domingo, 28 de dezembro de 2008

VIDA QUE INSISTE:
CONSIDERAÇÕES SOBRE “O VENTO NOS LEVARÁ”, DE ABBAS KIAROSTAMI
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O vento nos levará a todos (perdoem-me a silepse). Pode acreditar, meu amigo. A não ser que encarcerem nossas cinzas em um esquife lacrado, o que seria lastimoso. Se tudo existe para acabar em vento e em cine, deveríamos prestar mais atenção em Abbas Kiarostami. Contar uma história ou fazer um filme pode ser uma forma de vencer a morte. É o que pensei quando assisti ao Gosto de Cereja e O vento nos levará, desse brilhante cineasta iraniano. Uma das cenas que mais gostei de Bād mā rā khāhad bord (O vento nos levará) é quando o engenheiro, responsável por fazer uma filmagem numa aldeia do Irã, vai até uma das casas do vilarejo em busca de leite. Desce até o porão, um estábulo subterrâneo, e encontra uma jovem disposta a tirar para ele leite de uma cabra da família. O homem começa a declamar um poema: "Se vier à minha casa /oh, bom senhor,/traga a lâmpada/e uma janela pela qual/eu possa ver/a multidão na rua feliz." A moça não entende o instante poético, quase senil, por excelência. A poesia perpassa toda a aldeia, mas os moradores nem percebem. O filme dá uma dimensão poética a essa ausência.
Sim, o cinema de Kiarostami é mesmo poético. Mas essa poesia não está apenas no poema que o personagem declama no porão da casa. Ela está na árvore solitária que está fincada na paisagem quase desprovida de vegetação. Ela está no passeio de motocicleta preenchido com um fundo natural que faz lembrar “Corvos no Trigal”, de Van Gogh. Está no gesto do menino que guia o engenheiro e sua equipe pela comunidade que começa a fazer parte da vida do forasteiro. Ainda na cena do leite o homem pergunta para a jovem se ela conhece Forough. Ela diz que sim, é a filha de Gohar. Não, ele se refere à Forough Farrokhzad, uma poeta iraniana. Poeta que por sinal inspirou o filme de Kiarostami. O próprio título do filme alude ao poema “O vento nos levará”, que é também é declamado pelo engenheiro na cena, e cuja beleza me impele a transcrevê-lo:

Em minha noite, tão breve, oh pena
o vento vai de encontro às folhas
minha tão breve noite completa-se de atroz angústia
ouve! escutas o sopro das trevas?
dessa felicidade sinto-me estranho.
o desespero já me é costume
ouve! escutas o sopro das trevas?
ali, na noite, algo se passaa lua é vermelha e de angústias
e presas a esse teto,
que ameaça desabar a cada instanteas nuvens,
tal qual turba de choradeiras, esperam o deitar das chuvas,
um momento e nada mais.
por sob a janela, é a noite que treme e a terra a não mais girar
por sobre a janela, um estranho
inquieta-se a mim e a ti
e tu, verdejante, estendes tuas mãos – essas lembranças ardentes –
sobre minhas mãos apaixonadas e confias teus lábios,
cheios que são do calor da vida,
às carícias dos meus lábios apaixonados
o vento nos levará! o vento nos levará!

tradução da versão francesa(original em persa) por Ruy Gardnier


A menina parece indiferente à declamação do engenheiro. Esse desprendimento, que dá o tom de “O vento nos levará”, marca presença em quase todas as cenas do filme. Se me perguntassem sobre o que é o filme, eu diria: sobre a vida. Poderiam intelectualizar com mil e uma e outras colocações: “Não, é um filme sobre o próprio cinema”, etc e tal. Tudo bem, pode pensar o que quiser, uma leitura fascista é a pior das leituras. Vamos por partes, rebobinemos a fita. O engenheiro é incumbido de visitar uma pequena aldeia. Lá, deve aguardar que uma velha morra e filmar o ritual fúnebre que a comunidade ainda mantém no seio de uma secular tradição e nas lágrimas de dedicadas carpideiras. O caso já é mote para Kiarostami desenvolver uma reflexão antropológica sobre as tradições de comunidades periféricas, bem como a relação entre periferia e centro.
Mas poderíamos ir além, mesmo que esse além signifique somente um mergulho no próprio filme. O fato é ocultado da comunidade. O engenheiro conta para seu guia, um jovem iraniano, que a equipe estaria ali para escavar destroços – um grupo arqueológico, por que não? – Cavar a morte significa cavar uma ruína. Mas o inusitado acontece. Aliás, o cinema de Kiarostami é repleto de inusitado, o que não se espera e sempre espreita os bons roteiros cinematográficos. O inusitado é que a morte não acontece, o que impacienta toda a equipe, com exceção do engenheiro, que parece ter aprendido a conviver com a vida e com a aldeia. Acredito que poderíamos “ler” o filme a partir da leitura do poema de Forough Farrokhzad. Em meio ao sopro das trevas, o calor da vida. O cinema como aquele estranho que inquieta-se entre mim e ti. Depois desse contato, um outro que se precipita numa lembrança ardente sobre mãos apaixonadas: em Kiarostami, somos reféns de uma poesia que nos chega estranha e, ao passo que acontece, nos incendeia. São poéticas as palavras? Talvez. Até a morte pode ser poética quando está a serviço da vida.
Por isso um título tão sugestivo: “O vento nos levará”, como leva o osso que o engenheiro mergulha sem sentido no pequeno riacho. Acho que o poema é uma síntese do filme, assim como o filme pode ser uma síntese do poema: É a vida que insiste em sobreviver, como as imagens do cinema de Kiarostami. Perdoem-me o discurso apaixonado. É que, mesmo hesitando, só consigo falar sobre as coisas que amo.
c.moreira

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

AMANDO O SÉCULO XIX NEM SEI SE COM CARÍCIAS:
O IDO E O VIVIDO COMO SEMENTE DO PRESENTE, OU MESMO VICE-VERSA



Em agosto de 2004, numa entrevista ao jornal Rascunho, Wilson Bueno afirmou que com o livro Amar-te a ti nem sei se com carícias, lançado naquele ano, pretendeu se aventurar pela lentidão do final do século XIX e início do XX justamente para inventariar o ido e o vivido e assim lançar uma ampla visada a este “nosso mais que aflitivo início do terceiro milênio”. No livro, um dos mais criativos escritores contemporâneos do Paraná, além de recriar o ambiente carioca dos tempos de Machado e da transição da Monarquia para a República, faz aquilo que poucos literatos têm coragem para fazer: um amplo mergulho na linguagem. Isso não significa que Wilson Bueno reconstitui apenas o vocabulário da época. O mergulho é mais profundo. Ele reconstrói um certo ritmo, uma cadência sugestiva, por meio de um manejo magistral na sintaxe da época. Nesse sentido, Bueno poderia ser considerado um exímio pesquisador da língua. Algo semelhante ele já havia feito em Mar Paraguayo, belíssimo livro que tive o prazer de ler em 2008. Nele, o autor desenvolve uma hibridização entre a língua portuguesa, espanhola e guarani. Tal mistura, pungente na fronteira entre o Paraná e o Paraguai, incitou Bueno a “dar uma resposta estética ao histórico isolamento em que se encontram submergidas as línguas do continente hispano-americano”, segundo o próprio autor. E agora que acabo de ler Amar-te a si nem sei se com carícias, sinto necessário anotar aqui alguns apontamentos de leitura. Numa espécie de prólogo, o escritor afirma ter encontrado um manuscrito na demolição de uma aristocrática casa no bairro de Botafogo. Um legítimo manuscrito do final do século XIX que retrata memórias do narrador situadas entre 1850 e 1914, aproximadamente, e que trazia como assinatura apenas duas iniciais: L. P. Escrito provavelmente por Leocádio Prata. Mas é justamente aí que o grande jogo, proposto por Bueno, inicia. A começar pelas duas outras grandes personagens que compõe o enredo: Lavínia Prata, esposa do “possível” narrador, e Licurgo Pontes, conhecido de Leocádio e “possível” amante de Lavínia. Triângulo amoroso escrito à maneira de Machado de Assis, a quem se atribui a epígrafe do livro, extraída de Dom Casmurro: “O maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado”. Aliás, Machado poderia servir de pano de fundo para a nossa leitura do livro, não apenas pela presença de capítulos curtos, à maneira de um de seus guias, Xavier de Maistre, mas porque, em vários momentos, o narrador interpela o leitor, mesmo defendendo a idéia de que nunca haverá tal leitor, pois o manuscrito seria queimado logo após a sua conclusão. Quem já leu Machado sabe que tais vocativos não são despropositais. O jogo proposto por Bueno se dá por criar uma narrativa cujo autor é tão incerto quanto o próprio século XIX. Não sabemos por qual L.P. o texto foi escrito. E mesmo sendo escrito por Leocádio Prata, o livro bem poderia ter sido corrigido por Licurgo Pontes, ou Lavínia Prata. Cada um retratando-se aos olhos de Leocádio da maneira como bem quisesse. De maneira que todas as memórias que compõe a narrativa devem ser tomadas como uma ficção que não sabemos de onde vem. Os acontecimentos bem poderiam ter sido recriados por cada um dos três. Cabe ao leitor optar por um caminho, mesmo sabendo que tal caminho pode ser inútil, talvez não nos levando a lugar algum, tal como os mistérios da dissimulada Capitu.

Atente-se para o fato de que no livro, há certo exagero no uso de determinados termos que já não eram comuns na literatura do final do século XIX. Mas isso é proposital, afinal de contas, pelo que parece, o escritor não pretende reconstituir o tempo e a língua como um historiador, ou um filólogo, mas sim criar um certo “clima do séc. XIX”, que não deixa de ser também caricatural. Assim, o livro passa a ser não só sobre o século XIX, mas também sobre o século XX, sua transição para o XXI, o nosso tempo, o que fundamenta o argumento de Bueno apresentado no início do texto: “lançar uma ampla visada a este nosso mais que aflitivo início do terceiro milênio”. O que se mostra, então, na narrativa, é um tempo dúbio, para usar uma expressão do narrador do livro: “Ora, ora – os tempos são dúbios e é deles a inconseqüente matéria com que nos agarramos, filhos diletos do século XIX”. Ainda na entrevista concedida ao jornal Rascunho, Bueno esclarece a questão: “Por mais que eu, um autor do século 21, intente reproduzir, digamos, a linguagem dos oitocentos, estarei invariavelmente traindo esta mesma linguagem, introduzindo, queira ou não, a dicção de meu tempo. (...)”. Se tomarmos a afirmação ao pé da letra, concluiríamos que o tempo e a língua formam a matéria do escritor. Mais importante que a “história-estória”, propriamente dita, é a maneira como Bueno opera a linguagem em sua literatura, sem desconsiderar a interpenetração de tempos e línguas – o que poderia enquadrá-lo numa estética neo-barroca (perdão,não gosto muito do termo!) - numa proposta literária. Isso,a meu ver, não é pouca coisa.

c.moreira

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

A VOLTA AO DIA EM 80 CORTÁZARES

Tenho para mim que títulos de textos e livros sempre dizem muito sobre seus escritores. Revelam, muitas vezes pelo avesso do que dizem, pelas beiradas, algumas margens de indecisão, posições, perspectivas, toques, sussurros e dicas sobre aquele a quem não temos acesso, senão pela mão de um fantasma maligno. Manoel Carlos Karam, por exemplo, sempre foi ótimo em títulos: Comendo bolacha Maria no dia de São Nunca, Pescoço ladeado por parafusos, ou simplesmente Cebola, não menos original, como Encrenca. Muitas vezes, o mais simples revela o mais complexo, assim como um universo pode caber numa simples cabeça de alfinete: Metamorfose, O estrangeiro, A Náusea, O castelo, A Montanha Mágica. Com títulos, Julio Verne foi capaz de evidenciar sua imaginação, convidando o leitor a viajar com ele pela lua, pelo mundo num balão, pelo centro da terra. A partir de A volta ao mundo em 80 dias, Julio Cortázar, esse enormíssimo cronópio, elabora A volta ao dia em 80 mundos. Em ambos, a viagem. Que há em comum? O extraordinário. O título parodiado por Cortázar explicita uma das noções básicas da literatura para o mais francês dos argentinos nascido em Bruxelas (esse fato causa uma mescla de surpresa, riso e estranhamento: creio que los hermanos, no fundo, nunca perdoarão o mago de O Bestiário por isso. Argentino é só quem nasce na Argentina? E o filho dos astronautas, que veio ao mundo, ou melhor, à lua em uma estação espacial? É humano aquilo que não nasce na terra?)

O título, de certa forma, nos revela o que é a própria literatura, para Cortázar: Vários mundos em um. A literatura como criação de novas e mágicas passagens,outras realidades. Novo sistema do pensamento que pode ser encontrado no mais cotidiano e banal dos acontecimentos. Ou não seria assim, o sobrevôo de uma mosca, que espevitada invade nosso quarto, a guiar-nos os olhos com espanto pelo gesto quase vazio de suas asas, ou o miado macabro de nosso gato preto escondido dentro da parede, prenhe de mistérios e vinganças – poderíamos chamá-lo de Theodoro Adorno, sim, por que não? O louco Gregório, não o papa, mas a barata limpando seu corpo depois de retornar do inferno, o escritório em que Kafka batia cartão.

Em 1967, Cortázar reuniu vários textos, muitos dos quais já publicados em livros, jornais e revistas. São contos, ensaios, poemas, frases, fotos, sustos, lembranças, assombros, ocasiões, encontros; e montou o que poderia ser reconhecido hoje como um projeto precursor dos atuais blogs, ou mesmo a literatura visual que foi amplamente valorizada no final do XX e início do XXI. É claro que nem todos os blogueiros escrevem com a força de um Cortázar, nem todos são bruxos, o que fazer? No entanto, todos, por mais fracos que possamos ser, cedo ou tarde, acordamos de madrugada soluçando e sorrindo assustados e nos descobrimos um pouco Cortázar. Somos estrangeiros no próprio país, desde que optamos por perder tempo nesse puro gasto (dispêndio) que é escrever sem eira, nem beira, por puro deleite, como quem joga uma bela pelada no sábado à tarde, e continua jogando durante quase todos os dias durante a semana. Não temo mais que isso não nos leve a lugar algum. Mas voltando aos idos de 60, década muito significativa, não apenas para a América Latina, mas para todo o mundo (veja A sociedade do espetáculo, de Guy Debord). Foi nessa mesma época que esse cronópio maluco - falo de Julio Cortázar - inventou uma estranha máquina capaz de nos levar aos 80 mundos que se escondem sob a capa de um só dia.

Mas vamos ao mundo, ou melhor, aos mundos. O livro foi composto em parceria com ilustrador Julio Dias, outro cronópio que tem como primeira letra de seu nome um J, como Cortázar, como Verne, como Cristo, como Lennon, como Hendrix, como Joplin. A lista é grande. Será obra do acaso? Agora nos chega a publicação, em dois tomos, que ganhou tradução para o português, juntamente com O último round, carinhosamente preparada por Ari Roitman e Paulina Wacht. O trabalho, lançado pela Civilização Brasileira, procurou reconstruir o cenário de textos e ilustrações, tal como o próprio Cortázar tinha organizado, na década de 60.

Louvores para um belíssimo ensaio, talvez o maior do livro, sobre Lezama Lima, etrusco de la Havana vieja, por quem Cortázar nutria uma extensa admiração, tão grande quanto o número de páginas de Paradiso. O argentino nascido em Bruxelas sabia muito bem do potencial das associações. Com magistral capacidade de inventar os próprios escritores que admirava, reuniu Verne e Lezama num universo cósmico e telúrico onde se faz alquimia com palavras. Fala de Paradiso: “E por que subitamente Jules Verne num livro em que nada parece evocá-lo? Mas é claro que evoca; para começar, não é o próprio Lezama que fala das vivências oblíquas, não foi ele quem disse em algum lugar que é como se o homem, evidentemente sem sabê-lo, ao girar o interruptor do seu quarto inaugurasse uma cachoeira em Ontário?”.

Nem todos os textos fazem uma referência direta ao autor de Cinco semanas em um balão, todavia ele esta lá, mesmo que escondido por traz de uma ou outra diabrura capaz de ser suscitada apenas por uma literatura fantástica – tomo o sentido literal da palavra (apesar de não acreditar na existência de tal sentido - imagino que a única coisa literal que existe no mundo é o nascer e o morrer). Isso porque Cortázar, mesmo falando de Thelonious Monk, Carlos Gardel, Louis enormíssimo cronópio, ou das crianças de Calcutá, ou do sol de Saigon, ou de Jack, o estripador, está viajando com Philleas Fogg. Nesse sentido, talvez fosse necessário reler A volta ao mundo em 80 dias, não para encontrar Verne ou Cortázar, mas para entender que uma volta ao mundo ainda é muito pouco. É possível surpreender os olhos com a seguinte descoberta: Viajo sem sair do quarto, como Xavier de Maistre, ou mesmo aquele jornalista de Rear Window a espiar curioso seu vizinho, assassino em potencial. O título não poderia ser melhor. Melhor que o título só os 80 mundos em que o mais francês dos argentinos nascido em Bruxelas mergulha para uma viagem sem medo de não voltar.

c.moreira

domingo, 14 de dezembro de 2008

FILHA DE PEIXE PEIXINHA É

Só essa imagem já vale o filme!


Um amigo me falou com atenção sobre Sofia Coppola, a herdeira de um poderoso chefão. Tal pai, tal filha, ou filha de peixe, peixinha é! Esse amigo falou muito bem de Virgens Suicidas. Assisti e gostei. Não só do roteiro, mas de outras coisas que, direta ou indiretamente, estão ligadas a ele. Depois, curioso, aluguei Maria Antonieta, que achei uma jóia tão rara como os diamantes que a digníssima de Luis XVI usava com prazer. Não sei se Maria Antonieta era tão bonita quanto Kirsten Dunst. Acho muito pouco provável, tendo em vista as imagens da rainha que sobreviveram até os dias atuais. E olha que muitas vezes os pintores reais faziam um esforço sobre-humano para melhorar seus modelos. Mas nem Debret conseguiu deixar Carlota Joaquina mais bonita. Aliás, assistindo ao filme, lembrei que tanto Luis XVI, quanto D. João VI são figuras que, segundo os biógrafos, eram medrosos e muitas vezes incapazes de satisfazer sexualmente suas mulheres. O que levava Maria Antonieta e Carlota Joaquina a alimentarem relações extra-conjugais com cavaleiros, amos, conselheiros do rei. Coppola criou uma leitura bastante subjetiva – ora, todas são! – da vida da rainha. Tal fato permite que a cineasta, ao mesmo tempo que instiga uma leitura anacrônica da história (as músicas contemporâneas são mescladas às peças clássicas da época), proponha uma des-leitura da história. Tome nota da cena em que os pés de Maria aparecem em close-up. Ela está experimentando um sapato. Ao fundo, aparece, sutil, porém retumbante, um belo all-star azul. O filme toca com "precisão" os fatos “reais”, pois qualquer tentativa de reconstrução histórica seria fracassada se não se partisse da premissa de que tudo isso é uma grande “leitura”, a história como própria ficção. O que estou querendo dizer é que não vejo com maus olhos as transgressões de Coppola. Pelo contrário, é essa provocação uma das coisas que mais me chamou a atenção no filme, ao lado de um preciosismo visual colorido e sedutor, muito diferente da maioria dos “filmes de época” que pululam no cinema americano, geralmente repletos de um cinza e de uma sisudez que quase todos imaginam ser o traço principal das “pessoas de antigamente”. Outro detalhe que chamou minha atenção é que o filme “pinta” uma Maria Antonieta muito diferente de como foi retratada pelos historiadores. Na película, que parece tocar mais de perto a realidade, - mesmo sendo ficção, ou justamente por sê-lo -, a rainha não é uma vilã que se aproveita do povo carente de pão. É apenas uma jovem sedutora que descobre os prazeres da realeza e por ela está disposta a morrer, perdendo a cabeça ou curtindo a vida adoidada.
Agora, acabo de assistir ao Encontros e Despedidas. Poderia se chamar também Delicadeza, como o filme de Jean Pierre Jeunet. Como diz um amigo, só a seqüência inicial já vale o filme. Mas é muito mais do que isso. O que os três filmes que assisti da Sofia têm em comum? O olhar feminino sobre a realidade. Não me enquadro naquele grupo que defende uma literatura ou um cinema de gêneros; Literatura gay, literatura feminina, etc. Posso estar errado, mas tudo isso me parece pura babaquice. Que sentido tem dizer que a literatura de João Gilberto Noll é gay? E daí? O que isso significa? A literatura dele é literatura e isso basta. E é fabulosa, por sinal (mas deixemos Noll pra outro dia ou para outra noite). Falo que o que há de comum entre os três filmes de Sofia é um profundo olhar feminino sobre a realidade porque as mulheres, bem mais que os homens, têm esse poder. Poderão questionar-me: “Mas e o Almodóvar, também faz isso e não é mulher!”. E quem disse que só mulheres podem lançar um olhar feminino sobre a realidade? Em Virgens Suicidas, percebemos que o universo feminino é bem mais complexo do que parece. E tal complexidade vem de berço. Em Maria Antonieta, descobrimos um personagem que pode não ser a REAL, mas que é demasiado humano. Em Encontros e Despedidas, só um homem maduro e delicado para entender uma jovem carente e delicada. Em ambos os filmes, as mulheres aparecem como sedutoras e carentes. É claro que dizer isso sobre os filmes ainda é muito pouco. Talvez fosse melhor revê-los.

c.moreira

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

TABLEAU PARA VALÊNCIO


Hoje à tarde, quando decidi escrever sobre o Valêncio Xavier, que partiu na semana passada, perguntei para mim mesmo: “Por que sinto tanta necessidade de escrever sobre as pessoas que amo justamente quando elas vão embora?”. Mas, pensando bem, não é a primeira vez que escrevo sobre ele. Imagino que de tudo o que escrevemos sempre fica algo a ser dito, algo que nos escapa, ou mesmo algo a repetir, pois tudo aquilo que se repete, ao mesmo tempo que traz de volta algo que já parecia perdido, traz um pouco daquilo que ficou a ser dito. Preciso contar uma rápida história. No primeiro semestre, que passei em Florianópolis, perdi – ou ganhei, não sei dizer – várias tardes em torno de Valêncio. Não, ele não estava em Florianópolis. Mas a sua presença se impunha dentro de uma biblioteca. Descobri no acervo da UFSC a estranha biografia que Valêncio escreveu sobre Poty. Descobri também uma pesquisa que trazia todas, ou quase todas, as matérias que ele escreveu para a Gazeta do Povo. Que delícia essa descoberta. Passei muitos dias lendo seus textos enquanto deveria estar imerso nos simbolistas. No entanto, curiosamente, estabeleci muitas relações entre as duas coisas. Mas não falarei disso agora, pois estou tomado de um luto feroz. Poucas vezes lamentei tanto a morte de um artista – falo artista porque Valêncio não era apenas um escritor. Não cheguei a chorar como chorei com um amigo e com duas dúzias de cerveja a morte de George Harrisson (TAMBÉM PERDEMOS JAMELÃO). Mister Xavier acharia extremamente careta da minha parte. Mas lamento profundamente, pois Valêncio era um artista notável, que ainda produzia muito, apesar de doente, além de ser uma pessoa muito querida pelos amigos e familiares. Tentei algumas vezes, todas em vão, entrar em contato com o escritor com o pretexto de adquirir uma cópia de uma crítica que escreveu sobre o Agora é que são elas, do Leminski, num pequeno jornal paranaense, na década de 80. Mas acho que no fundo era apenas para conhecê-lo. Ouvi-lo falar apaixonadamente sobre cinema e literatura. Guardo um raro exemplar de A propósito de figurinhas, autografado por ele e por Poty. Nunca liguei para edições autografadas, são fetiches que para mim não fazem sentido. Mas guardo com carinho, como um neto que guarda o canivete do avô, para sempre lembrar que teve um avô. Há alguns meses, escrevi um artigo em que lia os ready-mades do livro das figurinhas como construções da memória, um arquivo de assombros: Valêncio, feito Baudelaire, sempre foi um bom trapeiro. Em seu último livro, o escritor se apropria de uma reportagem do programa Aqui Agora para escrever um conto sobre uma menina morta nua. Mas seus textos que mais me fascinam são aqueles que reconstroem, ou melhor, reinventam um tempo há muito perdido, como Maciste no inferno, em que conta ao mesmo tempo, magistralmente, duas histórias, a do filme que é projetado na tela do cinema e a de um telespectador. O livro me faz lembrar de Pathé-Baby, do Alcântara Machado, que é contado também a partir de fotogramas de um filme de cinema mudo. Aliás, Valêncio escreveu na antiga Cult um artigo sobre esse livro de 1926, uma proposta bastante inusitada e diferente de outras propostas modernistas. Eu queria homenageá-lo nesse texto, mas me faltam palavras e imagens. Talvez bastasse uma colagem de suas fotos, como faz aquele projetor de cinema, em Cine Paradiso. Eu, pequeno como Totó, correria para o cinema para assistir Valêncio e suas histórias. Ele sairia da tela e trocaria figurinhas das balas Zequinha comigo. Espiaríamos a mãe no banheiro, choraríamos a mãe morrendo, tal como Flávio de Carvalho desenhou, contrataríamos uma prostituta japonesa, nos perderíamos bêbados no labirinto do Minotauro, fugiríamos do fantasma de Curitiba, aquele estranho monstro da madrugada, ficaríamos seduzidos pelas musas do cinema pornô paranaense, e abriríamos a porta e apagaríamos aquela vela que se esconde por trás dela e, afoitos, revelaríamos os mistérios do mágico. E tudo seria cinema. A morte apenas uma ficção. Eu encontraria o Valêncio dois dias depois e ele desabafaria: “Estou com as costas doloridas, pois caí de mal jeito depois de ser metralhado e morto por James Lilibrown, o gângster”. “Preciso tirar umas férias e terminar o meu novo livro”. Valêncio sonhava filmar a visita de Che Guevara a Curitiba. O filme começaria com um close-up no pênis de Che, mijando no banheiro da rodoviária. Só Valêncio mesmo!

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

DIGA-ME O QUE VÊS E TE DIREI QUEM ÉS



Escrevo este texto tocado pela leitura do post do Luisandro M. De Sousa - http://beatbossa.blogspot.com/2008/11/blindness.html - sobre o filme Ensaio sobre a Cegueira, do Fernando Meirelles, inspirado no livro do Saramago. Diz o Luisandro: “Senti que faltou um pouco da densidade que os diálogos têm no livro, minha impressão é que se fala muito pouco no filme, é um filme que valoriza o visual, é um filme pra ver, não para ouvir”. É o que pensei. Quase um paradoxo o fato de um livro como esse migrar para um cinema que prioriza o visual, já que ver não é tão importante quanto DAR A VER, como diria João Cabral de Melo Neto, que aliás, sofreu com a cegueira. J. L. Borges soube muito bem disso, tanto é que louvou a própria cegueira. Outro escritor que no fim da vida parou de ver, mas não de enxergar foi o Padre Antonio Vieira, que por sinal, alimentou uma obsessão pela metáfora do VER em vários de seus sermões. O tema da cegueira é uma constante na literatura portuguesa. Basta lembrar que reaparece quatro séculos depois do nascimento do imperador da língua portuguesa, como Fernando Pessoa chamaria Vieira. Falo do livro A Eternidade e o Desejo, de Inês Pedrosa, que recria Vieira, nos olhos de uma professora cega apaixonada por sua obra, a partir da leitura do Sermão de Nossa Senhora do Ó, um dos meus prediletos.
Faz uns 5 anos que li o livro do Saramago. Provocou em mim um choque semelhante ao que causou Kafka, em Metamorfose. Lembro que uma vez emprestei o livro a uma aluna, que se apaixonou pela literatura, e confessou que depois de ler o livro, começou a temer apagar a luz do quarto antes de dormir. Tenho certeza que se tivesse assistido ao filme antes não teria tido a mesma impressão. Lembro que uma das coisas que pensei na época foi na impossibilidade de uma adaptação de qualquer livro desse escritor português, sem que se perca um pouco ou muito, isso depende da VISÃO de cada um. Por isso achei perfeito o nome escolhido por Meirelles: BLINDNESS. O filme é outra coisa. Não é Saramago. Talvez por isso o único Nobel português tenha gostado tanto, já que qualquer tentativa de copiá-lo seria fada de imediato ao fracasso. E profanar o livro deve ser também um dos objetivos de uma adaptação (profanação). Pior cego é aquele que só quer ver o filme. Por isso gostei tanto.
O leitor que não vá ao cinema pensando em comparar as coisas, pois são bem distintas, com exceção da história ser a mesma, o que não quer dizer quase nada.
De todas as passagens do livro, para mim, a mais impressionante é aquela em que a mulher do médico se depara com uma igreja onde os santos estão com os olhos vendados. Impossível VER isso no filme (apesar de que a cena aparece), senão DANDO-A a VER, como no livro:
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“(...) não podia ser verdade o que os olhos lhe mostravam, aquele homem
pregado na cruz com uma venda branca a tapar-lhe os olhos, e ao lado uma
mulher com o coração trespassado por sete espadas e os olhos também tapados
por uma venda branca, e não eram só este homem e esta mulher que assim
estavam, todas as imagens da igreja tinham os olhos vendados (...) Não me
acreditarás se eu te disser o que tenho diante de mim, todas as imagens da igreja
estão com os olhos vendados (...) pode ter sido o próprio sacerdote daqui, talvez
tenha pensado justamente que uma vez que os cegos não poderiam ver as
imagens, também as imagens deveriam deixar de ver os cegos, As imagens não
vêem, Engano teu, as imagens vêem com os olhos que as vêem”.
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Mas o que quero dizer para finalizar é que o filme, para mim, é ótimo. No que é possível ver e fazer, com a lente da câmera como uma prótese do nosso próprio olhar, Meirelles tocou com presteza os olhos do livro de Saramago. O que vemos no livro e não vemos no filme pode ser um sintoma de uma profanação, ou mesmo de uma inquietação do VER, que, às vezes, só um livro traz.
SOBRE “THE DREAMERS”, DO BERTOLUCCI


Você tem dois minutos para fazer um poema antes que a revolução exploda e tudo vá pelos ares. Há duas maneiras de fazer uma revolução:

* Trancafiar-se com dois loucos numa casa cheia de portas, vinhos de um pai poeta, discos e livros: um corredor fantasiado de biblioteca – fazer amor com a menina na cozinha enquanto o irmão dela frita um ovo e espia indiferente seu gemido de gata no cio.

* Sair para a rua e enfrentar a polícia francesa.
Na certa, a segunda opção parecerá mais válida para os camaradas. Além dos infortúnios, causará a impressão de que tua vida não foi em vão. Os pobres homens acreditam que a primeira opção não é revolucionária. Che e Fidel nunca quiseram ficar em casa ouvindo Buena Vista Social Club ou mirando el malecón. Os sonhadores acreditaram que estavam transformando o mundo em maio de 68. Mas não transformaram? Mas e o bom cinema, mesmo aquele que o mais engajado não consideraria de longe revolucionário, também não transformou o mundo? Todo bom filme é uma bomba prestes a explodir. Aí pergunto: “Que revolucionário é esse que pega em armas para transformar o mundo antes mesmo de transformar a si próprio?” Lamento dizer, mas toda ARTE, com letras maiúsculas, mesmo sem ser engajada numa causa particular (as causas são todas tão estranhas a ela) é REVOLUCIONÁRIA.
Já paraste para pensar que em “Os sonhadores”, do Bertolucci, os protestos de 68 aparecem somente no início e no fim do filme? Que revolução é essa que se opera entre sexo, drogas e livros no apartamento do casal de gêmeos siameses que abriga o jovem americano enquanto o mundo pega fogo lá fora?
Muitas coisas a falar sobre esse filme, que ainda está fazendo um eco aqui na minha cabeça (faz uma semana já que assisti ao filme):

* A câmera dança como Josephine Baker pela casa. Não, pensando bem, é a casa que dança, não desenfreada como a exótica Josephine. Dança sutil, como uma bailarina numa passagem do Lago dos Cisnes. O apartamento, um labirinto que dança, assim como a própria História. Vamos e venhamos: 1968, como disse Zuenir Ventura, foi o ano que não terminou.

* Pequenas coisas, detalhes que fazem a diferença: um cinzeiro da década de 60, o bico do seio grande e rosado de Isabelle, seu choro convulsivo depois de uma transa casual, os três corpos na banheira, a luva preta que usa quando finge ser Vênus de Milo. O contraste que se explicita em Isabelle entre o despudor da época e a pureza virginal de uma menina quase santa. A história é bem mais que um protesto.
Por que digo tudo isso? É simples: porque insistem em ler uma obra de arte como essa (The Dreamers é uma obra de arte) a partir apenas de uma perspectiva sócio-política. PORRA! Não será possível ler o mundo de outra maneira?

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

PROFANAÇÕES

(Ilustração: Rene Portocarrero)


Para Dante
Tinha um poeta nel mezzo del camin,
Nel mezzo del camin tinha um poeta

Para Pessoa
O que em mim escreve está mentindo.

Para Maiakóvski
Depois de duas doses de tua poesia
já me sinto embriagado.

Para Leminski
Com quantas palavras se faz um louco?
Rimar com classe a classe gosta,
Mas ser assim ainda é muito pouco

Para Mallarmé
Lanças os dados
E esperar as rimas

Para C.D.de Andrade
E agora, Drummond?

c.moreira

sábado, 29 de novembro de 2008

Manual de instrução para entender – ou não – um filme de David Linch


1 – Acorde de preferência depois das 11h ou meio-dia, é preciso estar descansado;
2 – Almoce algo leve, umas folhinhas de alface, uma colher de arroz, um pedacinho de frango, no máximo um filezinho de coelho;
3 – Passe o dia fazendo qualquer coisa, de preferência pensando pouco e andando muito (para oxigenar o cérebro);
4 – Recuse a todos os convites para baladas, missas, e outros "balagandãs";
5 – Prepare o ambiente, um puf bem confortável, mas sem pipoca, please;
6 – Espere a cidade dormir;
7 – Tranque todas as portas (é possível que elas se abram no meio do filme e te levem para algum outro lugar);
7.1 - Não dê ouvidos aos ruídos, olvide-os;
8 – Acomode-se, ligue o DVD, e esqueça que faz parte desse mundo;
9 – Não fique procurando pistas no filme, elas no máximo te levarão a outras pistas, que te levarão a outras pistas, que te levarão a...
9.1 – Se começar a entender o filme, tome cuidado, isso pode ser perigoso, e as conseqüências desastrosas;
9.2 - Ainda não esqueça os tremas ¨ de conseqüências; pois eles ainda não foram abolidos, nem elas;
10 – Não espere que a mulher com a cabeça de coelho te diga alguma coisa ou apareça subitamente ao seu lado, ela é uma estrela norte-americana;
11 – Se o telefone tocar no meio da projeção, não atenda, pode ser alguém do filme pedindo para você diminuir o volume, ou olhar para tela para que veja você mesmo com cara de personagem assustado; Talvez seja só um amigo pedindo dinheiro emprestado; de qualquer forma não vale a pena atendê-lo: ele emprestaria para você?
11.1 – Se você recebeu o vídeo pelo correio é melhor nem ligar, pode surpreender-se com algo pavoroso, você;
12 – FIM DO FILME: repita 5 vezes para você mesmo: “Eu não estou louco”.
13 – Não esqueça de desligar a televisão, mas não tenha medo, se o filme for de Linch e não de Tobe Hooper, do Poltergeist.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

FILOSOFIA DO SOLUÇO



Uma pessoa que soluça nunca sabe se vem de dentro ou de fora. Tem mais motivos para pensar na angústia que um filósofo durante uma conversa com outro filósofo, pelo menos até o momento em que um deles tenha começado a soluçar. Enquanto o “soluçante” ou “soluçador” tenta todas as simpatias, comer chocolate, tomar vinte goles de água (o que poderia fazer passar até uma terrível dor de cabeça – é claro, ela desceria para a barriga! Diria até o mais ignorante), trancar a respiração, enquanto faz tudo isso, nem sabe que momento grandioso é esse que experimenta, mais curioso que o espirro e a perna amortecida. Sempre achei mais interessante a hipótese do susto. Mais interessante e mais absurda também (as coisas absurdas geralmente me soam muito interessantes), já que o susto é quase impossível quando premeditado, salvo o grito inesperado de um experimente algoz. Mas o que se esconde por traz do soluço? Uma filosofia, quem diria. Penso: o que leva alguém a filosofar sobre o susto? Só alguém que é apaixonado por cacos, cacoetes e outros mafuás. Poderiam deduzir: é apaixonado por soluços. Ledo engano. Quem poderia gostar? O soluço é uma das coisas mais inúteis que conheço. No entanto, talvez por sê-lo, seja tão curioso. Quem perderia tempo pensando nele? Talvez Manoel de Barros já tenha poemado sobre o soluço, ou coisa parecida, o que cobriria de encantos até o soluço mais monstruoso ou aquele mais demorado, que vai e volta várias vezes ao longo do dia. Mas não percamos tempo, vamos direto ao soluço. Conheci um vizinho que gravava o próprio soluço e ficava ouvindo várias vezes depois . Outro, não menos doido, contava os segundos entre um e outro, como a criança que conta o intervalo entre o raio e o trovão para tentar perceber o final da chuva. O primeiro vizinho, aquele que gravava os soluços, começou a contá-los, fazendo uma tabela, e catalogá-los quanto à intensidade e duração. Talvez sejam uns malucos. Não sei como não se envergonharam do fato ainda. Pensando bem, devo admirá-los, pois vejo tanta insensatez naquelas atividades quanto num texto como esse que escrevo. Ainda nem sei por que resolvi escrever isso. Talvez para esperar que o meu soluço passe.

sábado, 15 de novembro de 2008

meu porquinho da índia

O primeiro poema que eu fiz eu copiei de uma antologia da Cecília Meireles. Era para impressionar uma namorada. Não é bem isso, ela ainda não era minha namorada, mas eu imaginava que, ao escrevê-lo e mostrá-lo, teria chance maior de ganhar um beijo. E se ela gostasse do beijo, talvez me desse outro, e se ela gostasse do beijo e do poema, talvez me namorasse. Sim, foi o primeiro poema que escrevi. Eu copiei de uma antologia da Cecília Meireles. Nunca tinha contado isso para ninguém, talvez por medo de desmistificar o acontecimento, transformando minha estreia num imperdoável plágio. A Cecília não me perdoaria nunca. Talvez o fato de já me imaginar poeta naquele tempo, mesmo sem nunca ter escrito um poema, com exceção daquele que copiei de uma antologia de Cecília Meireles, me ajudou a buscar a poesia. Talvez para continuar mantendo a ideia de que de aquilo que eu fiz, a cópia, era meu primeiro poema. Talvez, ao ler essas linhas, ela agora lembre o primeiro poema que escrevi para ela e para mim. Talvez ria. Talvez lembre quem era, quem éramos. Não são poucas as vezes que pensei nesse poema, não menos declamei, aos berros quando estava atônito, em silêncio, quando queria lembrar de meu primeiro poema, de minha primeira namorada, e em afago quando queria lembrar quem fui.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

O carrasco e a vítima
baudelaireando no séc. XXI

Somos todos Carrascos na cena de Fou Tchou Li E também a vítima. A mirar o linchamento Daquele ser que teatraliza Sua própria morte Sem, no entanto, Urrar de angústia Gritar de dor. Somos todos Carrascos na cena de Fou Tchou Li E o próprio ser que se abre aos cortes Como um cravo desabrocha Fou Tchou Li inventou um outro Bunraku Boneco cheio de sangre Sem nada de lágrima Fou Tchou Li lambe suas próprias chagas E tomado pelo ópio De leve sorri Ao ser esquartejado Fou Tchou Li está em todos os lados O personagem desse kabuki Festeja o suplício dos “cem pedaços”
c.moreira
O ELEFANTE



Eis-me levado em dorso elefantino... Feito o poeta-cometa-semântico Vielimir Khlébnikov Eis-me aqui senhor Eis-me aqui fanfarrão Espero que a tua tromba Não seja senão a de um elefantinho . Tem que ser dos grandes tem que ser dos bons
ora direis elefantinho Ora direis elefantão. Enquanto a virgem se deleita Numa augusta e harolda senda branca e barroca De um agora outro elefante, o traduzido Só me resta subir no seu dorso e seguir adiante

c.moreira
ISTO AQUI NÃO É UM GATO
SEGUINDO OS PASSOS DE MAGRITTE


descrever o olho-objeto cheio de nuances querendo cheio de minúcias extraindo o azul compacto querendo do objeto apenas o ultra super trajeto fazer como se fosse de verdade a ilusão do substrato o azul que mora no olho apenas se diz como se quisesse dar graça no poema a mais presente verdade verdadeira e para que tudo se resumisse e se deixasse em realidade como se as coisas descritas sempre pudessem sempre ser elas de verdade inteiras

c.moreira
WALY AQUI ALI

EU. eu sigo "dos" passos - não "os" passos - do piloto-caixeiro-pirata da Stultífera Navis como quem quer tudo difícil, nada fácil como quem tem "olho míssil, não fóssil"eu apenas sigo, pressinto sinto e me examino na margem de um fonema dissonante na espreita de um tiro sem destino A BALA que me segue pensa que não balança pensa que um dia chega, mas nunca chega, apenas dança É que PRESSINTO olhar para o lado desviar o meu rosto assim meu contínuo ritual, palavra que apago à borracha, DESVIOÂNGULO AMBULANTE assim talvez não me dê nenhum troço, assim talvez eu adie meu súbito final

c.moreira

(foto: parangolé: h. oiticica)
CORPO ANTIGAMENTE



Enquanto minha cabeça pensa Meu corpo pesa. Minha cabeça organiza meu tempo Mas meu corpo nunca espera. Meu corpo tem vida própria E pensa mais nele do que nos outros. No entanto, já sou um outro e mais outro Pensa o meu lado de fora No meu lado de dentro. Sou um mais um igual a um. Minha matemática é morte épica. Enquanto isso, tento comandar Meus anti-parcos instintos, meus lábios famintos, meus desejos fesceninos, Uma coisa estranha que eu mesmo nunca inventei Mas sempre existiu no próprio pensamento Nas ondas e ondas de um bico seio No meio fabuloso de seus pêlos negros Que num simples segundo Desconstroem toda a minha Grade conceitual Essas glândulas-constelações não são astronômicas mas sempre mudam meu astral.

sábado, 13 de setembro de 2008

POEMA PARA CALAR A BOCA

"QUEM ME DERA SE DEUS PERMITISSE
E A TAREFA NÃO SERIA POUCA
DESVENDAR TODOS OS MISTÉRIOS
ESCONDIDOS NAS ESTRELAS
DO CÉU DE SUA BOCA"
.
C. MOREIRA

quarta-feira, 3 de setembro de 2008



LEMINSKIANDO

QUEM DE TI NÃO PRECISA,
PRECISA PROEZA,
A PACIÊNCIA ALQUÍMICA
DE TRANSFORMAR FERRO EM OURO
ENQUANTO A BRASA LENTA
ESQUENTA

A PACIÊNCIA DE FAZER
ALGO ALÉM DE ALGO
O MUNDO VELOZ
EM FILME DE CÂMERA LENTA

POETA SEM SETA E SENTIDO
ALVO INVENTA

c.moreira


domingo, 31 de agosto de 2008

DENTADURA

Petit poème en prose


PARTE 1
Quando menino descobri no meio de escombros papéis velhos escondidos numa gaveta há muito fechada uma dentadura de minha vó não me recordo se era a parte superior ou inferior só sei que o objeto me impressionou tal como se eu tivesse desenterrado a minha própria avó dos fundos do quintal talvez hoje a impressão não fosse a mesma seria apenas uma dentadura mas nos meus idos de menino em que a vida não parecia mais que um grande pote de sorvete ou um baú cheio de surpresas sempre agradáveis aquele objeto era como um suplemento vivo que meu avô guardava talvez por esquecimento talvez por consideração ou mesmo até fosse um costume mórbido de mantê-la por perto mas acredito que não só sei que nunca tive coragem de perguntar creio que o encontro com a dentadura guardada de minha avó foi meu primeiro contato com a morte


PARTE 2
Outra vez encontrei os seus óculos a impressão não foi a mesma poderia também encontrar outras coisas e não seria a mesma coisa os dentes eram para mim uma espécie de fantasmagoria capaz de suscitar todos os assombros possíveis o objeto parecia me olhar como que pedindo para ser tocado atitude que não tive coragem de executar alguns dias depois voltei ao seu encontro e para minha surpresa não mais o encontrei já sabia naquele tempo que objetos concretos não apareciam e desapareciam por acaso o que ainda não sabia era que objetos abstratos as lembranças também não desapareceriam talvez a segunda mulher de meu avô tenha também se deparado com a dentadura e julgando desnecessário e até ofensivo conservá-la tenha tido a coragem de consumir com ela talvez a tenha enterrado ou até jogado no lixo o que seria lamentável pois uma dentadura não é só um bocado de dentes da boca talvez meu próprio avô tenha repensado o fato e dado um destino diferente ao objeto em respeito a minha vó e a segunda mulher talvez a dentadura nunca tivesse estado lá mas acredito que não – sei que não imaginei – eu poderia imaginar mil coisas como os motivos que levaram o objeto até ali e os motivos que o fizeram desaparecer

PARTE 3
Alguns anos depois encontrei no meio de escombros uma propaganda antiga de um dentifrício e imediatamente lembrei dos dentes amarelados que compunham a dentadura – talvez a lembrança do objeto tenha sido uma desculpa para lembrar de minha avó – minhas lembranças de seu rosto de sua voz de seu sorriso eram vagas senão nulas – imagino que em algum dia de sua adolescência quando ainda nem pensava em usar dentadura tenha se deparado com um desses anúncios – aquele texto me dizia mais sobre ela do que qualquer poema nostálgico em que a saudade mais parece a flexa de Zenão – descobri com o tempo que a dentadura mais do que uma fantasmagoria da morte era para mim o contato mais próximo com alguém que não estava mais aqui

c. moreira

sábado, 30 de agosto de 2008

TALVEZ FALAR FOSSE TÃO POUCO
.


Petit poème en prose

Já tentei louco capturar as linhas do teu corpo num texto que só tinha motivos pra não se deixar gravar como o trajeto de um albatroz livre dos marinheiros da estalagem tal vôo só se reproduzia na pura potência de um voar além do olho que seguia sem sucesso o passeio quase tonto do albatroz rei dos mares é que no poema o pássaro era cativo assim como no texto teu corpo tecido não mais que linhas desprovidas de perfume e geografia poética tão seus
O ponto final não mais que um porto seguro incapaz de dar ao poeta navegante a calmaria de uma simples chegada
É que chegar seria assim como repartir em dois deixar em você o mar uma palavra sem gosto na beira da praia metáfora cansada essa do mar largar a metáfora seguir o enigma você não é o mar é o que nele suscita em mim encanto e pavor assim teu corpo me enigma pura palavra
As linhas de um mar e tudo o que nele se guarda não se deixam gravar só se entregam a custo de uma semântica que não mente uma sintaxe que não se mede por isso pavor e encanto

c. moreira

terça-feira, 26 de agosto de 2008

O CORPO DO POEMA É A LÍNGUA
A LÍNGUA, O POEMA DO CORPO
.


Eu prefiro as linhas tortas
Tua blusa entreaberta
As portas piscando

As pernas tremendo
O olho olhando
A pele lisa, logo sensata

feito a casca de um ovo, ou pernas de Niké de Samotrácia
Pela pele a geometria do corpo é uma matemática abstrata
A língua mexendo
Lânguida pétala
pousando no chão

Quem mandou não falar a língua
Não beijar a boca
Não falar a língua da boca
Não deixar que a língua
lenta tocasse a lisa pele
como dizer
do encanto o perfume

Que se esconde por trás
Da mínima pétala
a ausência
conformando com o silêncio

de uma abelha pairando sobre a flor
num filme de cinema mudo
na melancolia de um filme sem cor
o corpo do poema é a língua
a LÍNGUA, POEMA DO CORPO

c. moreira

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

NANÁ, PEDAÇO DE SONHO QUE CUSTÓDIO CRIOU
E ORLANDO CANTOU
.
“Quem pretende se aproximar
do próprio passado soterrado
deve agir como um homem
que escava”
Walter Benjamin
.


Condenado a escavar escombros
Escrever assombros
Desenterrar um baú repleto de ciscos
E um cinerário repleto de cinzas e sonhos

escondido no fundo na valise-memória
uma simples canção quase esquecida como quase todas aquelas canções

ouvindo um disco de 78 RPM
A agulha correndo e pulando
Feito um bobo na montanha
Day after Day
Engasgando na última frase de Naná
És sonho que se fez mulher
Orlando Silva engasgando
És dia dia em pleno amanhecer
Naná Naná
Igual a ti no mundo outra não há
Naná devia ser uma deusa mas não usava biquíni
Vem para meus braços vem sim Naná
Talvez fosse uma mulata da Lapa
Talvez nem isso talvez uma dama da noite que nem sabia ainda que era uma pobre flor gonocócica

Talvez nem tanto
Talvez Naná seja só uma canção de Custódio Mesquita
de 1940
gravada por Orlando Silva
Um escombro um cisco no olho um “tapa” na morena da Lapa
Ao som de um fox-blue tropical carioca e fagueiro
Talvez nem isso t
alvez nem tanto

toda canção se dissipa em ondas que se dirigem ao infinito que se propagam no espaço que sobrevivem no tempo que se dissipam no vento que se dirigem a um outro tempo que esse tempo não sabe

Sim, Naná, quem não a quer?
Naná és sonho, és paixão,
És lembrança que se fez mulher...
No entanto, que poderá restar de uma mulher
Que sempre será só resto de um outro tempo numa só canção?



c. moreira

11 aforismos musicais
Para ouvir ao som de Jacob do Bandolim
.

1 -Quem nasceu Assanhado feito uma música do Jacob do Bandolim não precisa treinar mil vezes o mesmo compasso.
2 - Toda beleza morena mesmo sem ser santa é uma Santa Morena.
3 - Mesmo que os porcos ganhem do céu todas as Pérolas serão apenas porcos com Pérolas.
4 - Receita de Samba não se copia no papel nem se aprende com a avó.
5 - Mesmo de todas serei Sempre Teu.
6 - O Vôo da Mosca inocente ensaia no ar sincopado alarido, como que Subindo ao Céu, perdoada pelo padre depois de uma longa missa de domingo.
7 - Naquele Tempo tudo era diferente, só não sei de quê.
8 - Assim Mesmo sem começo termino a frase Assim Mesmo.
9 - Contradição: André de Sapato Novo sempre usou o mesmo sapato.
10 - Meu Benzinho, música boa nunca cabe num aforismo.
11 - Triste destino /Para sempre cativo/Das palavras


Caio Ricardo Bona Moreira

sábado, 16 de agosto de 2008

UMA CANÇÃO PARA CAYMMI
.

Poderia fazer um tableau e nele guardar teus cabelos e tua voz.
Poderia pisar na areia, imaginar uma praia, todas as praias que guardam poemas, palmeiras, um passeio em Salvador.
Mas tudo o que dissesse talvez fosse apenas um eco, uma onda, memória de uma canção. Lembro de ver no filme de Leon Hirzman e Paulo César Saraceni tua conversa com Caetano, em Roma. Lembrava que a Bahia era a Roma negra – nada mais justo.

Nesse encontro, respondia carinhosamente a todas as perguntas: sim, foi também um dos mestres de Carmem; falava também de outras coisas, mas essas já são minhas lembranças e não tenho certeza se as vi no vídeo ou se imaginei. Talvez tua voz me encante por lembrar de longe a voz de meu avô quando cantava – ou era a voz de meu avô que me fazia lembrar a tua?

Poderia escrever um belo tableau. Mas não seria a mesma coisa. Prefiro imaginar uma canção. Um pescador, depois de encontrar Iemanjá, não mais precisará de um tableau. Será possível na escrita a expressão de um sentimento? Na tua canção, sim... na minha, não sei. Nos últimos dois anos, no momento em que fazia a barba – lembro-me bem, pois ainda a faço – colocava para tocar aquele disco de um show que fizeste com Vinícius e com o Quarteto em Cy, na década de 60, no Zum Zum.

Comprei o disco no Rio e, desde então, ouço-o compulsivamente. Foi coisa de Orixá não tê-lo perdido, como perdi o disco em que Caetano, na Itália, homenageia Fellini. No show do Zum Zum, você pediu para Vinícius declamar o Dia da Criação. Vinícius sorri e corresponde ao pedido do amigo. O poeta lembra o dia de uma bela pescaria em Salvador... uma boa pescaria é a celebração de uma amizade. Há um disco seu que não está mais comigo. Aquele em que, com a família, visita Tom. Linda interpretação em Das Rosas, acompanhado de um contra-baixo e do afinado coro dos filhos. Acho que um lance de dados pode mesmo abolir o acaso. Mallarmé poderia estar errado.

Mas o disco está em boas mãos – com um amigo que também ama tua voz. Faz tanto tempo que já não me lembro bem, mas parece que acompanhava Vadinho, em Noite Cheia de Estrelas, naquela serenata para a Dona Flor. Posso estar errado. Mas não importa se essa informação seja fruto da minha imaginação: estás na serenata imaginária...e eu, na casa da frente, espiando.


Caio Ricardo Bona Moreira

segunda-feira, 28 de julho de 2008

LUZ DEL FUEGO ASSIM COMO A POESIA NÃO TEM HORA PRA CHEGAR


“Por que se congregam as recordações da história nos resíduos sobreviventes? Por que as pesquisas do homem procuram sempre reconstruir o passado, reconstruir a origem, saber de onde saímos, para calcular para onde vamos...e os resíduos sobreviventes são os únicos pontos de apoio capazes de agüentar com suficiente segurança a animosidade pesquisadora do homem” Flávio de Carvalho, em Ossos do Mundo

Uma luz de fogo nunca precisou de mais de um copo de mais de um corpo uma cantilena pra chegar a uma luz del fuego sem papas na língua um caco da história por mais que os pêlos por entre as pernas denunciem o tempo sem apagar e aparar a luz do fogo e do corpo de uma natureza antes da natureza a luz reza até que a réstia da câmera flagre e o cinema acenda outro fogo de uma luz não menos fogo Lucélia poderia ser todos os Santos ser um fogo mas a sombra do telhado não deixa que a luz se expanda em plena praia e um bando de naturebas fazendo do corpo um suporte uma bandeira um partido de toda orgia sempre fica no corpo o resto de uma réstia uma cicatriz um corpo ferido se fosse tempos anos antes décadas atrás Noel ficaria gago só de olhar a luz del fuego fazendo estrago moribundo e vagabundeando pleitearia uma vaga de garçom só pra servir as pernas pegando fogo fazendo um samba em plena ilha no Espírito Santo a arte é uma cobra boba que faz travessuras em torno do pescoço de uma vedete - o poeta é uma vedete – e o leitor uma criança que com lixo constrói o seu templo brinquedo – um caco da história - uma Lucélia atrás da tela nos traz um tal de fogo mas na foto a luz de luz del fuego não acende a Lucélia mas pensando bem quem sabe os pêlos e Santos da Lucélia acendam o fogo da luz del fuego do Espírito quase Santo

Caio Ricardo Bona Moreira

segunda-feira, 21 de julho de 2008

ENFIM, UM FILME SEM FIM!
MESMO TUDO ESTANDO DITO; OU EMPALHANDO CADÁVERES

Enfim, um filme sem fim
Mesmo tudo estando dito
Talvez um final assim
seja a sua melhor forma de ser infinito
PARTE I

Será possível falar de um filme sem extrair a poesia que sustenta o seu corpo, que comanda os seus gestos? Será possível nele entrar e sair sem roubar-lhe a sensibilidade que o faz ser o que é? Ao falar sobre o filme serei um suicida, um soldado, um seminarista ou um taxidermista? Como roubar-lhe a poesia e ao mesmo tempo deixá-lo intocado, imaculado, constelado aos olhos de quem o vê por meio dos meus olhos?
Será possível preenchê-lo com a mesma força que antes lhe dava a vida que meus olhos roubaram? Talvez o leitor esteja pensando que exponho segredos desnecessários, palavras demais. Mas é preciso começar por aqui. A cada texto escrito me pergunto se seria preciso repetir essas palavras; elas poderiam servir para todos. Mas é impossível falar sobre um filme que nos toca sem tocar em questões como a impossibilidade de reconstituí-lo no comentário, lugar onde o texto parece muitas vezes dormir à espera de um sapo que beije a boca do príncipe na expectativa de que tal ato romântico possa enfim despertá-lo da tumba. Sim, essas palavras nos levam ao cinema. Bom filme é aquele que faz com que o espectador nunca saia ileso da tela.
Meu desconhecimento sobre o cinema iraniano tem boas e más conseqüências. As más não convêm assinalar, basta dizer que o desconhecimento é uma forma de melancolia. Concentro-me nas boas conseqüências. Quem nunca comeu uma cereja, quando come experimenta sensação semelhante ao menino que descobre pela primeira vez o prazer e o sabor do sexo. Por exemplo: nasci em um país que já conhecia João Gilberto. Não consigo lembrar qual foi a primeira vez que ouvi “Chega de Saudade”. Convivi desde cedo com a idéia de que o mundo sempre foi assim. Fico imaginando as pessoas que ligaram o rádio em 1959 e escutaram pela primeira vez o hino da bossa nova. Acostumados com Vicente Celestino, Orlando Silva e Carlos Galhardo, a maioria dos ouvintes provavelmente tiveram experiência semelhante à mordida da primeira cereja. E a cereja nunca foi um fruto proibido como a maçã.
O cinema iraniano tem sido para mim uma feliz descoberta. Uma descoberta que se repete com diferença - redescoberta. Depois de assistir ao brilhante “Salve o Cinema”, de Mohsen Makhmalbaf, fiquei curioso para ver os filmes de Abbas Kiarostami, um cineasta que possui a qualidade de reinventar o cinema a cada filme que produz.
“Gosto de Cereja” (Ta`m e Ghilass – Taste of Cherry), de 1997, é maravilhoso não apenas do ponto de vista narrativo, mas pela força intrínseca das imagens. O filme toca em dois tabus do mundo islâmico: o homossexualismo e o suicídio. O primeiro tabu é apenas sugerido e está presente implicitamente na primeira parte do filme, quando ainda não sabemos do que trata. Sr. Badii (Homayon Ershadi) nos aparece como uma espécie de “gay desiludido” à procura de um homem nos arredores de uma cidade do Irã. Ele passeia de carro e tenta convencer um jovem soldado a acompanhá-lo em um passeio a fim de possa contar com sua ajuda em um importante trabalho – trabalho que aqui ainda é um mistério. Depois de saber de que se trata o jovem foge como quem se deparasse com uma serpente prestes a convencer Eva a morder uma maçã-cereja. Mas Kiarostami frustra expectativas pré-moldadas. O pecado é outro. Sr. Badii pede que o soldado o ajude a cometer suicídio. Ao soldado falta coragem e sobra humanidade. As outras duas pessoas que Sr. Badii tenta convencer são um seminarista, que fundamentado no Alcorão não aceita desumana proposta, e um velho taxidermista que promete ajudá-lo apesar de não concordar com a atitude do motorista. Basta dizer que o Sr. Bagheri (Abdolrahman Bagheri) é figura central no filme. Não convém falar mais para não estragar a curiosidade do leitor que talvez sinta o desejo de assistir ao filme.

PARTE II

Taxidermista é aquele que concentra em si duas atividades no mínimo corajosas: presenteia o corpo morto com uma espécie de sobrevida, ao conservar-lhe o aspecto de ser ainda vivente. Expor o corpo morto dessa maneira a outros olhos é fazer da fantasmagoria uma espécie de alegoria da vida. Ao mesmo tempo que presenteia o cadáver com a fantasia ululante de ainda existir, permite àquele que mira o morto uma experiência impactante de vida, como se a morte pudesse nos dizer: “você ainda está aí”. Esse contato com a faccies hipocratica da morte talvez seja um dos grandes presentes que alguém possa nos oferecer. Curiosamente, no filme, o contato do Sr. Badii com o taxidermista é a possibilidade de contato com a vida. Cabe descobrir de que vida se trata, se é a sobrevida de um cadáver, ou se é uma vida reconstituída pelo hábil “empalhador”. Arrisco dizer que o próprio Sr. Bagheri também ganha um presente. Acostumado a empalhar cadáveres, o taxidermista tem agora em suas mãos a possibilidade de conservar a vida. Isso o velho faz com palavras. A história que conta a Sr. Badii dá nome ao filme e justifica uma das cenas mais bonitas, o passeio de ambos. Se a história funcionar, é possível que o homem não cometa o suicídio, se não funcionar, saberemos o resultado. Eis a força de uma história. A capacidade de um taxidermista transformar a vida de um homem que nem conhecemos faz com que todas as cenas posteriores sejam tocadas pela conversa anterior.
Encomendar a própria morte a outrem não é a novidade do filme. Basta lembrar do filme “A Igualdade é Branca”, da trilogia das cores, de Krzysztof Kieslowski. A novidade não está na história, está na capacidade de Kiarostami operar com a força intrínseca das imagens, com a capacidade de frustrar expectativas pré-moldadas e fazer de seus filmes um instrumento de reflexão sobre a realidade e sobre o próprio cinema, é o que penso sobre o final (sem fim, por isso infinito) de “Gosto de Cereja”, uma cena inusitada. Contar histórias é uma maneira eficaz de lutar contra a morte.

PARTE III

Um final feliz ou triste talvez seja ainda muito pouco. Sr. Badii deita na cova, conforme o combinado. Espera o taxidermista. A decisão ainda não está tomada. Se levantar o braço, o velho o salvará da morte; se permanecer quieto, o velho o enterrará. Amanhece. Kiarostami corta. O que vemos agora são as câmeras, o cineasta, a equipe de filmagem que se prepara para guardar o equipamento. O filme está chegando ao fim – sem final. O ator se levanta da tumba. Seria esse um fim que versa sobre a própria impossibilidade de um fim? Em que momento um determinado filme começa ou termina? Será possível um final feliz ou triste quando o filme se debruça sobre a vida e a morte? Kiarostami consegue tematizar sobre o próprio cinema neste final curioso? Histórias que nos trazem mais perguntas que respostas parecem concretizar melhor a própria idéia de um infinito que talvez começa quando o diretor grita: “Corta!”.
Caio Ricardo Bona Moreira - publicado no jornal O Comércio - agosto de 2008

sábado, 31 de maio de 2008

PREFIRO FICAR COM A PALEONTÓLOGA COM CARA DE DINOSSAURO: sobre as críticas


Uma leitura sempre corre o risco de não ser aquilo que pensa que é. Pululam nas prateleiras do comentário todos os tipos de crítica possíveis. Algumas surpreendem por se revelarem o oposto do que pareciam ser. Estariam fadadas a acabar os seus dias escondidas, ganhando o pó da prateleira, não fosse o alegre retorno ao serem (re)descobertas por um olhar atento que não se furta de mergulhar as mãos e os olhos em escombros e outros mafuás. São tão interessantes quanto o próprio objeto que propõem analisar. Fazem lembrar o exótico mineralogista de botas grandes e olhos tão ou mais verdes que a esmeralda colhida no quintal; fazem lembrar o zoólogo que, quanto mais observa o lagarto, mais se parece com ele, a ponto de dizer: “Onde está minha lagarta?”.

Mas nem sempre acontece isso. É comum encontrarmos mineralogistas que julgam serem seus olhos mais bonitos do que a esmeralda colhida no jardim. É mais comum ainda encontrarmos o zoólogo que, quanto mais observa o lagarto, menos quer se parecer com ele, e mais quer domesticá-lo a fim de que possa pregá-lo na cruz do museu – como faz um colecionador de insetos – só para dizer que são bonitinhos e feios.

Prefiro ficar com a paleontóloga com cara de dinossauro. Ela abre o livro e sabe que não há segredos a decifrar. Sabe que pode julgá-lo, mas com a prerrogativa de que será julgada também. Prefere, então, em vez de optar por um ou outro adjetivo unilateral (bom – ruim), fazer da sua expedição uma viagem enlouquecedora, que apaga os limites entre o botânico e a orquídea selvagem. Não seria tão simples como resumir o código das abelhas ou sintetizar a arqui-textura da colméia. Seria mais complexo que resenhar positivamente a tarântula só para aumentar o ego do Deus que a criou. A paleontóloga com cara de dinossauro pode, é claro, gostar ou não gostar da natureza. Mas sabe principalmente que é graças a ela que também sobrevive. Isso não quer dizer que o dinossauro seja mais importante que a paleontóloga. Seria muita pretensão. A paleontóloga não existe só para classificar fósseis. Existe para extraí-los do horizonte do passado, devolver-lhes uma força capaz de transformá-los. Tarefa mui dignificante, como plantar uma árvore. Muitos já plantaram, Benjamin que o diga.

Caio Ricardo Bona Moreira

O FILME QUE VIROU POEMA


Poderia falar mil coisas sobre “O homem que virou suco” (1981). Dizer que é um filme político – como se isso fosse uma particularidade capaz de lhe conferir uma identidade –; um filme sobre a saga de um nordestino na São Paulo do final dos anos 70; um filme sobre a grande metrópole capaz de transformar a vida de um homem; um filme sobre o fracasso de um pobre paraibano. Mas não. Prefiro dizer que é um filme poético. Não esqueçamos que o paraibano protagonizado por José Dumont é um poeta. O fato de fazer poesia transforma Deraldo em um sujeito estranho numa cidade que coloca o “capital” em primeiro lugar. Mas é graças à poesia que o personagem consegue entrar e sair da mesma lógica que o faz um “marginal”.

Por que o poeta não consegue sobreviver na cidade grande? É que cada vez mais sua maneira de ver o mundo não condiz com a anti-lírica dos arranha-céus. Não que não haja espaço para a poesia na cidade (Não é à toa que o concretismo traduziu a urbanidade paulista com a força imagética do concreto armado e do lirismo des-armado). Espaço há, mas estão interditados.

Por que o poeta consegue sobreviver na cidade? É que o poeta paraibano faz da cidade um lugar fora do comum. Não que consiga criar uma saída. Ele consegue encontrar outras entradas. Circula por todos os lugares: do meretrício à luz da lua ao pátio da praça e da construção civil. Neles, vai deixando os “rastros”, as pétalas de fogo, as margens de uma linguagem além linguagem. A palavra do paraibano não mora em lugar nenhum, por isso em todos os lugares. Deraldo não cabe em um mundo sem literatura. O poeta sobrevive porque inverte o jogo. Sobrevive porque veste o "gibão" de um cangaceiro que encara de frente um bando de transeuntes.
Poderíamos também inverter o jogo e abolir o lamento. O nordestino não aceita o jogo selvagem das relações de trabalho da cidade da garoa (lembrar da cena em que chuta pau da barraca na reunião dos candidatos a um emprego no metrô, ou daquela em que se insubordina contra a patroa jogando um vaso precioso na piscina, o mesmo vaso que fora presenteado por um importante coronel do Nordeste).

Deraldo José da Silva (José Dumont), logo no início do filme, encontra uma vizinha, que o questiona: “Você pensa que a vida é só cantar, seu Deraldo? A vida é dura. É garrar no batente”. Ele responde: “Ôh, dona Mariazinha, na sua concepção isso aqui (poesia) não é trabalho, não?” “Isso é diversão, homem! Por que não faz igual o Zé, meu marido, que garra no batente desde as seis horas da manhã e só volta à noite.” O poeta, sem pensar, e vendo a condição miserável da vizinha, dá a Mariazinha um tapa de luva: “Descobri agora porque é que vocês vivem tão bem!”. A cena basta. O poeta esperto percebera que o valor pregado pela comadre não trazia felicidade nem conquistas; o discurso implícito na fala da vizinha, a de que o trabalho braçal dignifica o homem, só poderia soar como uma estranha falácia aos ouvidos do poeta que descobriu cedo que numa cidade como aquela o "trabalho braçal" só possibilitaria ao homem não morrer de fome.

Ao longo do filme, Deraldo é confundido com Severino, o operário que assassinara um rico industrial. As fotos de Severino estampadas no jornal levam Deraldo a sofrer uma série de preconceitos que se somam ao fato de ser poeta e nordestino. Poderia ser pior?
Deraldo, colocando em prática o que Nietzsche chamaria de Amor Fati, transforma a desgraça em graça, talvez por amor ao destino. Procura Severino e escreve o poema contando toda a história: “O homem que virou suco”. O filme virou poema.

"O homem que virou suco", de 1980, foi dirigido por João Batista de Andrade. Ganhou, entre outros, o prêmio de melhor filme, no Festival Internacional de Moscou, em 1981.

Caio Ricardo Bona Moreira

domingo, 11 de maio de 2008

JOÃO GILBERTO: UM ROTEIRO QUE NUNCA SERÁ FILMADO... PORQUE O FILME JÁ EXISTE




Talvez fosse possível escrever um roteiro poético sobre uma cena de cinema. Lembro-me de algumas cenas que são antológicas, como a dança ingênua de Fred Astaire e Cyd Charisse, em A Roda da Fortuna, ou mesmo o nascimento de Macunaíma, protagonizado pelo grande Grande Otelo, na belíssima adaptação (ou melhor trans-criação) de Joaquim Pedro de Andrade. Outras são menos conhecidas, mas não menos interessantes: o momento em que um anjo ganha cor, quando resolve se tornar um humano por causa de uma paixão pela bailarina do circo, em Asas do Desejo de Wim Wenders. A serenata que Vadinho faz para Dona Flor, cantando Noite Cheia de Estrelas, de Vicente Celestino: “Noite Alta, céu risonho...”.
Há uma linda e comovente interpretação de João Gilberto, cantando “Estate”, na Itália. Geralmente um roteiro deve ser escrito antes da filmagem. Neste caso, tomei a liberdade de inventar um depois de assistir ao filme “Bahia de todos os sambas”, de Leon Hirzman e Paulo César Saraceni, gravado em Roma, em 1983. O filme registra um dos maiores shows de MPB que já aconteceu na Europa. Eu, com apenas dois anos na época, nem sonhava com aquilo: “O que é que a baiana tem?”. E o show não era apenas musical. A Bahia baixou em Roma – com seus atabaques e pais-de-santo, suas rezas, acarajés, danças e candomblés. Um encontro para gringo nenhum botar defeito. O encontro foi organizado por Gianni Amico, um italiano que juntou figuras como Caetano Veloso, Dorival Caymmi, Gal Costa, Moraes Moreira, Naná Vasconcelos e o grande João. O roteiro poético que segue não tem pretensão alguma de aproximar-se do formato oficial – até porque nunca será filmado, como o roteiro esquecido de Mário Peixoto, “Outono – jardim petrificado”. Por isso poético. Instruções: Para ser lido ao som de “Estate”.

CENA 1 (Plano de conjunto)
Noite. Um palco, pouca luz, um banquinho, um violão e João Gilberto. O suficiente. Terno azul-cinza, paletó aberto. João olha para o violão. Atrás dele, uma orquestra. Começa.
“Estate sei calda come i baci che ho perduto
sei piena di un amore che è passato
che il cuore mio vorrebbe cancellare”

CENA 2 (corte para Plano médio)

João balança a cabeça. Toda a história da Bossa Nova se resume nesse breve movimento de João, como que hesitando entre uma voz e um olhar, ou mesmo expressando a letra por meio do gesto. Seria o lamento de um brasileiro ou um italiano? João frisa a testa, talvez para alcançar a precisão. Não, seria a perfeição:
“Estate il sole che ogni giorno ci scaldava
che splendidi tramonti dipingeva
adesso brucia solo con furore”

João olha para o céu. Não, olha para cima. Não, olha para cima, mas para lugar nenhum. Um lugar, sim. Só ele pode saber. Torna a olhar para o violão. Quase fecha os olhos. J.Joyce, em Ulysses,diria: “Fecha os olhos e vê”:

“Tornerà un altro inverno
cadranno mille petali di rose
la neve coprirà tutte le cose
e forse un po' di pace tornerà”

Os pitagóricos acreditavam (e acreditam) que o segredo do universo estaria explicado na matemática. A precisão dos números revelaria a ordem de todas as coisas. A música, por incrível que pareça, está mais próxima da matemática do que se pode supor. Se a música pode ser registrada numa partitura é porque sua matemática de tempos e de tons a permite. João volta a olhar para o céu. É, agora é para o céu. Talvez sua partitura esteja registrada na ordem das estrelas.:
“Estate che hai dato il tuo profumo ad ogni fiore
l'estate che ha creato il nostro amore
per farmi poi morire di dolore”

CENA 3 (Zoom-in no rosto de João. Plano de detalhe)
A cena é comovente. Agora, o que se vê é uma seqüência de alguns minutos no rosto de João. Sua testa sua. Seu olhar é suave e contínuo, feito fio de água antes de explodir em rio. O pai da Bossa Nova olha para o violão como quem a ninar o primeiro filho. Como quem olha apaixonado a amada ainda sem saber se tem também o seu amor. Como quem abraça um triste amigo, feliz por sabê-lo um dos seus. Levemente, sorri. E esse sorriso é para o violão, como a agradecê-lo por não estar sozinho. Todo o mistério de João se revela nessa seqüência. E toda a potência de seu comedimento também. João repete a letra. No entanto, sabe que toda repetição traz em seu bojo a força de uma diferença. João nunca repete. Bossa-cancione sempre outra a mesma.
CENA 4 (Zoom-out do rosto de João. Volta para Plano médio)
A música termina. O menino levemente sorri. As luzes se apagam...

(Dedicado ao Mestre J. Gilberto)
Caio Ricardo Bona Moreira

sábado, 10 de maio de 2008

CANTA, CANDEIA


(É assim que o filme começa)
Enquanto o partideiro dá uma aula de samba, o sambista-bailarino ensaia a cadência, demonstrando passos variados e arrastando a faca no prato para marcar o compasso. Quem consegue fazer isso com um prato? -talvez João da Baiana. O partideiro não samba com os pés. Samba com a voz e com o coração. E comove. Não porque está numa cadeira de rodas. Um bom sambista nunca aceitaria a comoção fortuita de alguém que o veja simplesmente como um deficiente: “Pois tristeza feia o poeta não gosta”. A eficiência no samba não se faz só com as pernas. Aos lamentos o poeta responde com um “surdo marcando choro de cuíca”. Comove pelo partido. É que um bom samba é forma de oração. Falo de um poeta. Falo de Candeia.

Um dos mais bonitos registros cinematográficos sobre o samba é o filme "Partido Alto", de Leon Hirszman, de 1982, filmado em 16mm e com 22 minutos de duração. O cineasta subiu o morro para registrar o encontro descontraído de sambistas e cabrochas numa roda bem tradicional. Paulinho da Viola é um dos jovens que aparece tocando cavaquinho e dividindo a cerveja com os irmãos do samba. Paulinho sabia onde estava. À medida que dá uma aula sobre o partido alto - ao lado de três lindas morenas que, com as mãos na cintura, “balançam as cadeiras” e abrem um sorriso como quem sabe que o céu não é longe dali -, Candeia apresenta pérolas como o “Testamento do Partideiro”. Só para citar alguns versos:

“Pra minha mulher deixo amor, sentimento, na paz do Senhor
E para os meus filhos deixo um bom exemplo, na paz do Senhor
Deixo como herança, força de vontade, na paz do Senhor
Quem semeia amor, deixa sempre saudade, na paz do Senhor
Pros meus amigos deixo meu pandeiro, na paz do Senhor
Honrei meus pais e amei meus irmãos, na paz do Senhor
Ao fariseu não deixarei dinheiro, na paz do Senhor
É, mas pros falsos amigos deixo o meu perdão, na paz do Senhor”

O partido alto poderia ser considerado uma das formas autênticas do samba. Nele, impera a improvisação, mas não uma improvisação qualquer. Os partideiros têm a liberdade de inventar os versos no momento em que estão cantando. Em torno de um refrão os participantes da roda alternam-se na cantoria, o que faz com que o gênero transforme-se provavelmente na manifestação mais “democrática” do samba, já que se rarefaz a própria noção de autoria.

O autor do partido alto é toda a roda. Cada membro festeja a sua participação na comunidade. Não há tempo para que esse poeta pense duas vezes antes de colocar as palavras na roda. A palavra, assim, vem do “burio do coração”, usando aqui uma expressão de Lindolf Bell. Diante de um livro, talvez se calasse com medo de que suas palavras ficassem trancafiadas, sem o direito de banharem-se ao sol. Talvez o outro poeta, aquele que pensa antes de sentir e cantar, ficasse calado no meio da roda. Talvez sambasse. Talvez sentisse. (É assim que o filme termina)

Caio Ricardo Bona Moreira

quarta-feira, 7 de maio de 2008

FOGO NO LIVRO


Numa das passagens decisivas do romance “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, o guardião da biblioteca, Jorge de Burgos, decide impor o silêncio por meio do fogo. A revolta é contra o exemplar “A Comédia”, de Aristóteles. Diz Jorge, antes de queimar a biblioteca secreta: “A comédia pode fazer com que as pessoas percam o temor a Deus e, portanto, faz desmoronar todo esse mundo.” A decisão é tomada com a coragem de quem queima uma biblioteca para calar um livro e salvar a humanidade. É em nome dessa salvação que grandes atrocidades ocorreram ao longo dos tempos. No livro, o que faz “desmoronar” não é necessariamente a “rosa” do preceptor de Alexandre, o Grande, mas o veneno (phármakon) inserido em suas pétalas - rosa púrpura de Alexandria, que, por sinal, soube muito bem do fogo que destruiu seu império intelectual.

Eco imagina que o livro perdido do filósofo havia sido escondido em um mosteiro, local que o semiólogo italiano usa como cenário para sua trama, temperada com o traço policial legado por Conan Doyle. Mas a questão não se resume apenas a uma ilustração dos fatos misteriosos que acontecem na trama. É em torno do livro que o fio da história se desenrola. Poderíamos dizer que em “O Nome da Rosa”, o livro sobrepõe-se em relação aos próprios personagens. Algo semelhante acontece no filme Fahrenheit 451, de François Truffaut (1966). Baseado no romance homônimo de Ray Bradbury, Fahrenheit 451 pode ser considerado como uma interessante metáfora do guardião da biblioteca, o cego que queima os livros em nome de uma verdade com V maiúsculo. Aliás, com o personagem Jorge, o cego, Eco rende homenagem ao escritor argentino Jorge Luis Borges, um dos seus escritores prediletos.

Se a história de Eco se passa na Idade Média, a de Bradbury e Truffaut acontece num futuro distante. Nessa sociedade, todos os livros são proibidos. Cabe a um poder soberano procurar os leitores-infratores e puni-los com a severidade de um regime extremamente autoritário. Sobra aos livros, de Sade a Sartre, um fogo que queima a 451 graus Fahrenheit. Mas nem calor tamanho consegue apagar o fogo, aliás símbolo também do conhecimento, alimentado por uma tradição que subsiste apesar da tropa. Ironia: quem acende o fogo é o bombeiro. Sintomática inversão de valores. Das fogueiras da Santa Inquisição à decisão da justiça brasileira, que proibiu a comercialização da biografia não autorizada do Rei Roberto, o fogo parece simbolizar não apenas a tentativa de apagar os rastros do próprio homem, mas também, ironicamente, uma transcendência que lhe confere um poder quase sobrenatural, já que o que se queima aqui é um instrumento que abalou estruturas de um poder determinado, por isso deve ser queimado - por isso não consegue ser queimado. O livro, considerado um veneno, tão maligno quando o de Jorge, o cego, faz lembrar da restrição severa imposta à palavra escrita, em Fedro, de Platão.
Abolir a literatura, em Fahrenheit, levaria a duas consequências imediatas: a primeira é positiva e se personifica no próprio filme. Por meio da abolição, exercitaríamos a mnemotécnica. É o que os personagens fazem nas cenas finais. A segunda consequência seria a perda de toda uma tradição que poderia ser registrada em livro. Entre Toth e Tamuz, o bombeiro e Truffaut.

No entanto, os dispositivos de poder, no filme, são complexos. A cobra morde o próprio rabo. Um dos bombeiros é contaminado pelo gosto da literatura. É obrigado a fugir, refugiando-se num lugar onde os livros não existem na sua materialidade física, todavia são memorizados, a fim de que a humanidade não esqueça que eles podem existir na mente de quem os guarda. Lá, as pessoas já não possuem seus nomes. Restaram os nomes dos livros. Cada pessoa deve memorizar a obra que recebeu como nome. Se você estivesse lá, qual seria seu nome?

Caio Ricardo Bona Moreira

sexta-feira, 2 de maio de 2008



Sophia Loren e Marcello Mastroianni formam um casal polivalente. Uma espécie assim de Glória Menezes e Tarcísio Meira da Calábria. Quem soube explorar (no bom sentido) muito bem a dupla foi Vittorio de Sica, um dos grandes cineastas italianos. A Itália, por sinal, sempre nos presenteou com grandes cineastas, a lista seria gigantesca, como o coração da nona.

“Ontem, Hoje e Amanhã” é um excelente filme, para quem gosta de apreciar a potencialidade de um artista. Falo isso porque a película é composta por três histórias protagonizadas pela mesma dupla: Sophia e Marcello – Sophia, lindíssima como sempre, ainda no tempo em que as musas do cinema não viviam com peitos de mentira, e olhem que os peitos de Sophia ainda podem fazer inveja a qualquer candidata à celebridade.

A dupla é a mesma, mas os personagens não. Na primeira história, Sophia vive Adelina, uma contrabandista de cigarros que descobre que não pode ser presa enquanto estiver grávida. Sucede que os filhos vão sendo concebidos às pencas - Adelina não quer ser presa. Até o momento em que o marido já não é mais o mesmo Sem forças, já não consegue acompanhar o avião amoroso que é a mulher. A solução seria entregar-se à polícia ou aos caprichos do cunhado?
No segundo filme, Sophia protagoniza uma burguesa que, enquanto viaja com seu amante, tenta seduzi-lo com sua riqueza. O amante-escritor tenta dissuadi-la de seu "baixo materialismo".
No terceiro filme, Sophia vive uma prostituta que "assiste" num bairro pobre de Roma. Entre a inocência e o erotismo, Mara é o centro das atenções do prédio. Seduz, mesmo sem querer, um jovem seminarista que desperta o ciúme de Rusconi (Mastroianni). Seduz quase sem querer, como o cinema de De Sica.

Filmado em 1963, “Ontem, hoje e Amanhã” parece marcar uma passagem de um cinema centrado no neo-realismo italiano para uma comédia de costumes que desembocaria nas locuras de Fellini na década seguinte. Vale lembrar que Fellini chegou a trabalhar com de Sica. Despertando uma certa nostalgia de uma boa macarronanda da nona, o filme contou com o roteiro de Eduardo De Filippo, Billa Billa, Cesare Zavattini, Isabella Quarantotti, Alberto Moravia. Já vele pela excelente fotografia e pela bela trilha sonora, assinada por Armando Trovajoli. Ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, mas isso não o faz melhor ou pior.

Caio Ricardo Bona Moreira

segunda-feira, 14 de abril de 2008

O CAMINHO DE SANTIAGO


“Joãozinho, faço parte de uma sociedade de seres malditos” A frase, fortemente marcada por um sotaque portenho, num primeiro momento, poderia chamar a atenção de qualquer documentarista, no entanto, foi desprezada por João Moreira Salles. No momento em que Santiago tentava apresentar algo extremamente íntimo e que considerava importante, João pediu que o mordomo falasse sobre a história do “embalsamador”. Imediatamente, Santiago abandona os “seres malditos” e fala sobre o que o cineasta lhe pede. A cena serve para ilustrar algumas considerações importantes sobre Santiago (2007), o mais recente documentário de João Moreira Salles.

Em 1992, o documentarista filmou imagens de Santiago, o antigo mordomo da família Salles. O objetivo parecia ser o de produzir um filme sobre uma figura romântica e curiosa, dificilmente passível de ser encontrada nos dias de hoje. Santiago era um argentino que apreciava a cultura clássica,os grandes personagens da história, motivos que o levaram a copiar mais de 30.000 páginas e pontuá-las com comentários sobre figuras importantes para ele – personagens muitas vezes esquecidos pela história. Numa das cenas, Santiago aparece tocando castanholas e em outra criando uma dança para as mãos, por sinal uma das passagens mais bonitas do filme. Durante os depoimentos do mordomo, fica explícita a condução agressiva do diretor, que censura passagens abordadas por Santiago, chegando a transformá-lo numa espécie de marionete. Nota-se o desconforto de um e de outro. E essa é uma das questões que gostaria de comentar rapidamente aqui. Foi justamente o que me fez gostar do filme.

João inicia o documentário falando sobre um filme que nunca aconteceu, o filme sobre Santiago. Depois de muitos anos, o documentarista, num momento de crise pessoal, decidiu retomar o projeto. Ao rever as imagens que havia produzido, descobriu que a maneira como conduzira os depoimentos afastara Santiago. João chegara a ser rude com o antigo mordomo e confessou, já no final do documentário, que a sua postura fez com que o mordomo não deixasse de ser o empregado da família e ele, o patrão. Nesse sentido, o documentário passa a ser não sobre Santiago, mas sobre o documentarista. Talvez pudéssemos substituir o título de “Santiago” por “João”. Louvável a atitude do diretor em expor tal questão. O filme acaba implicitamente por demonstrar a maturidade que o documentarista atingiu ao longo dos anos, e foi justamente essa maturidade que, a meu ver, fez com que o filme sobre o mordomo não pudesse mais ser produzido.

Santiago foi uma das figuras mais comoventes que já assisti em um filme. Talvez pudesse compará-lo, de longe, ao Alfredo, de Cinema Paradiso, dirigido por Giuseppe Tornatore. Nos dois casos, a dimensão trágica da vida é apresentada por dois senhores a dois meninos, Toto e João, ambos apaixonados por cinema. Em Santiago, a cena de Fred Astaire, extraída de A Roda da Fortuna, representa com a mesma profundidade que a cena final de Cinema Paradiso, aquela em que Toto assiste à seqüência dos beijos proibidos, reunidos pelo velho Alfredo. Um presente que só seria compreendido quando o menino crescesse. São duas cenas em que a memória perdida da infância parece vir à tona e sussurrar ao ouvido vozes que não estamos mais acostumados a ouvir.

Caio Ricardo Bona Moreira