sexta-feira, 24 de agosto de 2018

O romance-música de Verginia Grando: apontamentos sobre “Se nada mais der certo eu não tenho plano B”




O livro “Se nada mais der certo eu não tenho plano B” (Arte & Letra, 2016) marca a estreia literária da escritora curitibana Verginia Grando, que já possui experiência no cinema e na publicidade. Em literatura, nem sempre as estreias são bem sucedidas, pois geralmente o “primeiro filho” é criado com os erros que decorrem da inexperiência daqueles que o geraram. Não é o caso da autora, pois sua obra primogênita já sugere uma maturidade peculiar daqueles que desde o começo demonstram que estão no caminho certo. O fato não é comum, mas acontece. Talvez essa maturidade venha de sua experiência na produção de roteiros publicitários e cinematográficos.
O romance narra uma semana na vida da escritora G., desde que ela recebe o telefonema de uma editora até o dia da reunião que definiria a publicação ou não de seu livro. Encantam-me essas obras cujos personagens são artistas em busca da própria obra. É o que vemos, por exemplo, em “A louca da casa”, da escritora espanhola Rosa Montero, ou no filme “Oito e Meio”, do italiano Federico Fellini. A protagonista do romance de Verginia Grando tem apenas trinta e cinco anos, mas uma profundidade psicológica impressionante e a impressão que se tem dela, ao lermos o livro, é que estamos mesmo diante de uma pessoa, o que não acontece com todos os personagens que nos são apresentados por contos, novelas ou romances. Ao longo da obra, paralelamente à questão do livro escrito por G. - sobre o qual a única coisa que sabemos é que ela o enviara a uma editora -, muitos fatos vão sendo intercalados: o término mal resolvido de um relacionamento; reencontros com pessoas que passaram pela vida de G. – como casos amorosos que vão reacendendo antigas paixões -; a revisão de questões familiares, como a relação difícil com a mãe e com a irmã; o interesse e o mergulho na própria autodescoberta e transformação da personagem; as incertezas em relação ao futuro da escritora etc.


“Se nada mais der certo eu não tenho plano B” possui uma bela trilha sonora - apontada nos episódios da trama - que vai de um disco clássico de Elton John até um álbum de Nick Cave and the Bad Seeds, passando por Chet Baker e Clube da Esquina. O que faz do romance uma espécie de obra musical, não apenas pelas músicas citadas em meio às cenas, mas também por uma musicalidade inerente ao ritmo na própria narrativa. Tudo isso pontuado por uma série de pequenos e belos detalhes que marcam a observação minuciosa da escritora-protagonista. Refiro-me, por exemplo, ao encontro de G. com uma cadeirante no ônibus. Nesta cena, o olhar trocado entre duas personagens estabelece uma ponte entre dois seres humanos, mostrando a vocação para a comunhão que há em nós. Outros detalhes: uma joaninha prestes a morrer queimada em uma lamparina até ser salva pela jovem, as gotas de chuva escorrendo na janela de um restaurante, uma garça que passa voando baixo “rente ao vidro que ainda está salpicado de gotas de chuva” etc. Penso, como Roland Barthes, que um romance se faz sempre a partir de um conjunto de fragmentos, atos mínimos da enunciação, que vão preenchendo as páginas e alimentando a história que se conta. Trata-se, como sugeriu George Simmel, de “ver no individual o universal”. Há no livro de Verginia Grando uma dimensão profundamente poética na disposição de seu olhar, traduzida na sensibilidade de G., sua protagonista, aberta para esses pequenos detalhes.
Sobre a quantidade de reflexões filosóficas que povoam o livro, bem como as frases poéticas que brotam da boca de seus personagens, isso não prejudica o andamento de sua narrativa. Pelo contrário, amplificam a dimensão poética e reflexiva da obra. Uma frase como: “- Eu estava desenhando teus detalhes dentro de mim e desejando que o teu ar nunca acabe”, proferida por um dos personagens, poderia ser equivocadamente interpretada como inverossímil, exagerada, pretensiosa. No entanto, não esqueçamos que a literatura goza de licenças poéticas. Caso contrário, um romance como “Lavoura Arcaica”, de Raduan Nassar, não poderia conter os diálogos que apresenta. E no entanto, são justamente eles que fazem a beleza da composição de seus personagens.  


Logo no início da obra, deparamo-nos com as lembranças de infância evocadas por G., na descrição de uma atividade das aulas de inglês. Trata-se daquele exercício escolar em que as pessoas devem completar as lacunas usando palavras que definam o sujeito: “I am..., My name is... I like...”. Essa reminiscência serve para a protagonista pensar na sua relação com a própria literatura, entendida como um exercício no qual cabe ao escritor preencher com palavras o vazio da página: “Ainda hoje ela não conseguia colocar palavras no lugar daqueles espaços vazios”. A frase sugere não apenas a dificuldade de encarar o fantasma da escrita literária, mas também e principalmente a dificuldade de manifestar no texto sua intimidade, pois independentemente do fenômeno literário se caracterizar como uma arquitetura textual, a matéria-prima que lhe dá base e sustentação será sempre o sentimento, a sensibilidade, a pulsão, as paixões, elementos que fazem parte daquele lado misterioso que nunca conseguimos domar completamente sem que corramos o risco de nos transformarmos naquilo que não somos. Isso porque no fundo no fundo da vida, para além dos erros e acertos, quase nunca temos um plano B.      

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 18 de agosto de 2018.

sábado, 4 de agosto de 2018

Entre a palavra e a fotografia: Conversando na Sicília com Elio Vittorini




Diante do livro “Conversa na Sicília”, de Elio Vittorini, talvez fosse mais pertinente perguntarmos como a obra foi montada e não como ela foi escrita. Naturalmente, um romance se faz com palavras, mas nesse caso o conjunto de fotografias que o acompanham contribuem significativamente para fazer dele o que ele é. Isso porque é somente no momento em que as imagens são dispostas na mesa de montagem, em diálogo permanente com o texto, que o romance alcança sua potência poética e política.
Elio Vittorini, que viveu entre 1908 e 1966, escreveu boa parte de sua obra no pós-guerra e, como um bom militante antifascista, fez da literatura um instrumento de denúncia e reflexão social. Isso sem perder a qualidade estética que fez dele um renovador do romance italiano no contexto do neo-realismo.

Elio Vittorini

Lançado inicialmente em capítulos, no final dos anos 30, na revista “Letteratura”, e depois na íntegra em livro, em 1941, “Conversa na Sicília” ganhou a versão ilustrada apenas em 1953, organizada pelo autor com fotos de Luigi Crocenzi e Giacomo Pozzi Bellini. A versão brasileira, publicada pela Cosac Naify (2002), foi traduzida por Valêncio Xavier e Maria Helena Arrigucci. Aliás, Valêncio, em uma entrevista concedida a Joca Reiners Terron, ao avaliar sua obra, lembrou do fascínio nele exercido pelo romance de Vittorini, cujas fotografias lhe ensinaram o papel que a imagem tem que ter no texto: “ser ao mesmo tempo uma coisa alheia, mas inteirada”. Creio que a expressão “alheia, mas inteirada” esteja ligada ao fato da fotografia estar e não estar relacionada ao enredo do livro, ou seja, não é apenas ilustrativa, mas se lança em permanente diálogo – inclusive enigmático – com a obra escrita. Só encontrei essa experiência, além de Elio Vittorini e Valêncio Xavier, em livros do alemão W.G. Sebald, como “Os emigrantes” ou “Austerlitz” e do italiano Umberto Eco, como “A Misteriosa Chama da Rainha Loana”. A única maneira do leitor compreender essa dimensão “alheia, mas inteirada” das imagens na obra de Elio Vittorini é lendo seu livro.

Luigi Crocenzi

 O romance narra a história de um italiano que, depois de receber uma carta de seu pai, volta para sua cidade de origem para visitar a mãe. Para isso empreende uma viagem que lhe permite captar cenas cotidianas de um povo humilde e oprimido pela vida. O narrador, durante a viagem, ouve histórias de pessoas comuns. Quando chega na vila montanhosa de sua infância, no sul da Itália, é levado por sua mãe solitária a um passeio pela comunidade. Nós, leitores, entramos com eles nas casas de proletários que povoam o livro com suas histórias aparentemente banais. Mas por trás da aparente banalidade o livro vai construindo uma poesia muito singular e típica do neo-realismo italiano, uma poesia que podemos encontrar, por exemplo, no cinema de Roberto Rosselini, Victorio de Sicca e Luchino Visconti.    



O livro possui uma linguagem precisa, seca e agreste – como sugeriu Bernardo Carvalho – o que faz lembrar de um escritor como Graciliano Ramos que, na mesma época estava escrevendo “Vidas Secas”, no Brasil. Aliás, observe-se que Vittorini publica os primeiros capítulos do livro justamente em 1938, ano em que Graciliano lança seu clássico romance. Bernardo Carvalho, em uma crítica, observa que em “Conversa na Sicília” estamos diante não do retrato sociológico de uma realidade, mas da ideia de que “a riqueza desta realidade para a literatura depende da subjetividade do olhar lançado sobre ela”. O narrador, à medida que passeia por sua vila de origem, revisita principalmente a sua infância, em um tempo redescoberto.  



O procedimento de montagem do livro, no jogo de uma relação dialética entre texto e imagem, entre palavras e fotografias - que é um jogo cinematográfico por excelência -, certamente mereceria uma análise mais ampla. Cito apenas alguns exemplos aqui. Em uma passagem, depois de assistir a sua mãe aplicar injeções em algumas mulheres, o narrador reflete sobre o corpo feminino e a descoberta da sexualidade, na infância. O texto é acompanhado da fotografia de uma de Vênus de Giorgione (da pinacoteca de Dresden), da imagem de uma mulher desconhecida, e de um postal no qual se vê a escultura de uma mulher nua. Em meio à narrativa do livro, vão aparecendo fotos alheias, mas inteiradas, que vão construindo anacronicamente um inusitado diálogo com o que é contado: a foto de um menino da Sicília, do vulcão Etna visto do trem Messina-Catânia, de um homem nas montanhas Madonie, de um monumento, de uma mãe, de um doente, de uma vila, de crianças na cidade de Siracusa, etc.


Segundo o próprio autor, assim como o protagonista do livro não é autobiográfico, a Sicília da obra não é a Sicília: “somente porque o nome Sicília me soa melhor do que o nome Pércia ou Venezuela”. Naturalmente, a frase com sabor de ironia mostra a dimensão simultaneamente local e universal do livro. É sim uma obra sobre a Itália, em uma época bélica de pobreza e desesperança, mas é principalmente um livro sobre o triste e porque não dizer belo reencontro com a infância em uma época de não-esperança, questão permanentemente atual. As fotografias do livro mostram bem a marca de seu tempo gravada na aridez de seu cenário e no semblante seus personagens.

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), no dia 04 de agosto de 2018