quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Dissonâncias de Foucault e de Daniel de Oliveira Gomes: Apontamentos para uma filosofia-poético-musical


Caio Ricardo Bona Moreira

Ao som de Glenn Gould

"Em um tempo no qual o senso harmonicamente comum, bem como a ausência de um saber potente parece reger e conduzir a vida, muito aquém das multiplicidades rizomáticas - avessas a qualquer tipo de fundamentalismo -, valorizar a dissonância é uma forma não só de resistência, mas mesmo de sobrevivência do pensar. Fugir da consonância é, assim, um ato de coragem e lucidez" 


Gostaria de saudar o professor Daniel de Oliveira Gomes e sua pesquisa, evocando amorosamente o livro Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector, no qual o pensamento é pensado como música se criando: “A música era da categoria do pensamento, ambos vibravam no mesmo movimento e espécie. Da mesma qualidade do pensamento tão íntimo que ao ouvi-la, este se revelava” (1997, p.54). Evoco também a prosa de Água Viva, na qual Clarice compara a escrita automática de seu texto ao jazz, gênero musical pautado pelo momento e pela improvisação: “Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. Mas que mal tem isso? improviso como no jazz improvisam música, jazz em fúria, improviso diante da plateia” (1980, p. 23). Por fim, de Clarice também, evoco Um sopro de vida, no qual ela escreveu, ou melhor, cantou: “Estou ouvindo música. (...) Meu vocabulário é triste e às vezes wagneriano-polifônico-paranoico. Escrevo muito simples e muito nu. Por isso fere. Sou uma paisagem cinzenta e azul. Elevo-me na fonte seca e na luz fria” (1999, p.15-16). Poderíamos passear bem mais pelo universo lispectoriano apreciando a música que se depreende de suas palavras, tudo isso para musicar seu pensamento, ou mesmo pensar altissonantemente seus acordes verbais. Aliás, em 1973, a autora recebeu uma carta do amigo e jornalista Alberto Dines na qual ele observa sobre a ficção Água Viva: “Você venceu o enredo (...) A gente vai encontrando a todo instante situações-pensamento. (...) É menos um livro-carta e, muito mais, um livro-música. Acho que você escreveu uma sinfonia” (DINES apud GOTLIB, 2004, p. 33). Tais imagens, a de um “livro-música” bem como a de “situações-pensamento” parecem aqui ilustrar com presteza a experiência que vivencio ao ler os textos de Daniel que se constituem para mim como uma espécie de filosofia-poético-musical. 

Glenn Gold

Clarice Lispector

Relembro o belo prefácio de Durval Muniz de Albuquerque Júnior escrito para o livro Dissonâncias de Foucault, de Daniel. Nele, Albuquerque Júnior observa que ao abrirmos o livro, estamos acionando um “objeto sonoro” (in GOMES, 2012, p. 11). Ao lermos suas dissonâncias percebemos quanta música há em seu pensamento. Se, como nos sugere o prefaciador, há uma música em cada maneira de pensar, bem como uma musicalidade em cada prática filosófica, isso significa que diante dos textos de Daniel, para além do livro, estamos sempre diante de dissonâncias. O texto introdutório observa ainda que o livro merece ser escutado mais do que lido e se o pensamento tem uma musicalidade é porque ele é do campos da estética. E se o professor/pesquisador está voltado para a dissonância, isso acontece porque ele está buscando a meu ver uma sonoridade que destoe do senso comum, o que representa um exercício ideal no que se refere ao estudo de um filósofo como Michel Foucault. As dissonâncias do pensador francês permitem a Daniel, nessa sinfonia, produzir, ou melhor criar e tocar, as suas próprias dissonâncias. E não fortuitamente elas podem ser ouvidas também no texto que agora se apresenta, “Nódulos de Foucault (das possibilidades rizomáticas de ainda ouvi-lo)”. Em uma passagem dele, Daniel aponta para a necessidade de Foucault ser hoje “legitimamente ouvido, em sua lição de dissonância”, isso porque carecemos de “filosofia viva e dissonante” (GOMES, 2018, p.22).

Michel Foucault

O primeiro texto, ou melhor a primeira performance filosófica-poético-musical, de Daniel que conheci e que me cativou de imediato pela sua inventividade foi uma conferência sobre a leitura poética da música de Tom Jobim (abramos um parêntese: curiosamente a poesia, que é a arte da palavra, surge em boa parte das tradições, como canto, como música. Tomem-se como exemplo o lirismo musical dos gregos ou aquele presente nos hinos Rig Veda, ou mais próximas de nós, as cantigas que brotam junto com a língua portuguesa na Península Ibérica nos séculos XII e XIII). A palestra foi proferida na UNESPAR, campus de União da Vitória, há alguns anos.
Pensando ainda na música, imagino o quanto o pensamento-musical de Daniel contribui para fazer repercutir (e o verbo aqui assimila todos os seus sentidos) o pensamento de Michel Foucault. 
Desde que conheci Daniel, chamou-me a atenção, mais do que o texto por ele elaborado, ou mesmo seus conteúdos e referências, a forma como sua escrita/pensamento se dobrava e desdobrava, produzindo, por meio da fricção de objetos muitas vezes disparatados, uma faísca capaz de devolver potência aos objetos contemplados. Em outras palavras, como o seu texto tocava e dançava em mim. Ou seja, para usar uma nomenclatura de Michel Foucault, encantava-me assistir aos movimentos que se dirigiam mais para a sua ficção do que para a sua fábula[1] (FOUCAULT, 2001). Como não lembrar aqui do escritor argentino César Aira, que observou no ensaio “A nova escritura” (AIRA, 2007), a característica principal dos grandes artistas do século XX que seria a capacidade não necessariamente de criar obras, mas de criar procedimentos para que as obras se fizessem sozinhas ou não se fizessem. Pois bem, Daniel parece criar procedimentos de leitura para que sua crítica se faça sozinha. Como a peça “Music of Changes”, de John Cage, evocado por Aira no ensaio citado, a filosofia-poético-musical de Daniel se dobra e desdobra dissonantemente como uma forma ainda possível de se emitir um lance de dados em prol da arte e do pensamento. Poderíamos pensar no texto de Daniel como a peça de um músico de jazz que a partir de uma linha melódica improvisa inventando. O improviso aqui não é sinal de desleixo ou amadorismo, pelo contrário, desdobrar com eficiência o pensamento musical a partir de um fio condutor exige técnica e talento, esforço e sensibilidade. Nasce daí sua forma de ensaio (musical, poético e filosófico). Lembre-se que Adorno aproximou o gênero ensaio da lógica musical em suas Notas de Literatura (2003). Aliás, no texto “Nódulos de Foucault”, Daniel observa que Maria Cristina Franco Ferraz aponta para o relançamento do gesto do ensaio em Foucault. 

John Cage

Pedro de Souza, ao apresentar “Dissonâncias de Foucault”, chamou a atenção para o fato de que para que existir a dissonância “é preciso que haja uma linha melódica dentro e fora da qual alguém destoa” (in GOMES, 2012, p. 07). Não é à toa que no texto de hoje, em questão, Daniel escreve que Foucault precisaria ser legitimamente ouvido, em sua “lição da dissonância”. Daniel, assim, segue o conselho de Pedro de Souza, para quem é preciso continuar a ouvir Foucault. O professor/pesquisador lê assim com-Foucault na medida também em que o trai, como veremos adiante. Em um tempo no qual o senso harmonicamente comum, bem como a ausência de um saber potente parece reger e conduzir a vida, muito aquém das multiplicidades rizomáticas - avessas a qualquer tipo de fundamentalismo -, valorizar a dissonância é uma forma não só de resistência, mas mesmo de sobrevivência do pensar[2]. Fugir da consonância é, assim, um ato de coragem e lucidez. É ainda Pedro de Souza que chama a atenção em Daniel para uma “forma livre de ler um pensador”, “não no conteúdo que pensa, mas no ato de pensar” (in GOMES, 2012, p. 07). É possível que essa forma seja muito pertinente para se pensar com o filósofo, pois como escreveu Oliveira Gomes:

Se queremos absorver a profunda intimidade de Foucault temos que encarar o Fora, desde esta escrita, e isto significa manter também com ele uma certa infidelidade, como poria Alfredo Veiga-Neto, em um ensaio. Significa perceber ainda a adesão íntima de Foucault com Nietzsche; evadir do modelo de identidade representativa que o fixaria num lugar excepcional; aceitar o rizoma contemporizado em Foucault para o presente (GOMES, 2018, p. 20).

Manter uma relação de infidelidade não significa virar ex-foucaultiano, porque Daniel não tem medo de conviver com a ausência de mira, ou de viajar em um barco à deriva. O que Daniel faz é trabalhar com o saber numa zona de perigo – aliás, lugar destinado a Foucault, como sugeriu Blanchot (apud GOMES, 2018), assumindo o desafio de um labirinto sem mapas e sem fins, para desenvolver assim uma perspectiva de audição, propondo a releitura (audição), de um Foucault artista, de um Foucault selvagem.

Maurice Blanchot

Se parte da inventividade e da competência analítica e poética da crítica de Daniel se encontra no ato de manter com o seu objeto uma relação também de infidelidade, isso significa que o prolongamento do pensamento desse mesmo objeto está diretamente ligado à capacidade de multiplicar as ideias, colocando-se a serviço da invenção. Nesse processo, a relação entre o pesquisador/leitor e o autor/filósofo se (in)diferencia. Talvez a metáfora da ligação orgânica entre a máquina e o operador não seja aqui adequada, posto que o universo da produção capitalista é a todo momento problematizado por Daniel. Seria interessante pensar com ele nos fios da marionete que “vistos em rizoma, não remetem ao sujeito que opera o objeto, mas sim que continua prolongando-se na forma das fibras e nervos dos braços do operador até o indiferenciado” (idem, p. 21). Porque a esfera do rizoma, seja em Deleuze e Guattari, ou mesmo em Foucault, está na esfera no descentramento puro, da pura desterritorialização. O cerne em todos os lugares e o centro em lugar nenhum.
Como não lembrar aqui de um livro seu que muito aprecio, refiro-me ao “Saber é Poder”, publicado em 2015. Sobre esta obra, Miguel Sanches Neto aponta para sua estrutura desmontável, como um livro que pode ser lido aos pedaços, “embora tenha uma estrutura geral” (in GOMES, 2015, p. 09). Cada capítulo seria uma espécie de janela que se abre “para outras paisagens intelectuais”. O trabalho de montagem – num certo sentido rizomática - que parece pautar a confecção do livro, variando a todo momento seus olhares e suas paisagens, mas sem perder a coerência do todo, demonstra novamente uma espécie de trabalho musical de composição que encontramos por exemplo no jazz, na sua vocação para a associação inventiva entre as partes que o compõe. Tendo sempre em vista o fio condutor de uma reflexão sobre o poder e o saber, bem como o exercício de uma ethopoiética, a partir de um conhecimento profundo do pensamento de Foucault, Daniel passeia pelo capitalismo norte-americano que se expande pelo mundo com seus códigos e condutas, pela língua como fonte de poder e saber, pelas relações entre o poder e a ciência, a política, o mercado, a educação, etc. Com o filósofo francês, descentralizando a noção de poder, Daniel nos mostra que o poder está em toda a parte, inclusive no saber. E na ethopoiética de Daniel, a poesia merece um lugar de destaque. Em um dos ensaios, intitulado “Ciência ou Culto”, o autor, lendo Edgar Morin, aponta para a necessidade de fazermos valer “cada vez mais um diálogo entre a poesia e a ciência”, já que “a poesia, por ser um discurso que essencialmente não se submete a uma organização política ou interesses do 'ir adiante', apresenta-se como uma possibilidade mais revolucionária de nos envolvermos no mundo” (GOMES, 2015, p. 166). Por ser uma reflexão que integra o último ensaio do livro, antes das considerações finais, percebe-se o lugar destinado por Daniel à poesia em nosso mundo contemporâneo, bem como uma das possíveis conclusões da obra, destinada a estudantes egressos do Ensino Médio e ingressantes no Ensino Superior.

Edgar Morin

Daniel, no texto que hoje se examina, relembra de Glenn Glould a executar o barroco ao piano, alongando passagens, e criando uma multiplicidade de execução e não mera interpretação de Bach. Essa imagem parece traduzir muito melhor a relação do pesquisador ideal com o seu Foucault, talvez Virgilio a guiar o pesquisador na selva escura da contemporaneidade. Essa ideia está para além da mera influência, pois trata-se de um jogo que não se dá sem conflitos e naturalmente seguir Virgilio/Foucault é também e paradoxalmente trair o seu guia - afastado da mera idolatria -, para lê-lo com mais clareza. Como escreveu Padre Vieira: “há de estar apartado dos olhos para se poder ver” (1993, p. 228).  Édipo, sem o distanciamento necessário não enxergava o que o destino lhe reservara. E quando pode enfim ver, por meio também das palavras de Tirésias, que aliás era cego, cegou-se, começando, tragicamente, a ver melhor ou ver mais. Édipo aqui não é o sintoma do homem vacilante, lido a contrapelo com Foucault por Daniel, nas suas Dissonâncias, mas apenas uma imagem suscitada por ambos que nos convida a pensar um pouco mais na relação entre o saber do poder e no poder do saber. Talvez agora, um pouco mais distante de nós, o pensamento de Foucault seja tão necessário e importante, e apartado de nosso olhar, talvez possamos vê-lo melhor, ou ouvi-lo, como sugere Daniel. Observe-se que o se questiona no texto que se examina é o status atual da recepção da obra de Foucault, analisando faltas e excessos para encontrar a justeza do nódulo, para além da recusa, do abandono, ou da museificação do pensador. Contra o achatamento do pensamento chato, Daniel lamenta o assassinato de Foucault em terras brasillis por parte de um neoconservadorismo que reina em nosso país. Trata-se, naturalmente, de uma (re)politização da leitura de Foucault a partir do rizoma. 

Gilles Deleuze

Gostaria de destacar uma coerência que percorre a obra crítica de Daniel. Dos ensaios que compõe “Saber é Poder”, passando pelos textos de “Dissonâncias de Foucault”, uma tendência ao pensamento das multiplicidades, uma vocação para o rizomático, para a resistência, um pendão para o estabelecimento de pontes, relações associativas, entre sistemas culturais dos mais variados, do cinema à pintura, da música à política. Trata-se a meu ver de ampliar as potências do pensamento ao operar procedimentos críticos/criativos que lhe vêm certamente também de Foucault, esse baluarte do poder/saber/inquieto, mas também de uma matemática musical que lhe aguça uma sensibilidade diferenciada, como vimos apontando desde o início.
A imagem do rizoma que percorre o texto de Daniel de certa maneira parece ser a progressão contínua e ininterrupta do rizoma que é o próprio pensamento de Foucault. Ela parece se constituir crítica e poeticamente para tratar não apenas das elucubrações do filósofo francês, mas também da forma como Daniel se relaciona com seu pensamento. Esse é o ponto que insisto. Se as dissonâncias de Foucault são sugestivas ao pensamento de Daniel é porque o seu pensamento-música devolve potência a uma zona não domesticada da filosofia, da história e da arte. 




O saber inquieto de Daniel, naturalmente, demonstra uma preocupação recorrente com as questões docentes que estão diretamente integradas à atuação científica do professor/crítico/pesquisador, cujo trabalho se volta contra uma visão funcionalista atrelada à formação de professores acríticos transformados inevitavelmente em peças dóceis do sistema em que se encontram inseridos. Destaco duas passagens:

Não formamos profissionais para o mercado, ele não dita ou não deveria ditar as regras de uma universidade pública, o mercado que só pensa na perfeição superficial deve absorver a densidade humana que formamos, com ética, com potencial crítico, com deformidades inclusive. Profissionais éticos são mais relevantes que aqueles que encenam a "moral" do negócio (GOMES, 2018, p. 19).

Devíamos formar profissionais pra eles mesmos, profissionais éticos, pessoal e socialmente competentes, interessados em filosofar, em pensar, em desobedientemente tornar complexo, em antiestetizar, em rizomatizar, estereostopicamente, contraproduzir, em questionar seus próprios status e lugares de dizer, e não profissionais individualmente competentes para o mercado, para o oponente potencial das áreas de humanidades, para o inimigo de uma dada tradição da universidade pública, gratuita e de qualidade (potencializadora de perigos para o mercado) (GOMES, 2018, p. 19).

Finalizo saudando o pensamento musical que se depreende do trabalho de Daniel de Oliveira Gomes, lembrando não só do interesse de Foucault pela música, mas também de Daniel, músico exemplar que faz dessa arte uma atividade de pensamento, ao passo que faz de seu pensamento, assim como intentou Foucault, uma arte musical que, em outras palavras, significa, acima de tudo, a poetização da existência.

REFERÊNCIAS:

ADORNO, T. Notas de Literatura. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003.
AIRA, C. Pequeno Manual de Procedimentos. Curitiba: Arte & Letra, 2007.
FOUCAULT, M. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Organização e seleção de textos: Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
GOMES, D. de O. Dissonâncias de Foucault. São Paulo: Lumme Editor, 2012.
____. Nódulos de Foucault (das possibilidades rizomáticas de ainda ouvi-lo). Artigo submetido à banca para ascensão de nível. Ponta Grossa, 2018.
____. de O. Saber é poder. Jundiaí: Paco Editorial, 2015.
GOTLIB, N. B. A descoberta do mundo. In: Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2004.
LISPECTOR, C. Água Viva. 5 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
____. Perto do Coração Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
____. Um sopro de vida (Pulsações). Rio de janeiro: Rocco, 1999.
VIEIRA, A. Sermões

Texto apresentado na Banca para Professor Titular na UEPG, em Ponta Grossa (PR), em julho de 2018, na qual o professor Daniel de Oliveira Gomes ascendeu de nível, a quem agradeço pela oportunidade e parabenizo pela trajetória acadêmica



[1] Relembremos do prefácio de Albuquerque Júnior para as Dissonâncias de Foucault/Daniel. Para ele, um texto de Michel Foucault causa impacto “não apenas pelas coisas que diz, mas pela forma de dizer”. O filósofo é um pensador que impressiona, “não apenas pelo que diz, mas pela forma como o diz”. O que lemos nesse livro, segundo o prefaciador não é o pensamento de Foucault, “são e não são suas ideias retornadas através da voz, da escritura, da sonoridade produzida pelos ensaios de Daniel de Oliveira Gomes” (in GOMES, 2012, p. 11-19).
[2] Lembremos que, em um diálogo entre Foucault e P. Boulez intitulado “A música contemporânea e o público”, publicado na C.N.A.C. Magazine em 1983, Foucault falou sobre a complexidade da música erudita contemporânea e sua relação com os ouvintes em uma época regida meramente pelas leis do mercado. Para ele, não é preciso dar acesso à música rara, mas dar “uma convivência com ela menos determinada pelos hábitos e familiaridades” (2001, p. 394). O filósofo chama a atenção para o fato da evolução da música a partir de Debussy ou Stravinski apresentar correlações notáveis com a da pintura. Observou também que os problemas teóricos que a música colocou para si mesma decorrem de uma interrogação que atravessa todo o século XX: “interrogação sobre a forma, aquela de Cézanne ou dos cubistas, a de Schönberg, e também a dos formalistas russos ou a da Escola de Praga” (2001, p. 391). Penso que a preocupação com uma música de pensamento em Foucault parece se expandir também para o pensamento musical de Daniel.  

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

“Machado”, o romance-ensaio de Silviano Santiago




“Machado”, o mais recente livro de Silviano Santiago, ganhador da 59ª edição do prêmio Jabuti, faz jus ao reconhecimento das qualidades de seu trabalho crítico e literário. O escritor, aliás, neste trabalho borrou com propriedade as fronteiras entre a crítica e a ficção. Com uma epígrafe elucidativa de Jean-Paul Sartre, acerca de seu estudo sobre Flaubert, a obra demonstra o quanto um trabalho ensaístico pode ganhar com uma certa mistura entre a ciência e a arte: “Escritor é sempre um homem que escolheu mais ou menos o imaginário: precisa de certa dose de ficção. No que se refere a mim, encontro-a no meu trabalho sobre Flaubert que, aliás, pode ser considerado um romance”. É exatamente nesse sentido que deve ser lido o livro de Silviano Santiago. É um estudo sobre a obra de Machado de Assis – ou melhor uma aula ou um curso sobre a literatura do Bruxo do Cosme Velho -, mas é principalmente um romance no qual o romancista Silviano forja para o leitor os últimos anos de vida daquele que, sem dúvidas, é um de nossos maiores escritores.

Talvez a última foto
Machado de Assis na revista argentina 'Caras y Caretas', de 25 de janeiro de 1908(Foto: Caras y Caretas/Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional de España)

O ensaio de Silviano Santiago é profundamente criativo ao inventar seus modelos de leitura. De um lado, apresenta uma série de ilustrações que o ajudam conceber um procedimento de análise a partir de recortes de jornal, fotografias da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX, charges, anotações do autor de “Dom Casmurro”, etc. De outro lado, encena seu olhar sobre a obra de Machado a partir de uma ideia de teatro, como se a crítica fosse uma espécie também de encenação. Depois de apresentar uma fotografia de Félix Nadar, de 1854, na qual vemos um Pierrot operando uma máquina fotográfica, Silviano escreve que “o mistério da escrita artística se revela tanto na escolha da pessoa a ser imitada quanto da decisão de representá-la como já sendo parte integrante do corpo do escritor”. 


Félix Nadar - Pierrot, o fotógrafo, de 1854

Como na arte teatral, a arte literária (e tome-se aqui a arte da crítica também), ao representar o sujeito que escreve, está representando um outro também. Se por um lado essa arte ensaística formulada por Silviano está próxima do teatro - ao comparar inclusive Machado com Buster Keaton -, por outro está também próxima do cinema. Para falar da relação entre Machado, José de Alencar e Joaquim Nabuco, o crítico apela para um recurso cinematográfico. Diz ele: “Prefiro descrever com a trucagem usada na montagem cinematográfica os encontros desencontrados das figuras. Esfumam-se três fotos acronológicas e distintas num único e intrigante fotograma. A imagem do abalroamento das sensibilidades afins nos anos 1870 se enriquece com o súbito aparecimento do rosto de Joaquim Nabuco a se sobrepor aos rostos fraternos de Alencar e de Machado (...)”.


Mário de Alencar

“Tudo só vivido seria monótono; tudo só imaginado seria cansativo”. É assim que Silviano Santiago resolve situar sua escritura, no limiar entre o documental e o imaginado, entre o analítico e o literário. Machado é objeto de estudo e ao mesmo tempo protagonista do livro de Silviano que, por sua vez, se apresenta como personagem nesse criativo processo ensaístico: “As estradas das respectivas vidas perdem as balizas cronológicas para que, em rebeldia à sucessão dos anos e dos séculos, se transformem num único caminho, transitável por ele, o protagonista Machado, e por mim, o personagem Silviano (...)”. Aliás, Silviano nasce no mesmo dia em que morre Machado, só que quase 30 anos depois, em 29 de setembro.
No seu romance-crítica, ou melhor na sua crítica-romanesca, Silviano ensaia uma ficção a partir do estudo das últimas cartas que Machado de Assis trocou com seus amigos, em especial Mário de Alencar, que além de possuir as mesmas iniciais de Machado, M. de A., sofria como ele de epilepsia, daí as crises de ambos serem um dos assuntos recorrentes das cartas trocadas por eles. Machado acompanha a polêmica eleição do amigo – que era filho de José de Alencar – para a Academia Brasileira de Letras e os dois colegas trocam, por meio da correspondência, receitas medicinais com a finalidade de amainar suas crises abruptas. Uma delas, aliás, é retratada pelo fotógrafo Augusto Malta, em setembro de 1907, no cais Pharoux, quando Machado - ao recepcionar Paul Doumer, que vinha da Europa -, sofre um ataque em público.

Crise de Machado no Cais Pharoux
Foto de Augusto Malta

A agonia que acompanha Machado é semelhante àquela que segue o Rio de Janeiro antigo à beira da modernização que se intensifica na primeira década do século XX, com a reforma urbana levada à cabo pelo prefeito Pereira Passos. A cidade de Machado parece morrer junto com ele, em meio a espasmos convulsivos de uma crise atroz.
Enquanto o correspondente Mário de Alencar insiste nas suas receitas homeopáticas, Machado desconfia de seus efeitos e insiste que o amigo deve se consultar com o Dr. Miguel Couto, seu médico de confiança. O bruxo acredita no poder farmacológico de algumas substâncias para minimizar as crises e chega a indicar algumas para Alencar. O romancista crê na ciência, mas diante da arte da escrita desconfia do cientificismo literário presente no naturalismo de Zola e ridiculariza a nova moda – como podemos perceber em textos como “O alienista”.

Silviano Santiago

É interessante perceber como Silviano Santiago relaciona a questão da doença de Machado com sua produção literária, observando que a ideia de convulsão está no cerne de sua obra. Segundo ele, a principal eficácia da atitude crítica de Machado de Assis não está no compromisso da escrita romanesca com a história social que lhe é contemporânea, a do liberalismo econômico. Sua poética está fincada na farsa. Na comicidade do “discurso sem pé nem cabeça, no absurdo que se revela verdadeiro por estar colado à desconstrução do saber humano pelo gestual impassível do sofredor e pelas caretas abusivas que ele arma lá dentro, no íntimo do artista, pelo descalabro nervoso que torna o corpo convulsivo, involuntariamente.” Silviano encerra o livro fazendo uma bela análise da relação entre as crises de Machado e o quadro “Transfiguração”, de Rafael Sanzio, obra, aliás, analisada por Stendhal, de quem Machado era fiel leitor. Nunca Machado nos pareceu tão forte e frágil ao mesmo tempo.

Transfiguração, de Rafael Sanzio

Caio Ricardo Bona Moreira

Publicado também no jornal Caiçara, de União da Vitória, em 17 de novembro de 2018.


sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Quadro para Moa do Catendê




A pena é a única arma que tenho
Eis meu lema, eis minha questão...
E se ela fere é porque ferida ensina
que bala, faca ou palavra ruim
Não serve pra combater nosso irmão

Que a mãe África nos perdoe tanto desatino
A manchar com sangue eleitoral
O nome e o corpo santo de seu menino

Na dor somos todos um pouco
Moa do Catendê
E com ele morremos um pouco também
No entanto, lutamos ainda, porém

Que este obituário seja bem mais
Que mero registro necrológico
Posto que como dizia o poeta:
“Toda morte é equívoco”

(É equívoco também
toda briga partidária
quando esta fere um irmão,
ainda mais quando o irmão
só deseja votar em quem deseja,
ou só deseja ainda poder desejar)
Uma vida vale mais do que um voto,
esse pedaço tão sagrado da vida,
que é a carne que chamamos de corpo
um pedaço tão nosso quando do santo
(Mas quão caro vale agora um voto, meu povo)

Moa do Catendê,
Senhor do Afoxé Badauê,
Discípulo de Mestre Bobó,
Na linha direta de Mestre Pastinha,
Ogã de Santo,
Capoeirista,
Compositor,
Bailarino,
Artesão,
Educador.
Foi assassinado por um sujeito
que não concordou com seu voto.
Votar em quem quis,
No dia 07 de outubro,
Foi um direito que lhe tirou a vida.
Agô, meu pai, Agô,
Opanixé ô Kaô,
Agô, por tanto horror.

Como clamou um poeta baiano
Com a atualidade de tempos atrás:
“Senhor Deus dos desgraçados,
Dizei-me, vós, senhor Deus!
Se é loucura ou se é verdade
Tanto horror perante os céus!”
É o mesmo poeta que continua
A dizer em solo baiano
Terra por onde escorreu o sangue de Catendê:
“Ó mar porque não apagas
Co´a esponja de tuas vagas
De teu mando este borrão?
Astros! Homens! Tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!”

Está em luto todo o ilê
Está em luta todo o ilê!
No axexê de Mestre Catendê
Velam por ele Zumbi,
“Comandante guerreiro,
Ogunhê, ferreiro-mor capitão!”
Velam por ele também seus orixás,
Quanto mais há de vir,
Facada ou tiro de bala

(Ou atropelamento, espancamento,
Ameaça, suástica gravada à canivete,
Entre tanto mais)
Quanto mais?
Quanto mais?


sábado, 6 de outubro de 2018

Bernardo Carvalho e o horror da guerra e do amor





A violência é o eixo em torno do qual giram as duas grandes questões abordadas por Bernardo Carvalho em seu mais novo romance. Tanto a relação amorosa entre dois homens (ou três, já que estamos diante de um triângulo amoroso), quanto conflitos envolvendo o terrorismo contemporâneo estão atravessados pela perversidade em “Simpatia pelo Demônio”, lançado pela Companhia das Letras, em 2016.
Considero Bernardo Carvalho um dos escritores mais importantes de sua geração. Particularmente, um dos cinco prosadores brasileiros da atualidade que mais têm chamado a minha atenção nos últimos anos. Entre um curioso livro de contos intitulado “Aberração” (1993) e os mais recentes “O Filho da Mãe” (2009) e “Reprodução” (2013), o autor produziu uma série de romances que o consolidaram entre os melhores da literatura brasileira contemporânea. Refiro-me a pérolas como “Nove Noites” (2002) e “Mongólia” (2003) - fundamentais para quem deseja conhecer sua obra -, bem como outros títulos: “Onze” (1995), “Os Bêbados e os Sonâmbulos” (1996), “Teatro” (1998), “As iniciais” (1999) “Medo de Sade” (2000) e “O sol se põe em São Paulo” (2007) ("Onze", "As iniciais" e "O sol se põe em São Paulo" ainda não tive a oportunidade de ler, estão na fila). Bernardo Carvalho é também jornalista da Folha de São Paulo, onde escreve sobre arte em geral. Parte de sua produção jornalística está reunida no livro “O mundo fora dos eixos” (2005), composto por crônicas, resenhas e demais ficções.  


 “Simpatia pelo Demônio” possui um enredo complexo e cheio de nuances, como é comum na obra do autor. O livro apresenta a história de Rato, funcionário de uma agência humanitária nos Estados Unidos, que é convocado para viajar até uma zona de guerra para entregar o resgate para um grupo terrorista com a finalidade de libertar um refém. A primeira parte da trama é escrita com o ritmo tenso e veloz que faz lembrar os filmes de guerra passados em alguma zona do oriente como a Síria ou o Iraque. No hotel em que se hospedara, Rato vivencia um ataque terrorista que fará contraponto a um outro tipo de violência, refiro-me à perversidade de uma relação amorosa que será o foco do romance. O protagonista, que escrevera uma tese sobre a violência em zonas de conflito, acaba sofrendo bem mais com as adversidades do amor. Vivendo uma crise no relacionamento com a esposa, Rato se apaixona por um neurocientista mexicano, o Chihuahua, também chamado no livro de raposinha. Esta personagem, profundamente narcisista, seduzirá o protagonista e com ele viverá um caso doentio que, aos poucos, revelará ao protagonista a perversidade que pode morar no amor, com seus jogos cruéis e repletos de mentiras. Chihuahua vive com um ator, chamado no romance de Palhaço, uma personagem que contribuirá para fazer do livro o palco de uma zona de conflito não apenas social, mas também amoroso.
Após a leitura do livro, uma espécie de parábola sem moral (os personagens com nomes de bichos sinalizam para essa perspectiva), fica clara a proposta de Bernardo Carvalho que é a de, em tempos de guerra, relacionar a violência social - centrada na questão do terrorismo contemporâneo - a uma violência muito mais sutil, mas não menos agressiva que é a violência do amor. Tal violência não está ligada apenas à agressão física – que por sinal aparece nas últimas páginas do livro, constituindo-se, também como um ato de barbárie -, mas principalmente à relação cruel entre o desejo e a perversão que – inspirada, por exemplo, no pensamento de Georges Bataille, aprofunda uma reflexão sobre a dimensão monstruosa do amor. Uma questão que poderia ser traduzida pela seguinte pergunta: O que fazer depois da catástrofe de um amor que nos destrói?

São Cristóvão Carregando o Menino Jesus, Hieronymus Bosch, 1490, óleo sobre tela, 113 x 72 cm. Museum Boijmans van Beuningen.
A capa do livro é um detalhe do quadro. Em um dos capítulos do livro o narrador analisa o quadro relacionando-o com o enredo do livro

Rato vive um paradoxo no livro, pois ao chegar aos cinquenta anos, com a falência de seu casamento, descobre que o novo amor lhe dá vida à medida que lhe tira o equilíbrio, a ordem, a razão. A personagem precisa do amor de Chihuahua para continuar viva, mas é esse mesmo amor que, com seus jogos mortais, lhe destrói o ego e o coração. Aliás, o autor, em uma entrevista, observou que a personagem Chihuahua tem para ele muito a ver com o mundo de hoje, com o jeito como nos relacionamos com o próximo. Ou seja, com a incapacidade de nos relacionarmos com o outro. Chihuahua alimenta o ego de Rato para logo depois diminui-lo, numa espécie de jogo animal no qual o rato é brinquedo de uma raposa. Segundo Bernardo Carvalho, o Chihuahua tem uma relação narcisista com o mundo, uma relação na qual o outro não existe de fato. Brotam daí todas as manipulações possível que podem alimentar uma relação doentia.
Assim como o livro de Bernardo Carvalho aborda as desrazões do amor, como palco de uma espécie de conflito bélico, acaba fazendo também o inverso ao abordar as desrazões da guerra, como palco de uma fé ou de um amor completamente irracional. O autor permanece, assim, profundamente contemporâneo. Como em outros livros seus, as identidades são postas em suspensão, e as estabilidades caem por terra, em um jogo no qual os narradores ou sujeitos da narrativa não são senhores de si, sendo apresentados com seres desterritorializados ou títeres de um teatro criado por eles mesmos.

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 06 de outubro de 2018.