sábado, 20 de abril de 2019

Para ler na noite profunda: apontamentos sobre a biografia de Wilson Bueno, escrita por Luiz Manfredini



Em 2019, Wilson Bueno completaria setenta anos. Como o escritor não morre mais, entabulo com ele essa conversa no escuro.

“Lembra, caro Bueno, que em maio de 2010, dois dias antes de ser brutalmente assassinado em tua casa, você enviou por e-mail para Mariana Camargo, da revista “Ideias”, tua última crônica, intitulada “Para Sempre”, que vinha com uma indicação: “Para ler na noite profunda”. Nela, você dançava tuas palavras, como de costume, mas talvez mais profético ao quem sabe pressentir naquela madrugada a queda mortal: “Pela primeira vez, em muitos anos, eu me disse que a felicidade podia ser mais que uma esperança – essa ilusão sempre renovada para não morrermos de nós mesmos – precocemente”. Neste mundo, você encerrava precoce e docemente tua carreira de literato com as últimas palavras que fechavam um ciclo de vida e arte, vividos intensamente: “Agora que estou morto e vigora em mim o seu cadáver simples, agora posso dizer – também pela primeira vez sem mentir – que não sonho. Você vive em mim e eu em você, eternamente”. Com quem você falava? Alguém ou algo? Com a própria poesia? Com a arte que moveu e com a qual foi movido desde tenra idade? E se abro essa conversa com as palavras que fecharam tua porta é para dizer que todo fim talvez seja só começo, como nas Memórias Póstumas que Machado imortalizara há mais de um século. Curvo-me à tua sepultura como quem se dobra a um texto. Dancemos um bolero ou um tango. Talvez você não saiba, mas teu amigo de infância Luiz Manfredini escreveu tua biografia, “A pulsão pela escrita” (Ipê Amarelo, 2018). O título dela é perfeito para ilustrar a história de alguém que certa vez confessou que não se concebia sem a escrita, que não concebia o mundo sem a expressão literária: “Literatura, para mim, é isso: uma pulsão vital, absoluta”. Se você pudesse lê-la, relembraria – talvez com uma boa dose de saudade - tua vida de sangue, suor e sêmen, tristezas rubras e alegrias marafas, canto nas manhãs de passarinho, vida nas madrugadas ácidas de boteco. Ali, em tua biografia, relembraria a infância no interior do Paraná, a mudança para Curitiba, e depois os anos loucos no Rio de Janeiro, em tempos de chumbo grosso. Reencontraria Madame Satã, que frequentou tua quitinete em Ipanema. Relembraria o Solar da Fossa, pensão e reduto carioca dos artistas nos anos 60 e 70. Passearia novamente com a amiga Clarice Lispector pela orla do Leme a fantasiar imensidões. Clarice te chamava de Quixote, lembra? Quem seria teu Sancho? Leria mais uma vez a correspondência que trocou avidamente com João Antonio em meio a Malaguetas, Perus e Bacanaço. Daria de cara com Carlos Drummond de Andrade mais uma vez no apartamento de tua amiga e com ele trocaria impressões sobre uma nova obra. Aliás, lembra que ele elogiou com candura teu livro de estreia, “Bolero´s Bar”? Saiba que Luiz Manfredini, na biografia, abordou temas privados de tua vida sem se esquivar da polêmica ao abordar os anos de alcoolismo e a tua sexualidade vivida com urgência. E isso em nada macula teu ser. Quem ler esse panorama, o da biografia, entenderá o motivo de você ser chamado de Rimbaud Brasileiro ou de personagem de Jean Genet. Como poucos da tua geração, você fez de tua vida a própria obra de arte. Por isso Curitiba foi pequena para você e outros grandes da cidade, curitibanos ou não, Leminski, Marcos Prado, Jamil Snege, Manoel Carlos Karam, Valêncio Xavier e tutti quanti. O crítico   Manuel da Costa Pinto, na seção “Ilustrada”, da Folha de São Paulo, escreveu sobre “Bolero´s Bar” que tanto você como Dalton Trevisan farejam perversões na calada da noite, mas enquanto o vampiro desvia para o escárnio e para a tara, você acaba “criando uma atmosfera tardo-simbolista, povoada por gigolôs, michês, travestis e outras personagens da fauna underground”. Essa atmosfera tardo-simbolista parece perviver em toda a tua obra. Ao ler a observação do crítico, começo a entender o motivo de tanto encanto exercido pelo teu texto em mim. É a paixão pela linguagem – dança erótica e delicada de sons e sentidos - que me liga a você, caro Bueno. É uma pena que tenha sofrido como tantas Marias – a mais famosa no Paraná também Bueno – com a violência masculina que ceifou tua vida. Mas falemos de projetos. Está aí a compor aqueles que não cumpriu aqui? Aquele misto de memória (existencial) e de reflexão sobre teu processo criativo que pretendia escrever: “uma espécie de laboratório do escritor”? Ou mesmo aquele livro de memórias ensandecidas sobre os ensandecidos anos 60 e 70 no Rio de Janeiro? E qual será a próxima viagem? Qual a próxima revista, depois da grande Nicolau, que fez um barulho enorme por aqui? Qual a próxima estação? Enfim, tanta coisa pra perguntar, pra lembrar, que me falta tempo e espaço. Contento-me em encerrar com as palavras de Chico Buarque, na famosa carta que enviou em música a um amigo: “Aqui na terra tão jogando futebol / tem muito samba, muito choro e rock´n´roll / uns dias chove, noutros dias bate sol, mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta”. No Brasil, a coisa tá feia, mas melhor não entrar em detalhes e torcer por dias melhores”. 

Com admiração e saudade, de teu fiel e vagau leitor, Caio Moreira

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), no dia 20 de abril de 2019. 

quarta-feira, 17 de abril de 2019

domingo, 7 de abril de 2019

Escombros de uma história silenciada: Para uma leitura de “Zilda, o assassinato da Santinha”, de Mariana Honesko Bortolini




O livro-reportagem “Zilda, o assassinato da Santinha”, da jornalista Mariana Honesko Bortolini, lançado há alguns dias, vem para preencher uma lacuna na memória das cidades de Porto União da Vitória. Corajosa ao abordar um sinistro e misterioso episódio da história local, a obra é um dos poucos registros dispostos a pensar o caso trágico que vitimou a jovem Zilda Santos, de apenas 13 anos, e que abalou a região do Vale do Iguaçu no final dos anos 40, e que segue indignando todos aqueles que tomam conhecimento do ocorrido.
Vítima de um crime extremamente cruel, Zilda Santos, dos Santos ou Izildinha - como alguns preferem chamá-la – hoje é a popular Santinha, venerada por muitos fiéis no Cemitério Municipal de União da Vitória. A ela são atribuídos milagres e graças. Seu túmulo, adornado sempre com flores, é local de novenas e ampla visitação.
O crime que ceifou a vida da jovem ficou conhecido como o “Crime da Rua Cruzeiro” ou “Crime do Iguaçu”, já que seu corpo foi encontrado boiando no rio alguns dias depois de ter desaparecido. O que aconteceu entre o sumiço de Zilda e o encontro de seu cadáver é ainda objeto de muitas especulações. A menina teria sofrido abuso sexual durante alguns dias por homens da “alta sociedade” de União da Vitória e Porto União, sendo mantida em cárcere privado num lupanar que funcionava no bairro Santa Rosa, fato que implicou em uma série de silenciamentos sobre o caso, a saber, o desaparecimento de documentos importantes, morte de supostos envolvidos, fuga de outros, bem como perseguição àqueles que tentaram denunciar o crime publicamente, contribuindo para solucioná-lo. É o caso da jornalista Lulu Augusto, que chegou a fundar o Jornal Caiçara com a finalidade de noticiar o andamento das investigações e contribuir para a elucidação do crime. Ela chegou a escrever uma novela radiofônica sobre o assassinato de Zilda levada ao ar pela Rádio União. Os acontecimentos que circundam a participação de Lulu no caso são dignos de um filme, sendo relembrados por Delbrai Augusto Sá no prefácio do livro que agora é publicado.
É a partir desses silenciamentos da história que, corajosamente e com um senso investigativo muito caro aos bons jornalistas, Mariana escreveu esse livro que cumpre um papel muito importante não apenas pelo registro do sinistro, e por toda a informação que conseguiu reunir, mas também porque investe em um tema que infelizmente permanece atual, o caso de toda e qualquer violência contra a mulher. A autora, inclusive, traz muitos dados que alarmam pelos crimes sofridos por mulheres não só em nossa região, mas em todos os lugares. Entre os altos índices de espancamentos, feminicídio, e abusos de toda ordem, a violência sexual na infância é um dos mais abjetos e assustadores. O livro sinaliza, assim, contra “incêndios futuros”, o que quase toda boa obra de cunho historiográfico deve fazer.
Destaco no livro-reportagem de Mariana a farta presença de documentos fotográficos e de arquivo que fundamentam a sua pesquisa. Chamo a atenção também para a participação de uma série de colaboradores que deram seu importante depoimento. É o caso de Odilon Muncinelli, filho de Cícero Muncinelli, capitão da lancha Santa Terezinha, cujos tripulantes encontraram o corpo da jovem assassinada, avisando as autoridades na época. Tudo foi relatado no diário de bordo da embarcação: “O livro foi recolhido como material de prova, mas jamais devolvido e, até hoje, seu paradeiro é um grande mistério”. Mais um capítulo do silenciamento que vimos apontando ao longo do texto. Como e por que esse documento teria desaparecido do processo? Para Odilon, esse não foi um crime perfeito, porque “a população da época sempre soube quem foram os responsáveis”.
Creio que Mariana Honesko Bortolini só não foi mais longe em sua pesquisa justamente devido ao silenciamento que moveu o caso e porque muitas pistas foram ao longo dos anos apagadas. O caso Zilda era para a “limpa e reluzente” sociedade local uma nódoa que maculava uma parcela daqueles que supostamente zelavam por ela. Mas como o recalcado está fadado a ressurgir como fantasma, o episódio não é página virada e Mariana contribui para nos lembrar que nem sempre o que reluz é ouro. Só o fato de não permitir que essa triste memória se apague já ajuda a descansar esse fantasma. É uma forma também de tentar salvar outras Zildas. Que Deus dê descanso a todas elas, mas não deixe de fazer justiça. O livro da Santinha é muito bem-vindo por isso tudo!

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), no dia 06 de abril de 2019


Leminski e seu lance de ensaio: textualidades ninjas




(Arguição à Dissertação de Mestrado de Gabrielli Margarida Zanella defendida no dia 29 de março de 2019 no Programa de Pós-Graduação em Literatura na Universidade Federal de Santa Catarina)

Caio Ricardo Bona Moreira

Em uma recente antologia, A Hora da Lâmina, que recupera os últimos textos que Leminski publicou em jornal, numa coluna semanal na Folha de Londrina, entre abril e junho de 1989 (o texto que encerra a colaboração é veiculado cinco dias antes da morte do poeta), podemos encontrar uma série de textos que nos ajudam a compreender o motivo de Leminski tratar os textos que veiculava na imprensa como “textos-ninja”: “textos curtos, ligeiros, ácidos, ágeis, mas também ferinos ácidos, arrebatadores”, nas palavras de Felipe Melhado, organizador da antologia. Para ele, em seus textos derradeiros, “Leminski esboçava um verdadeiro elogio do conflito, lançando bases para um entendimento bélico da vida cotidiana” (2017, p. 10). Dos oito textos, os últimos quatro tratam da questão da luta e da guerra como experiência de vida[1]. No primeiro deles, Leminski observa que sua vida se rege por princípios estritamente militares, inspirado em Napoleão e na leitura do general von Clausewitz, general prussiano que para o autor é clássico máximo e “estudo obrigatório em todo Estado-Maior do mundo inteiro” (2017, p. 49). Com von Clausewitz, o escritor aprendeu: como atacar, como se defender se os víveres escasseiam, como conduzir com sucesso uma boa retirada. Leminski não tarda em alertar que não se trata de defender uma visão agressiva e feroz da vida, como desavisados poderiam pressupor. Trata-se de pensar na guerra não apenas como dor e destruição, perda e desgraça, crueldade e fim da inocência. Para o poeta-ensaísta, guerrear é “uma das coisas mais divertidas da vida”: “A guerra só é dolorosa quando você perde”, escreve ele. No texto de 12 de maio, o assunto é a Guerra do Contestado, sangrento episódio que aconteceu tão próximo de onde vivia. Uma semana depois, comenta o livro zen Discurso sobre a Arte dos Demônios da Montanha, do japonês Shissai Chozan, escrito no início do século XIX, e que trata da esgrima, o Ken-dô. Leminski escreve que o Ron de Chozan (ron, em japonês, quer dizer “argumento”, “tratado”, “ensaio”) tem um suporte ficcional:

O espadachim vai se isolar nas montanhas, consultar os tengu, os espíritos do céu, duendes de nariz comprido (no imaginário nipônico, os tengu são modelos de orgulho, força e sabedoria (...). Longo tempo, aos brados, o espadachim invoca a presença dos tengu. Até que eles aparecem, no alto de uma árvore. E começam a responder às perguntas do aprendiz. (2017, p. 62).

Nessa experiência do kendô, é fundamental o conceito de “naturalidade do coração”, ou seja, a prática da esgrima é uma libertação da intenção. Nesse sentido, os golpes devem acontecer sem a “interferência da vontade de um Ego”. Independente disso, na arte das espadas exige-se “a fusão da segurança técnica com entendimento espiritual”.
Leminski compreende então o gênero Ron de Chozan como uma espécie de ensaio. E por que não pensarmos aqui no ensaio na obra desse autor como uma espécie de prática cotidiana de luta, exercício marcial do confronto. Penso se não vai por aí um caminho que nos ajuda a pensar no ensaísmo leminskiano, como arena de combate, ringue de disputas, bem como lugar de entendimento, de experimentação da técnica, espaço de problematização da cisão palavra que na cultura ocidental, como observou Agamben, colocou a filosofia de um lado e a poesia de outro, impossibilitando ao mesmo tempo o conhecimento e o gozo. São questões que estão discreta ou explicitamente movendo ou sendo movidas pelo pensamento de Gabrielli Zanella em sua dissertação “A potência poética nos ensaios de Paulo Leminski”.
O ensaio, tal como praticado por Leminski, no interstício entre a crítica e a arte, entre a poesia e a filosofia, entre o jornalismo e a literatura, parece caminhar para aquela mitologia crítica que segundo Agamben (2005) já existe e que conclama os poetas a serem também filósofos (críticos) e os filósofos (críticos) a serem também poetas. Do caso de amor ou namoro entre essas instâncias parece brotar do ventre do poeta um rebento destinado ao saber e o sabor, simultâneos, um rebento que se depreende do ensaio, do texto-ninja, lugar em que poética e política parecem ser praticadas com entusiasmo.
Ensaio, texto jornalístico, anseio, crônica, crítica? Talvez não importe tanto a definição. O próprio poeta chegou a adotar os termos “reflexão”, “instruções” e “textos-ninja”, num ensaio destinado a pensar a Ruína. Diz ele: “Assim, o nome desta reflexão (odeio a palavra crônica, com que alguns costumam designar meus textos-ninja) era para ser instruções para a construção de uma ruína” (LEMINSKI, 2012, p. 174). Em uma carta a Haroldo de Campos, de 1976, usou a expressão “quase-ensaios”, ao se referir ao Catatau. Gosto de ensaio, porque sua liberdade entra em consonância com o que se percebe nessa textualidade jornalística selvagem do escritor de Catatau, que como bem analisou Gabrielli Zanela, em sua dissertação de Mestrado, soube trabalhar inventivamente seu pensamento no ensaio, inventariando a própria expansão de seu limite enquanto gênero.
Antonio Candido observava sobre Oswald de Andrade que ele renovou a prosa e a poesia rompendo a linha divisória entre a prosa e a poesia. Essa renovação pode ser entendida também no que se refere à mistura de gêneros, já sinalizada por Haroldo de Campos, como uma “técnica de descoberta criativa”. Fato semelhante se deu com o Leminski em relação principalmente a sua prosa poética de Catatau, suas cartas e seu ensaísmo explosivo. O tema foi bem abordado pela pesquisadora cuja dissertação é apresentada hoje.
Creio que as reflexões sobre a poetização da prosa ensaística de Leminski que Zanella apresenta a partir de uma sólida reflexão de Agamben e Alberto Pucheu são elucidativas e potencializam uma leitura talvez ainda pouco realizada na obra de Leminski. Rodrigo Garcia Lopes, por exemplo, que há alguns meses publicou um “Roteiro Literário” interessado em apresentar a obra de Leminski quase nem toca no assunto. Boa parte da fortuna crítica de Leminski também. Garcia Lopes em uma das poucas reflexões sobre esse lado ensaísta do poeta escreve: “Era no espírito da polêmica e em seus “ensaios-ninja”, como ele os chamava, que ele exercia seu pensamento selvagem, assistemático, sempre bem-informado e humorado. Num ambiente onde vinga o “bom-mocismo”, Leminski provocou e incomodou” (2018, p. 17).
Creio que Waly Salomão é um dos poucos poetas da geração de Leminski que desenvolveram uma escrita profundamente poética no âmbito da escrita ensaística, como podemos perceber ao lermos seu Armarinho de Miudezas (2005), cujos textos concentram uma força poética profundamente polissêmica e singular. Cacaso e Ana Cristina Cesar também são ótimos ensaístas a meu ver, mas com uma linguagem bem mais comportada, delimitando bem uma certa distância, com um direito a cerca ou muro, os domínios da ciência e da arte, do jornalismo e da literatura, da filosofia e da poesia. No caso de Leminski, em sua pororoca amorosa, o poeta parece pensar através dessa estrutura pautada pela cesura. Seu pensamento ágil, veloz, talvez não encontraria sentido na justa medida de uma escrita científica, acadêmica, de tratado, ou pretensamente objetiva e jornalística.  Essa pororoca que aparece com força também nas biografias-poético-ensaísticas que escreveu sob encomenda da editora Brasiliense, nos anos 80.
Para finalizar, destaco o ponto exato onde Zanella concluiu sua pesquisa, abordando as cartas como elementos textuais que fazem parte dessa potência poética. Por uma questão de acaso ou destino, guardo uma carta que Leminski enviou ao amigo Álvaro (talvez Álvaro Marins que organizou uma de suas antologias). Nela, Leminski pede para seu interlocutor relevar o fato dele “usar ainda esse código obsoleto que é o verbal”, dizendo que ele ainda é fundamental no processo de comunicação e construção de ideias, poéticas ou não, questionando, assim, um livro no qual Álvaro defende a poesia icônica num contexto de poema-processo. Depois de comentar sobre as revistas Polo e Raposa, que estava editando em Curitiba, o poeta aborda implicitamente o mesmo problema que já havia há alguns meses confessado para Regis Bonvicino em carta, ao informar que seu fígado havia dado um stop. Para Álvaro, Leminski é mais discreto:

O tempo já está triando inexoravelmente
E ficarão no final para a finalíssima
os produtos
Tomara que os nossos
Os teus
Os meus
E os dos nossos

Do seu Leminski
27/07/78

Na carta as mesmas cesuras que conferem ao texto seu ritmo poético. Com uma bela pesquisa já realizada por Solange Rebuzzi (2003) e publicada em livro: “Leminski, guerreiro da linguagem – uma leitura das cartas-poema de Paulo Leminski”, o assunto continua convidando a novas pesquisas, porque uma obra de referência, creio eu, sempre nos convida a lermos de formas diferentes os mesmos objetos.
Da UNESPAR para a UFSC, do Memórias Poéticas do Vale do Iguaçu ao Programa de Pós-Graduação em Literatura, do Caio a Susana (que salto e melhora significativa), cumprimento o trabalho da pesquisadora Gabrielli Zanella, alegrando-me com o resultado final, e desejando futuro auspicioso em outros mergulhos numa pororoca ensaística, namoros entre a crítica e arte, seus saberes e sabores, suas mitologias críticas, espaço também de luta e resistência em tempos tão sombrios: “A guerra só é dolorosa quando você perde”.

Referências:

AGAMBEN, Giorgio. Infância e História: Destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
GARCIA LOPES, Rodrigo. Roteiro Literário Paulo Leminski. Curitiba: Biblioteca Pública do Paraná, 2018.
LEMINSKI, Paulo. A hora da lâmina. Londrina: Grafatório Edições, 2017.
LEMINSKI, Paulo. Ensaios e Anseios Crípticos. 2 ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.
REBUZZI, Solange. Leminski: Guerreiro da linguagem: uma leitura das cartas-poemas de Paulo Leminski. Rio de Janeiro: 7Letras, 2003.
SALOMÃO, Waly. Armarinho de Miudezas. Ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
ZANELLA, Gabrielli Margarida. A potência poética nos ensaios de Paulo Leminski. Florianópolis: UFSC, 2019. (Dissertação)  

Membros da Banca:

Jorge Hoffmann Wolff
Jair Tadeu da Fonseca
Rita Lenira de Freitas Bittencourt
Caio Ricardo Bona Moreira



[1] Lembremos que o assunto já aparece em Guerra dentro da Gente, livro infanto-juvenil que Leminski escreveu nos anos 80.

Casulo: Poema, Borboleta: Cecília Meireles





(Arguição à tese de doutoramento de Erion Marcos do Prado defendida no Programa de Pós-Graduação em Literatura no dia 28 de março de 2019 na Universidade Federal de Santa Catarina)


Caio Ricardo Bona Moreira

Gostaria de começar a arguição evocando uma passagem aparentemente fortuita, mas que se revela ao longo da tese de Erion Marcos do Prado como a centelha de uma questão central. Já nas primeiras páginas do capítulo inicial da tese intitulada “A Teatralização do 'eu' na Linguagem do Poema em Cecília Meireles”, o pesquisador apresenta uma série de cinco poemas de Cecília publicados no volume que inaugura a Revista Festa, em 1927. Concentro-me no primeiro deles, intitulado “Casulo”, que segundo Erion, ao insistir na relação entre a vida e a morte – temática recorrente na poesia simbolista bem como na lírica da poeta em questão (um dos elementos que, por sinal, aproximam ambos) -, se dispõe a tratar, entre outros assuntos, da “condição da existência humana diante de seu destino fatídico” (2019, p. 35). Soma-se a esse ponto de vista a observação de que há no poema um “confronto entre humano e divino, matéria e espírito, etéreo e carnal” (2019, p. 37), ou mesmo a evidência de um “confronto entre a fragilidade da existência e o poder da preservação do indivíduo através da arte (...)” (idem, p. 37). Para Erion “a metamorfose, aqui, é a transformação da matéria em espírito, e permite uma outra forma de vida, a espiritual” (idem, p. 37). Poderíamos perguntar se esse processo sinalizaria necessariamente para o término da existência material, ou se não estaríamos diante de uma espécie de ritual de iniciação que marcaria a estreia não só da Revista Festa no Modernismo brasileiro, mas também de Cecília Meireles no periódico, já que o poema não apenas abre uma série de cinco textos, mas também inaugura uma intensa colaboração literária que infelizmente seria desconsiderada pela própria poeta na revisão de sua obra. Seus poemas de Festa ficaram de fora. Esse olhar parece corroborar com o de Leonardo D´Ávila de Oliveira, inclusive citado por Erion, um olhar que apresenta o texto como parte de uma “viagem interna que seria uma espécie de iniciação a um mundo que não é mais material, e sim espiritual” (2019, p, 35). Talvez pudéssemos acrescentar, que não é mais material, mas também espiritual, já que a morte em um ritual de iniciação místico-filosófica, em sociedades secretas e/ou apenas esotéricas, seria apenas simbólica. A morte simbólica, inclusive, é geralmente a parte mais enfatizada dessas cerimônias (SPENCER, 1995). Nas culturas iniciáticas, tal acontecimento antecede um renascimento simbólico que aqui, poderia ser associado a título de miragem, à morte de uma certa ideia modernista e o renascimento simbólico – ou pervivência – de uma certa ideia de modernidade que apontaria por sua vez para a existência de um modernismo paralelo (continuador nas palavras de Erion) àquele outro que se consignou autonomista pela geração de Oswald e de Mário de Andrade, a Geração de 22, o grupo da Semana de Arte Moderna.
Se prestarmos mais atenção nas três estrofes do poema “Casulo”, observaremos que na primeira delas estamos diante de uma preparação para a morte, na segunda estamos diante da morte simbólica, propriamente dita, e na terceira, da vida póstuma, neste caso da vida pós-Iniciação. Na primeira, sugere-se uma criação de fios tênues (formando um casulo) que envolveriam um sujeito que está a dormir um sonho preparatório, sonho que seria uma espécie de “Iniciação das azas / para a sabedoria dos espaços” (apud PRADO, 2019, p. 25). Trata-se de um acontecimento do passado. A segunda estrofe aponta para um presente ou para um pretérito recente (materializado pela expressão “hoje romperam-se todos os casulos”). Todos morreram, de fato, menos o sujeito tratado no poema, como se a morte para ele não acontecesse de fato, mas apenas simbolicamente. A terceira estrofe parece apontar para um futuro, na expectativa de uma resposta à pergunta: “Dize-me, insecto obscuro: / Com que azas voaste / De dentro de ti mesmo?” (apud PRADO, 2019, p. 25). O poema parece aqui sugerir novamente uma morte simbólica, já que num processo de iniciação vivencia-se a experiência da morte sem se morrer de fato. Trata-se de uma experiência do possível, daquilo que poderia ter sido, e de onde se extrai algum tipo de aprendizado, de conhecimento. Uma experiência de certa forma poética, bem como verossímil. Vale reforçar que em rituais de iniciação variados é comum a presença da morte e do renascimento. Em alguns rituais xamânicos temas como o do desmembramento do corpo, a redução a um esqueleto e a subida pela Árvore Cósmica, são recorrentes (SPENCER, 1995). No Budismo Tibetano e Mongol, segundo Gertrude Spencer, “visualizar a própria morte pela redução ao estado de esqueleto é uma meditação favorita” (idem, p. 36). Na maçonaria, o tema da morte é vivido pelo postulante deitado em um caixão-casulo (sobre isso, anoto o que me contaram visto que não sou maçom). O noviço, em outros rituais de iniciação, se torna novamente embrião a permanecer no ventre-casulo por algum tempo. Rituais hindus envolvem a colocação de um candidato num receptáculo dourado que tem a forma de uma vaca, ou “em um pote simbolizando seu ventre, sendo que ele emerge de ambos como um bebê” (idem, p. 30). Assim o simbolismo do retorno ao ventre é recorrente em muitas cerimônias de iniciação, presentificado pelo isolamento do noviço, numa cabana-caverna-casulo. Em quase todas elas, trata-se de produzir uma introspecção, seguida de uma segregação ou isolamento do mundo, para se atingir a morte mística, seguida da ressurreição, da revelação (SPENCER, p.1995).  
O poema “Casulo” termina com dois versos que perguntam: “Qual foi a tua Iniciação? / Qual é a tua sabedoria?”, como a interrogar um interlocutor sobre aprendizados que vieram com essa transformação, já que o Iniciado nunca mais será o mesmo depois deste evento. Não desconsideremos que Cecília, iniciada no Modernismo Continuador de Festa, encantou-se sempre com misticismos e religiosidades orientais que são bastante afins a rituais iniciáticos, o que marcou deveras sua pensamento e obra, como a Tese bem aborda.
Insisto um pouco mais na questão, desculpando-me pela longa digressão. Em um belo confronto com o “Casulo”, Erion apresenta a “Elegia a uma pequena borboleta”, que Cecília publicou posteriormente, em 1949, no livro Retrato Natural. A partir dela, observa não só a fragilidade do ser alado (uma espécie de Albatroz baudelairiano), bem como aponta novamente para a tópica da metamorfose. Neste caso, a morte da larva gera o nascimento da borboleta, mas para morrer logo depois nas mãos da poeta que, com sua rude mão, e sem habilidade para lidar com as coisas frágeis, sutis, mata o pequeno inseto, chorando por sua forma violada. A borboleta antes viva e alada, agora está inerte e silenciosa. Para Erion, os versos fazem parte de um questionamento acerca da qualidade do trabalho poético que o eu-lírico realiza. Se por um lado o poeta é aquele que mata a borboleta, por outro é aquele que a permite perviver por meio de seu texto: “Se a poeta não consegue salvar o inseto que voa, a única forma de conservar ainda a vida desse ser é através da arte” (2019, p. 44). De um lado a fragilidade, a morte, a incapacidade de durar, o efêmero, o transitório, o casulo-esquife, de outro, o movente, a movência em si, a capacidade de se metamorfosear, de perviver, de sobreviver, mesmo que como ruína no texto, mesmo que como imago. A borboleta precisa ser sacrificada para sobreviver como imagem, Cristo crucificado[1] não é senão uma espécie de grande borboleta aberta, como apontou Didi-Huberman, borboleta “bela, simétrica, muda como uma mariposa-caveira (2015, p. 147). Tão barroca, tão simbolista, tão moderna, tão Cecília Meireles.
A questão parece sinalizar aqui para um paradoxo que marca a arte desde Baudelaire, numa tentativa perene de conciliação entre as suas duas metades. Antonio Cícero, no poema “Guardar”, escreve que “melhor se guarda o voo de um pássaro” do que um “pássaro sem voo” (2010, p. 29). Didi-Huberman, numa direção semelhante, pergunta se a “borboleta integralmente conhecida seria, portanto, a borboleta submetida ao éter, definitivamente cravada com um alfinete sobre uma prancha de cortiça? (2015, p.14)”. O próprio historiador da arte pergunta:

Integralidade ilusória, obviamente, porquanto lhe falta a vida. Não valerá mais uma borboleta que passa sob nossos olhos, fugidia mas viva – movente, errante, mostrando e ocultando alternadamente sua beleza no bater das asas -, mesmo que seja pouco conhecida e, como tal, muito frustrante, senão inquietante? (2015, p.14). 
 
Diante da borboleta de Cecília talvez estejamos a vislumbrar a Passante, de As Flores do Mal, e sua efêmera beldade, fadada a ser vista novamente senão na eternidade, beldade cujos olhos fazem o poeta nascer outra vez, como borboleta emergindo do casulo na multidão. Aliás, Erion Marcos do Prado, em uma das passagens da Tese, escreve que na obra de Cecília Meireles, a vida é feita de coisas ambíguas, que misturam alegria e melancolia, beleza e dor, como se ela também se pusesse a escrever as suas Flores do Mal (2019). 
Penso que a tópica do casulo e da borboleta, bem como suas especificidades na lírica de Cecília, não só ajudam a fundamentar uma certa poética, bem como integram um projeto que destoa do Modernismo autonomista, fazendo-nos lembrar  do elogio das singularidades bergsonianas, lembradas por Didi-Huberman, em Falenas, elogio que acabava por recusar a maneira como quase toda a tradição metafísica do Ocidente terá privilegiado a “permanência das formas fixas, facilmente pensáveis na sua idealidade, em detrimento das formas moventes, tão difíceis de aprender em suas durações concretas, nas suas mudanças, nos seus anacronismos e metamorfoses” (2015, p. 16). De um lado uma intensa reflexão sobre a forma, no modernismo de ruptura. De outro, um movimento mais aberto a forças difíceis de serem domesticadas, pendão da própria modernidade. Talvez fosse preciso, à maneira de Murilo Mendes, evocado por Raúl Antelo (2001), em um texto sobre o conceito de arte pura nos modernistas brasileiros, empregar a palavra modernidade e não modernismo, para lidar com tal força, mais próxima de Cecília Meireles do que de Oswald de Andrade. Antelo observa que Murilo Mendes “situa a questão da modernidade, isto é, 'as ruínas do discurso, num outro espaço que já organiza a sua própria arqueologia' nas noções de morte do autor e desaparecimento da obra” (2001, p. 111). Por isso penso que Erion acerta ao aproximar o poema de Cecília Meireles mais do simbolismo (poesia moderna) do que do modernismo paulista. Penso também que outros dois ensaios de Antelo podem nos ajudar a pensar em tal questão, “O percurso das supersensações”, no qual a ideia de supersensações de Clarice Lispector é analisada como a inversão pontual da imagem modernista, pulsando como o avesso do signo, “dissonância irresolvida dos interstícios da própria representação” (2001, p. 185), ultrapassando assim “a experiência de ruptura modernista” e podendo ser mais cabalmente entendida como “experiência interior” (2001, p. 185).  Tais questões podem não estar especificamente próximas de Cecília, mas não são dela totalmente avessas. O outro texto que penso, nos ajudar a desenvolver a questão está em “Mar, máquina e mais-de-ser”, no qual Raul desenvolve uma interessante leitura do simbolismo de Cruz e Sousa ao pontuar no poema em prosa um processo de “irrupção da máquina como sintaxe do novo homem”. Segundo Antelo, muito antes de dadaístas e surrealistas descobrirem o vínculo entre imagem e mercadoria, os simbolistas captam, numa determinada redefinição do sujeito, não só a “emergência de outra linguagem, porém, efetivamente, a articulação da linguagem do outro” (2001, p. 197). Nas imagens produzidas por esse simbolismo, Antelo encontra um “inconsciente ótico”, do qual derivam noções de experiência de esgotamento e de imagem corporal que tocam nossa sensibilidade contemporânea” (2001, p. 200). Creio que são observações que integram textos que ampliam as dobras da mesma questão.
Didi-Huberman, em uma passagem de Falenas, nos convida a articular o ver e o imaginar, seguindo a rigorosa definição baudelaireana que faz da imaginação uma faculdade que aprende as relações íntimas e secretas entre as coisas. Articular o visível e o invisível, o efêmero e o eterno, a imagem e a imaginação, parecem fazer parte do projeto dessa modernidade de Festa, ou melhor da poesia moderna de Cecília Meireles, essa máquina neo-simbolista de produzir imagens. Sua borboleta parece não estar desvinculada da coleção de borboletas de Walter Benjamin, em “Infância Berlinense”, da conversa de Warburg com suas borboletas, do conjunto de borboletas que pululam no surrealismo, no voo cinematográfico do inseto figurado por exemplo pela mulher-borboleta de Georges Méliès, entre tantas outras. Penso que a borboleta parece funcionar bem para ilustrar uma certa ideia de modernidade, no jogo de um paradoxo da forma e do informe, de sua pungente aparição que tão logo prenuncia sua agonizante desaparição.
A meu ver, Erion percebe bem o que está em jogo na poesia de Cecília em relação a sua concepção de poesia moderna, seu diálogo com outras tradições em especial com o simbolismo (inclusive na sua vocação para uma vivência religiosa múltipla), sua inadequação ao modernismo canônico, a teatralização do “eu” como princípio constitutivo de seu poetar moderno, uma determinada concepção de nacional em confronto com o vago e etéreo nefelibatismo, que por vezes parece paradoxal, e por isso mesmo moderno, aspecto que pervive ao longo de sua produção para além de Festa.   Para finalizar, gostaria de destacar algumas contribuições da Tese que hoje se examina: 
·        Erion devolve potência para alguns poemas relativamente esquecidos de Cecília, refiro-me em especial àqueles que integram a sua participação em Festa e que não foram reconhecidos pela própria escritora na revisão de sua obra ao lado dos primeiros livros. O pesquisador analisa com desenvoltura uma poeta que continua sendo um mistério para mim, convidando-me também à leitura;
·         A pesquisa analisa com presteza a dimensão moderna de sua poesia, posta em diálogo minucioso com o simbolismo[2], esmiuçado na sua vocação para a problematização do lirismo tradicionalmente entendido como linguagem em estado de ânimo, da alma pessoal do artista, lirismo que passa a ser compreendido a partir de uma certa noção de teatro, de “dramatização das vozes”, o que enriquece a leitura da poesia de Cecília. Dessa questão, destaco uma passagem em que Cecília, de certa forma, se expõe ao risco, ao escrever em uma carta enviada a Côrtes-Rodrigues: “E entristecem-me pensarem – quase todos – que o que escrevo é uma coisa, e eu e minha vida somos outra” (2019, p. 205). Erion resolve a questão ao observar que “se a poeta vê sua obra e sua vida como a mesma coisa, como fez em alguns textos que foram tratados aqui, isso se deve ao fato de que ela inventa o vivido a partir do poetado” (2019, p. 207). Em outra singular constatação, apontando para um jogo entre bio e razo, Erion escreve: “quando diz que sua vida e sua obra são a mesma coisa, Cecília quer dizer que cria vida nova através da palavra e não o inverso. Ela não coloca em palavras um evento biográfico, ela não está arrazoando o vivido, mas poetando um arrazoado”.
·        A tese problematiza o modernismo de 22, tratado na Tese como uma tradição que pende para a ruptura, o dito modernismo canônico, apontando para uma outra experiência modernista brasileira, como é o caso do modernismo continuador (expressão usada por Erion), na qual está inserida a revista Festa e Cecília Meireles. Um modernismo que teria inclusive desenvolvido uma concepção diferenciada de uma ideia do nacional. Sobre a participação de Cecília na revista Festa, observando que tal filiação parece uma pista para entender a singularidade de sua poesia.   
Por fim, saúdo o pesquisador e sua pesquisa, Erion Marcos do Prado e sua tese, criador e criatura, que, feito a borboleta depois da maturação do casulo, entrega-se às exigências de uma defesa de doutorado, numa espécie de ritual iniciático - no entanto, sem as fantasias místicas ou constrangimentos religiosos -, ritual que certamente lhe permitirá ascender a outros patamares acadêmicos, a outras experiências de leitura e escrita, a outros movimentos de saber, a outras perquirições que como as da presente tese certamente estimularão em nós, leitores, o convite ao voo.

Referências:

ANTELO, Raúl. Transgressão e Modernidade. Ponta Grossa: UEPG, 2001.
CICERO, Antonio. Antonio Cicero por Alberto Pucheu. Rio de Janeiro: Eduerj, 2010. (Coleção Ciranda da Poesia)
CRUZ E SOUSA, João da. Cruz e Sousa simbolista: Broquéis, Faróis, Últimos Sonetos. Organização e estudo por Lauro Junkes. Jaraguá do Sul: Avenida, 2008.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Falenas. Lisboa: KKYM, 2015.
PRADO, Erion Marcos do. A teatralização do “eu” na linguagem do poema em Cecília Meireles. Florianópolis: UFSC, 2019. (Tese)
SPENCER, Gertrude. O drama da iniciação. 4 ed. Curitiba: Ordem Rosacruz, 1995.

A Banca de Doutorado foi composta pelos professores:
Raúl Antelo
Carlos Eduardo Capela
Rita Lenira de Freitas Bittencourt
Caio Ricardo Bona Moreira



[1] Como não lembrar do “Cristo de bronze” (2008, p. 52), bizarro, de Cruz e Souza. Aliás, Cruz e Sousa, em um de seus sonetos, “O Grande Momento”, escreveu sobre a consagração do Artista, sobre a entrada de sua Alma Imprevista no seio dos iniciados, comparando-a com a transformação da larva em borboleta: “Eis o grande Momento prodigioso / Para entrares sereno e majestoso / num mundo estranho d´esplendor sidéreo // Borboleta de sol, surge da lesma... / Oh vai, entra na possa de ti mesma, / quebra os selos augustos do mistério” (2008, p. 237). Pensando na longa, pertinente, e protéica discussão de Erion sobre a teatralização do “eu” na obra de Cecília, talvez pudéssemos pensar na despersonalização do poeta, na morte do autor, e na re(construção) do sujeito poético como a transição do estado de larva, no casulo, ao estado de borboleta. Vestir a máscara desse carnaval, fantasiar-se de borboleta, é nesse sentido uma forma moderna de fazer poesia.

[2] “Os poetas de Festa buscavam, acima de tudo, o absoluto e o eterno, ligando o mundo material ao mundo espiritual, tendo, segundo eles, uma visão da realidade total do ser, encontraram no simbolismo o principal tema para a sua poesia: a existência humana” (PRADO, 2019, p. 167).