os povos, humilhados e ofendidos que concorreram para o seu brilho”. O escritor defende, ao invés da importação e da cópia dos países desenvolvidos, a absorção do que interessaria à suposta comunidade brasileira em termos de pesquisa e conquistas técnicas. Isso porque as ideias são universais, “pertencendo antes à corrente do esforço humano (...)”. Perto de encerrar o ensaio, Raduan Nassar escreve: “Supondo-se que todo homem seja portador de uma exigência ética, não há como estar de acordo com a dominação de uns sobre os outros”. O texto assim nos apresenta um Raduan muito consciente e politizado. Seu silêncio faz barulho.

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória - PR, no dia 05 de maio de 2017