sábado, 23 de dezembro de 2017

Carta-sapato para o Natal de 2017 e ano de 2018




Em 26 de dezembro de 1979, Henfil escreveu para a sua mãe uma daquelas famosas cartas que viriam a ser publicadas em jornais e revistas da época e depois reunidas em livro. Nela, ainda em plena ditadura militar, o cartunista e jornalista realizava um comovente balanço do ano que passara ao passo que fazia da carta um canto de esperança para o tempo que estava por vir: “Mãe, aqui estou eu, em mais um Natal, fazendo desta carta meu sapato colocado na janela”. Na sequência, ele conclui ter sido um bom moço naquele ano: “Eu acho que fui muito bom. Eu fui solidário com todos os meus irmãos Betinhos (...). Voltei pro país que me expulsou como todos os Juliões. Dei murro em ponta de faca como todos os Marighellas. Cantei as prostitutas, as mulheres de Atenas e joguei pedra na Geni como todos os Chicos Buarques. Aspirei cola como todos os pixotes. Fui negro, homossexual, fui mulher. Fui Herzog, Santo Dias e Lyda Monteiro”. A carta é encerrada de forma comovente: “Vou fechar os olhos, vou dormir depressa. Esperando que meia-noite todos entrem pela minha janela. Me façam chorar de alegria, que eu quero viver! A bênção, Henfil”. O artista faleceria alguns anos depois.
Não sei o motivo de ter lembrado desta carta quando esboçava o último texto que escrevo para este jornal no ano de 2017. Talvez pela comoção que geralmente me invade nesse período do ano, a mirar com uma certa e triste alegria desde os trenzinhos de papai Noel a trafegarem pela cidade até o perfume da árvore chamada Dama da Noite (cestrum nocturnum), que floresce nessa época, perfumando as noites de dezembro e janeiro. Talvez a carta-sapato de Henfil nos traga ainda um ar de luta e esperança tão necessários em tempos politicamente obscuros. Paradoxalmente, olho para esse tempo e nele encontro um dos mais bonitos de minha vida, iluminado pelo sorriso de uma filha, que chegou há quase dois anos para alegrar nossa casa e transformar nossas vidas.
2017 foi intenso, tão parecido e diferente dos anos anteriores que só nos resta fazer um balanço e pendurar aqui nossa carta-sapato para o ano vindouro. Pensemos no tema que nos move neste espaço (o jornal me solicita reflexões sobre arte e literatura e tento, então, humildemente fazê-las). 
Na literatura, em 2017, encantei-me com o jovem escritor norte-americano Patrick de Witt, no livro “Os Irmãos Sisters”, que retoma o gênero faroeste, atualizando-o e transformando-o. Degustei o livro “Limonov”, de Emmanuel Carrere, pensando com Dostoiévski que “a verdadeira verdade é sempre inverossímil”. Diverti-me com o livro de crônicas “Coisas Nossas”, do grande Luiz Antonio Simas. Apreciei os mais recentes e esperados romances de Milton Hatoum (“A noite da Espera”) e Daniel Galera (“Meia-noite e vinte”). Conheci um pouco da cultura dos índios Arawetés lendo o famoso estudo de Eduardo Viveiros de Castro, “Araweté, um povo tupi na Amazônia”. Surpreendi-me com o romance-policial “Macumba”, de Rodrigo Santos, que discute a intolerância religiosa em nosso país. Lamentei com o escritor alemão W.G.Sebald os horrores da guerra, lendo “Os imigrantes”. Acertei as contas com minha consciência ao ler uma obra obrigatória pela qual não havia ainda me aventurado, “O coração das trevas”, de Joseph Conrad. Impressionei-me com o inquietante “Conto da Aia”, de Margareth Atwood, que me foi emprestado por uma aluna. Viajei pelas páginas de autores que aprecio como o argentino César Aira, o russo/ucraniano Gógol, Jorge Amado, etc. Poderia citar outros companheiros de viagem, mas o tempo é curto.
Espero que 2018 seja um ano feliz, repleto de realizações e boas leituras, afinal de contas os bons livros nos ajudam a viver melhor. Que em 2018 impere a paz e o amor na vida de todas as pessoas e também nos noticiários. Que as más notícias não cheguem tanto. Que possamos sorrir e dançar mais e que essa dança seja tão bela quanto aquela que assisti com minha esposa há alguns dias no espetáculo “Elementos”, do Grupo Corpo & Dança. Quanta beleza estava posta em movimento no Cine Ópera naquela noite. Que venha 2018 e que ele possa dançar em nós. E que na noite de Natal, como Henfil, possamos fechar os olhos esperando que à meia-noite todos entrem pela nossa janela e nos façam chorar de alegria, posto que todos queremos viver. 


Texto publicado originalmente no jornal Caiçara, 
em União da Vitória-PR, em 23 de dezembro de 2017. 

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Concerto n.1 para Faca e Oboé





observações sobre o livro "5 bonecas de olhos vazados", de Rubens Francisco Lucchetti, após a leitura.

Um narrador que passeia, feito drone, pelas cenas de um livro, perscrutando as personagens e suas ações, insinuando-se por entre os parágrafos, dirigindo-se ora ao protagonista, ora aos leitores. Esse intenso personagem, que é o próprio narrador, revela ao longo das páginas seus medos, angústias de escrita, gostos de arte e sua história como leitor. Personagens importantes de outras obras do mesmo autor criam um caso exemplar do que poderíamos chamar de auto-intertextualidade (poucos escritores conseguem fazer isso com destreza). A incrível capacidade de transformar em ficção a realidade e a realidade em ficção. Terror/suspense/policial em pura fricção. Personagem/narrador/voyeur/leitor, Rubens se autonomeia pelo menos uma vez ao longo do livro “5 bonecas de olhos vazados” - (trata-se de uma referência à realidade ou de mais um elemento ficcional falando de um outro personagem que é o próprio Lucchetti? Tudo parece se fazer imagem e ficção). Passagens de sua vida são reveladas no livro, mas onde começa e onde termina a realidade? O romance/jogo acontece em meio a uma série de referências à cultura literária e cinematográfica, clássica e popular, e entre ilustrações que fazem lembrar a criativa relação texto/imagem que encontramos em livros como “A misteriosa chama da rainha Loana”, de Umberto Eco, uma homenagem à própria literatura. Um livro para ser lido ao som eletrônico de Daniel Piquê, aliás personagem do livro. Outras referências musicais são apontadas ao longo da trama, basta seguir as sugestões do próprio autor. Curiosamente o tempo do livro parece acompanhar o tempo das músicas. Procedimento criado de forma consciente ou inconsciente? Não importa. Se há ou não uma planta-baixa para a obra, o que importa é que Rubens Francisco Lucchetti se revela um mestre na arquitetura literária. Provavelmente o livro mais bem escrito de sua vida. Rizomático, o narrador divide com os leitores os múltiplos caminhos a serem seguidos durante a própria escrita. Capítulos como o do Sonho – um dos últimos do livro - são dignos de uma obra prima. Segundo Lucchetti, “5 bonecas de olhos vazados” é uma homenagem à Mary Shelley e sua obra Frankenstein. "5 bonecas de olhos vazados" (que nome maravilhoso) é um dos livros mais curiosos que li nos últimos anos. Ele ainda vai dar muito o que falar!
obrigado, mestre!

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

R.F. Lucchetti: O Lobisomem de Jardinópolis



Se Curitiba tem o seu vampiro, Dalton Trevisan, bem como o seu Frankenstein, Valêncio Xavier, Jardinópolis, em São Paulo, tem o seu Lobisomem, Rubens Francisco Lucchetti, considerado por Valêncio um dos escritores mais importantes do mundo. Acreditem se quiser, Lucchetti, no auge dos seus 87 anos, é autor de mais de mil e quinhentos livros (a maior parte deles publicada com pseudônimos ou heterônimos), sem contar umas trezentas HQs, vinte e cinco roteiros de cinema, entre outras produções. A cifra extraordinária já é suficiente para nos lançar a busca de seus livros que, curiosamente, são difíceis de serem encontrados. O jeito mais fácil talvez seja entrando em contato com o próprio pelo facebook. A maior parte dos títulos disponíveis são vendidos diretamente por Lucchetti, que os envia aos compradores com um carinhoso autógrafo. A sua obra foi para mim uma grande descoberta em 2017. Como é que eu não havia lido esse gênio antes?



Lucchetti é um mestre na literatura de Horror. Leitor de Bram Stoker, Edgar Alan Poe, entre outros, é considerado o papa da “pulp ficcion” no Brasil. O termo faz referência às revistas publicadas com papel barato que se popularizaram no século XX, geralmente vendidas em bancas de jornal. Gêneros como o de terror, suspense e policial foram bastante explorados por essas revistas. Com o tempo, a expressão passou a designar um gênero menor, uma espécie de subliteratura. Não gosto de pensá-la assim. Prefiro mirá-la a partir da potência imaginativa que levou Quentin Tarantino e Charles Bukowski a inspirarem-se no universo pulp.


A obra “As máscaras do pavor”, por exemplo, se passa em meados da década de 70, em Los Angeles, onde começam a ocorrer uma série de assassinatos que parecem ter sido cometidos por personagens clássicos, como o Drácula, o Fantasma da Ópera, Jack, o Estripador e o Lobisomem. Nesse sentido, o livro é uma homenagem ao cinema e à própria literatura. “Os amantes da Sra. Powers”, inspirado na literatura Noir, inicia-se com um misterioso atropelamento que será presenciado pelo detetive Bernard Calhoum, que se envolverá ao longo da trama em uma série de peripécias. A literatura Noir, com suas belas e sensuais personagens femininas, bem como com seus detetives de chapéu e cigarro na mão, geralmente mistura terror, suspense e policial e se passa em ambientes noturnos e ruas desertas. Em “O abominável Dr. Zola”, narra-se a apavorante história de um louco cientista que usava em suas macabras experiências seres humanos. Dr. Zola, cujo nome é possivelmente inspirado no escritor naturalista Émile Zola, criou um lobisomem a partir de uma inseminação artificial. Outros títulos poderiam ser citados como “O museu de horrores” e “5 bonecas de olhos vazados”, este lançado há alguns dias. No prelo, está o livro “Poemas de Vampiros”, a sair pela editora Clepsidra. Boa parte da obra tem sido publicada pela Editorial Corvo.



Quando assisti ao “O segredo da Múmia” (1982), de Ivan Cardoso, nem imaginava que o roteiro era de R.F.Lucchetti. Clássico brasileiro do gênero “terrir” (por misturar a comédia e o terror), o filme conta também a história de um cientista louco que, neste caso, descobre uma poção capaz de dar vida eterna aos seres humanos, usando uma múmia que, voltando à vida, ameaça os vivos. Outro filme conhecido do mesmo diretor, com roteiro de Lucchetti, é o “Escorpião Escarlate” (1990), que homenageia filmes de aventura e suspense, inspirando-se em antigos programas de rádio. Parceiro criativo de ilustradores como Nico Rosso, Lucchetti criou diversas revistas de histórias em quadrinhos e roteiros para José Mojica Marins, o famoso Zé do Caixão, seu amigo e companheiro na arte do Horror.


Como escritor, Lucchetti permanece fiel a si mesmo. Na folclórica história do lobisomem, um sujeito aparentemente comum, em uma noite de lua cheia, transforma-se em uma horrenda figura monstruosa, meio homem meio bicho, para assustar as pessoas e/ou cometer suas aberrações. Imagino Lucchetti, quando anoitece, trancando-se em seu escritório e deixando escapar de sua imaginação, em todas as noites, suas assustadoras histórias. Quando amanhece, ele adormece seus monstros e retorna à vida comum. É o lobisomem de Jardinópolis.    


Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória - PR, em 16 de novembro de 2017.


segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Palavra de Índio: uma reflexão sobre as Poéticas Ameríndias





A poesia é também coisa de índio e, no entanto, muito pouco se fala das manifestações poéticas praticadas pelas mais variadas tribos indígenas que povoam o Brasil. Aprende-se na escola que o português, logo aqui chegado, em 1500, registrou na “Carta do Achamento” suas primeiras impressões sobre o nativo brasileiro, estranho aos olhos do europeu pelo seu modo de vida e, principalmente, por não sentir vergonha alguma de suas vergonhas. Aprende-se também que, desde então, o índio tornou-se personagem dos mais variados e fantasiosos textos literários, elevando-se no século XVIII a símbolo de luta da elite mineira contra o colonialismo europeu e à herói nacional no contexto de Independência no século XIX. Em muitas obras poéticas deu-se voz ao índio, no entanto, essa voz, trazendo na maior parte das vezes um sotaque europeu, pouco traduziu a imensa riqueza e complexidade de sua cultura. Ao invés de darmos voz ao índio – algo que ele inevitavelmente possui – penso que deveríamos ouvi-lo.



Tenho me interessado pelas Poéticas Ameríndias, que se caracterizam como um conjunto de textos artísticos que brotam da oralidade indígena. Geralmente, são produções culturais relacionadas a cosmogonias, ritos sagrados e festividades das tribos. Nesse contexto, a arte não está desvinculada do universo religioso, pois para os índios não há uma separação entre arte e vida, ou entre arte, religião e vida. Antonio Risério, no livro “Textos e Tribos”, problematizará a noção de Poética indígena, pois para ele os conceitos de poesia e literatura são ocidentais e não traduzem a experiência cultural da palavra operada pelos índios. Ele opta pelo conceito de “textualidades extra-ocidentais”. Para Risério, a marginalização dos textos indígenas e negroafricanos, no Brasil, é um reflexo do “estatuto subordinado dessas culturas no espaço mental brasileiro – reflexo, por sua vez, do lugar ocupado por essa gente, e pela maioria dos seus descendentes mestiços, na estrutura da sociedade nacional”.



Prefiro pensar que os índios, desde muito antes da invasão branca, já eram também poetas. Isso porque em muitas culturas ameríndias o trabalho artístico com a palavra assemelha-se de forma impressionante à atividade que caracterizamos como poesia. Os mbyá-guaranis, situados entre o Paraguai, Uruguai, Argentina e sul do Brasil, por exemplo, chamam de “ñe´eporã” o conjunto de belas palavras - ou palavras adornadas - usadas em seus cantos religiosos. Em tais cantos podemos encontrar expressões metafóricas, polifônicas, léxicos diferenciados, ou seja, elementos encontrados com frequência em textos poéticos da nossa cultura. Usam, por exemplo, a expressão “pequena flor do arco” para falar de uma flecha, ou “esqueleto da bruma” para falar de um cachimbo (os exemplos são dados por Pierre Clastres, em seu livro “A Fala Sagrada”, que compila mitos e cantos sagrados dos índios guaranis). As “ñe´eporã” teriam como objetivo, antes de comunicar algo ou descrever, voltar o seu olhar para a beleza da própria linguagem, intenção maior da poesia também para nós. E essa experiência para os mbyá-guaranis é profundamente sagrada. Exatamente por isso, na maior parte das vezes, o acesso a tais textualidades é vedado ao homem branco.  


Nos anos 50, o antropólogo León Cadogan, depois de salvar um índio de uma condenação injusta, recebeu a permissão dos mbyá-guaranis para ouvir e registrar os cantos chamados “Ayvu rapyta”, que descrevem a origem de todas as coisas depois do surgimento do deus supremo e das palavras. No mito, Ñamandu desdobra-se de si mesmo como uma flor e é alimentado por um beija-flor com alimentos sagrados. Brota, então, a fonte da fala, que para os guaranis é a origem de tudo. E o poder que esse grupo dá à palavra é simplesmente comovente. Alma e palavra são elementos indissociáveis, traduzidos na expressão “ñe´eng” (Palavra-alma). Por meio da palavra, a divindade faz fecundar o ser, portanto a procriação para eles, como sugeriu Bartolomeu Melià, é um ato poético-religioso e não erótico-sexual. O nome de uma pessoa, por exemplo, é a própria pessoa e muitas vezes um xamã usará isso a favor de um doente, trocando um nome por outro para espantar a morte. Aliás, os xamãs, transmissores de vozes divinas, pontes para o além, são verdadeiros poetas que usam as palavras e as músicas para curar. Para os mbyá a cultura branca não sabe usar de forma adequada a linguagem. Para eles, não levamos a sério as palavras e seus poderes. É por isso que quando um índio nos dá sua palavra está nos dando a sua alma. Quantas coisas temos a aprender com eles.



Alguns poetas e tradutores contemporâneos têm se interessado pelas Poéticas Ameríndias, traduzindo cantos indígenas e resgatando, assim, parte de uma sabedoria que ainda está para ser explorada. Falo do trabalho de Josely Vianna Baptista, que traduziu criativamente os cantos do “Ayvu rapyta” no livro “Roça Barroca”. Falo de Alberto Mussa que recriou mitos fundacionais da cultura Tupinambá, em “Meu destino é ser onça”. Falo do poeta português Herberto Helder, que traduziu cantos caxinauás. Falo do portunhol selvagem de Douglas Diegues. Falo de Eduardo Viveiros de Castro, seu perspectivismo, e seu estudo dos cantos xamânicos arawetés. Escritores indígenas têm também se destacado na literatura brasileira como Kaká Werá Jecupé e Daniel Munduruku. Outros têm lutado bravamente por direitos e causas socioambientais, como Davi Kopenawa. São promotores de sabedorias milenares. Que possamos ouvir suas palavras adornadas a nos ensinar que a poesia não pertence apenas a nossa cultura, mas que tem em outras sua morada. Conhecer as palavras sagradas e poéticas dos índios talvez seja um passo importante na luta contra o seu extermínio. O nome deste jornal nunca soou tão poético e profundo para mim quanto hoje.



 Publicado no jornal Caiçara, em União da Vitória,
03/11/2017. As imagens são de Eduardo 
Viveiros de Castro. retratam os Arawetés.