domingo, 25 de novembro de 2018

Ondjaki e a poesia como laboratório da língua




Há alguns anos, em uma entrevista concedida à revista literária Etcétera, de Curitiba, o poeta Ademir Assunção observou que a linguagem constrói mundos e quando um autor desautomatiza a linguagem, dependendo do grau de sucesso nisso, “desautomatiza também a percepção do mundo dos leitores e modifica a percepção da realidade, ou das realidades”. Gosto desse argumento porque ele traz à tona uma das grandes questões que envolve a vocação da poesia, que é a de ser um laboratório da língua, lugar onde ela (a língua) se experimenta na sua máxima potencialidade. Pensamos condicionados pelas regras de nossa língua e a poesia, ao desautomatizar a linguagem, tirando-a de seu lugar comum, da zona de conforto do idioma, é nesse sentido uma fonte proteica não só de toda e qualquer língua, mas também do próprio pensamento. A poesia é essa máquina de produzir imagens tal qual caleidoscópio. Giramos, lemos, e assim novos desenhos estão destinados a brotarem do risco (friso aqui o duplo sentido) de todo e qualquer poeta. Poderíamos dizer também, redesenhando os traços de Ademir Assunção, que a poesia, ao desmontar a linguagem, desmonta também a nossa forma de ver o mundo. Desmontagem e desautomatização são essenciais no jogo da atividade poética. Gire mais o caleidoscópio e verá uma sempre nova paisagem de formas e cores. Desmontar a linguagem tem a ver nesse sentido com o ato de brincar. O jogo está sempre presente na lógica de uma brincadeira. E isso dá prazer. O poeta brinca com as palavras, como a criança faz seus jogos na moral de seu brinquedo.


Ademir Assunção

Escrevo tudo isso apenas para saudar a poesia de Ondjaki, escritor nascido em 1977 na cidade de Luanda. Premiado na Angola, seu país de origem, na Europa, e também no Brasil, Ondjaki é autor de romances, contos e poesia, tendo sido traduzido já para o francês, espanhol, italiano, alemão, inglês, sérvio e sueco. Basta abrir seu livro de poemas “Há prendisajens com o xão (o segredo húmido da lesma & outras descoisas” (Pallas, 2011), para percebermos a desautomatização da linguagem de que nos fala Ademir Assunção, gerada em grande parte pela desmontagem da língua portuguesa, a começar pelo próprio título da obra. Essa experiência, que faz lembrar a todo instante do mestre brasileiro Manoel de Barros - aliás fartamente incensado no livro -, faz de Ondjaki uma das vozes renovadoras da literatura de língua portuguesa.

Ondjaki

A todo instante os poemas do angolano, ao desmontarem a linguagem tradicional - produzindo aquele estranhamento que faz da poesia o que a poesia é, na emergência de sua literariedade – embaralham as ideias e os sentidos do leitor apontando para novos sentidos fecundados por sua sensibilidade lírica, bem como por suas experiências frasais (fractais) capazes de alimentarem não apenas sua língua poética, mas principalmente a imaginação do leitor, uma imaginação que é também conhecimento profundo sobre as coisas. Ondjaki olha para o chão a todo instante como a colher estrelas, bem como observa com afinco o céu para nele semear o alimento de sua escrita. Seguindo o preceito de Manoel de Barros, para quem é preciso “chegar a traste para ter grandezas”, o poeta Ondjaki escreve no poema “Chão”, que abre o livro: apetece-me des-ser-me; / reatribuir-me a átomo. / cuspir castanhos grãos / mas gargantadentro; / isto seja: engolir-me para mim / poucochinho a cada vez. / um por mais um: areios. / assim esculpir-me a barro / e re-ser chão. Muito chão. / apetece-me chãonhe-ser-me”. Seus jogos verbais vão estabelecendo uma sintaxe muito peculiar que me faz lembrar daquilo que escreveu Vilém Flusser sobre a poesia, entendida como uma espécie de língua nova. 

Vilém Flusser

Para ele, a característica do verso é a sua originalidade e a poesia produz a língua, porque “articula o inarticulado”. Flusser conclui que a poesia é nesse sentido a “fonte da verdade”. Eis a filosofia do poema. Seu alimento está, naturalmente, na imaginação e na capacidade de ler o mundo com outros olhos: “o pirilampo é a lanterna do poeta”, escreve Ondjaki em um de seus versos. De outros poemas, podem ser pinçados lances poéticos como: “A folha é parede verde / para o sol chegar”; “A despalavreação / pode acrescer de uma vida”; “Encarar o universo com / demasiada intimidade / - a modos que quintal”; “Para ser grilo / há que ter desnoções”.


Nos versos de Ondjaki, um galho pode gentificar uma arve (árvore), um só olhar pode ser uma “voz não dita”, a linha da água pode ser um espelho para o céu “narcisar-se”; a terra experimenta alturas, e o poeta pode ter o céu sob seus pés, até porque “nunca é impossível / pisar um chão de estrelas”; a lágrima é “sensação que escorrega”. Em seu dicionário poético, que encerra o livro, o autor define a palavra “despalavreação”: “é um ensinamento, uma desaprendizagem. Um desmomento. E tem outros nomes: guimarães prosa, manoel de barro, luuandino vieira, mia conto, ou qualquer ser humano que sorria no gigantesco significado das coisas insignificantes”. Estão aí suas influências, ou melhor suas afluências, já que tratamos da poetização de seu mundo natural, ou da naturalização de seu mundo poético.
Para finalizar, uma confissão: não consegui explicar a poesia de Ondjaki. Nem mesmo entendê-la. Natural. Causo que ela não carece de explicação ou entendimento. Como dizia Manoel de Barros, mallarmaicamente, ao comentar em carta os poemas do “camarada angolano”, a “palavra poética não serve para expressar ideias – serve para cantar, celebrar”. Ou como dizia Cacaso, “Poesia / Eu não te escrevo / eu te / Vivo / E viva nós”.

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória, em 24 de novembro de 2018.