quarta-feira, 30 de abril de 2014

O DOUTOR VERSUS O CHARLATÃO



Flora Süssekind, em um de seus "Papeis Colados", ao procurar determinar em que período se deu o início da “crítica moderna” no Brasil, observa:

(...) em sintonia com as primeiras gerações de formandos das faculdades de Filosofias, criadas nos anos 1930, percebe-se em meados da década de 1940 tensão cada vez mais evidente entre um modelo crítico pautado na imagem do homem de letras, do bacharel, e cuja reflexão, sob a forma de resenhas, tinha como veículo privilegiado o jornal; e um outro modelo, ligado à especialização acadêmica, o crítico universitário, cujas formas de expressão dominantes seriam o livro e a cátedra (2003).

Até os anos 50, a “crítica de rodapé” – ou seja, aquela produzida sob forma de resenhas, ensaios e impressões, que predominava na esfera jornalística – triunfou na esfera cultural. Tratava-se de uma crítica ligada à não-especialização. Segundo Süssekind (2003), ela oscilava entre a crônica e o noticiário puro e simples, cultivava a eloquência e visava a se adaptar às exigências e ao ritmo industrial da imprensa. Intelectuais como Agripino Grieco, Álvaro Lins, Wilson Martins e Otto Maria Carpeaux - herdeiros dos impressionistas do século XIX -  foram alguns de seus representantes. Eram eles os “homens de letras”, os praticantes de um impressionismo, de um autodidatismo que se contrapunha a uma geração de críticos formados pelas faculdades de Filosofia do Rio de Janeiro e de São Paulo, criadas na década de 30. Estes, por sua vez, estariam interessados na especialização, na crítica ao personalismo, na pesquisa acadêmica que envolvia os estudos literários. Sob o ponto de vista de Süssekind, do embate entre esses dois modelos distintos, modernizam-se os estudos literários no Brasil. Para os representantes do modelo acadêmico, os impressionistas seriam apenas “amadores”, não estando qualificados para produzir crítica. Segundo Süssekind, a palavra de ordem parecia ser a caça aos amadores:

Essa desqualificação do crítico amador lembra bastante a perseguição ao “charlatão” a partir de 1882, quando da criação das faculdades de Medicina no Brasil. É em oposição à figura deste médico sem diploma, ilegal, a que se denomina “charlatão”, que os “formados regularmente” afirmam publicamente a própria importância. E definidos como “verdadeiros médicos” aumentam sua área de influência na sociedade brasileira do século passado (2003).

Ainda no final do século XIX, vemos proliferar o modelo impressionista. No entanto, ao invés de perceber nela apenas o devaneio crítico, ou o mero trabalho de um charlatão, desprovido de especialização para o trabalho, podemos inverter o processo, e buscar nela sentidos obliterados pela tradição que lhe é adversária. 
Manifestações críticas que integram uma linhagem que poderíamos chamar de impressionista parecem funcionar como uma primeira tentativa entre nós - talvez ainda inconsciente -, de um pensamento que não deseja ser apenas criativo, mas também enigmático, no sentido proposto por Benjamin (2002), ou mesmo da negatividade de que nos fala Agamben (2007). Curiosamente, é também a crítica que foi menosprezada por boa parte dos pesquisadores, que muitas vezes a tratou pejorativamente como impressionista e falível, justamente por não ser sistematizada, como foi a “nova crítica”, que encontrou em Afrânio Coutinho um de seus adeptos mais fiéis no universo acadêmico brasileiro. 
Urge relermos figuras como Álvaro Lins, Agripino Grieco, Nestor Vitor etc.

terça-feira, 29 de abril de 2014

POESIA E ACASO


"No acaso da rua o acaso da rapariga loira. 
Mas não, não é aquela"

Álvaro de Campos

A cada dia que passa me encanta mais o acaso. Nossa vida é em boa parte uma soma de seus incidentes. Certa vez, Roland Barthes escreveu que "privada de todo o comentário, a futilidade do incidente se põe a nu, e assumir a futilidade é quase heroico".  Nos últimos tempos (perdoem-me a expressão apocalíptica ou quase evangélica) tenho me interessado em específico na relação entre o acaso e arte, na potência que brota dessa relação por vezes íntima e silenciosa. A força criadora do acaso, que aparece no poema Um lance de dados, de Mallarmé, e que hoje é investigado pela ciência nos estudos de física quântica, parece ser um dos grandes enigmas da arte. O que me move a escrever agora sobre isto? Que acaso é esse que também me apavora?
Nietzsche tem um belo texto sobre o acaso. Em uma das reflexões de "A Gaia Ciência", mais especificamente no fragmento de número 277, o filósofo batiza a acaso com o nome de “Providência Pessoal” (eine persönliche Providenz). Para ele, o acaso guia a nossa mão e toca conosco uma melodia. Seja o que for, bom ou ruim, o que o acaso nos revela, sob seu ponto de vista, é o melhor possível. É o que tinha que acontecer. Esse é o "destino"acaso: "Tudo o que nos toca acaba sempre por ser para nosso maior bem".
A professora Rosa Dias, no texto "A questão da criação para Nietzsche", discute os poderes do acaso na criação: "O acaso é assim para Nietzsche um conjunto de coisas humanas, as mais cotidianas. Vem sempre a nosso favor, pois traz o presente. Presente no sentido temporal e presente como dádiva". Para ela, o acaso "não é um incidente que devemos afugentar, mas o elemento essencial que determina a plasticidade da vontade criadora. Se o que vem até nós, o inesperado que, de algum modo, se espera que venha, surge como absolutamente necessário: se o queremos, se o afirmamos com toda a nossa vontade, ele nos traz o presente e impulsiona à ação, a uma ação criadora".
Não é outro o argumento de Clément Rosset. No livro A Anti Natureza, esse filósofo contemporâneo, seguindo as pegadas de Nietzsche, relaciona o conceito de trágico e de artifício com o de acaso: "(....) o homem do artifício diz sim a uma instância puramente negativa (o acaso), a qualquer coisa da qual sabe somente que é incapaz de pensar o que quer que seja". Para ele, aprovar a existência é aprovar o trágico, ou seja, o acaso. 

sábado, 26 de abril de 2014

Arte e Política


Walter Benjamin, na conclusão de seu famoso ensaio "A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica", lembra que o fascismo esperava que a guerra proporcionasse a satisfação artística de uma percepção sensível modificada pela técnica. Para o filósofo, a autoalienação da humanidade atingira o ponto que lhe permitia viver sua própria destruição como um prazer estético de primeira ordem: "Eis a estetização da política, como a pratica o fascismo. O comunismo responde com a politização da arte" (1994). De um lado estaria Marinetti, trabalhando com a estetização da política, de outro, a serviço da politização da arte, estaria, por exemplo, John Heartfield, cujo trabalho foi analisado com atenção por Benjamin em um texto anterior, "O autor como produtor"[1], de 1934.
Penso que a frase final do ensaio de Walter Benjamin, interessada em situar o horizonte da estetização da política e da politização da arte em sua época, pode ainda hoje ser equacionada como problema, ajudando-nos a pensar na potencialidade da relação entre arte e política em tempos contemporâneos. Que pode ainda nos dizer o argumento final do filósofo? Se não é possível atualizá-lo - visto que o próprio já traz em si a força de sua sobrevivência, de sua (in)atualidade - como pensá-lo à luz do presente para além das categorias do fascismo e do comunismo, entendidas como quadros estáticos? Que significa hoje estetizar a política? Onde, entre nós, a politização da arte? Giorgio Agamben soube mostrar o quanto o fascismo sobrevive no tempo do presente[2]. Georges Didi-Huberman, por sua vez, soube mostrar o quanto a política das imagens pode corresponder a uma politização da arte[3]
Na já citada conferência "O autor como produtor", o fulcro central está pautado na reflexão de que a tendência política correta de uma obra inclui sua qualidade literária, porque inclui sua tendência literária, fato que para Benjamin pode consistir num progresso ou num retrocesso da técnica literária. Trata-se da ideia de que uma obra de arte só se sustentaria politicamente se primeiro se sustentasse esteticamente. Segundo Benjamin, “a tendência política, por mais revolucionária que pareça, está condenada a funcionar de modo contrarrevolucionário enquanto o escritor permanecer solidário com o proletariado somente ao nível de suas convicções, e não na qualidade de produtor” (1994). Portanto, sustentar-se esteticamente naquele momento passava pela possibilidade de um artista - com interesse revolucionário (político) - tornar-se um produtor. Benjamin recorre a Brecht para demonstrar que ele foi o primeiro a confrontar o intelectual com a exigência fundamental: “não abastecer o aparelho de produção, sem o modificar, na medida do possível, num sentido socialista” (1994). Nesse sentido, Brecht propõe inovações técnicas e não espirituais, como proclamavam os fascistas. O filósofo define o escritor rotineiro como o homem que renuncia por princípio a modificar o aparelho produtivo a fim de romper sua ligação com a classe dominante, em benefício do socialismo. Para Benjamin, uma parcela substancial da chamada literatura de esquerda não exerceu outra função social que a extrair da situação política novos efeitos, para entreter o público[4]:

Pense-se no dadaísmo. A força revolucionária do dadaísmo estava em sua capacidade de submeter a arte à prova da autenticidade. Os autores compunham naturezas-mortas com o auxílio de bilhetes, carretéis, pontas de cigarro, aos quais se associavam elementos pictóricos. O conjunto era posto numa moldura. O objeto era então mostrado ao público: vejam, a moldura faz explodir o tempo; o menor fragmento autêntico da vida diária diz mais do que a pintura. Do mesmo modo, a impressão digital ensanguentada de um assassino, na página de um livro, diz mais que o texto. A fotomontagem preservou muitos desses conteúdos revolucionários. Basta pensar nos trabalhos de John Heartfield, cuja técnica transforma as capas de livros em instrumentos políticos (1994).   

O que Benjamin está querendo dizer é que o trabalho artístico não deve visar somente à fabricação de produtos, mas sempre, ao mesmo tempo, a dos meios de produção. Abaixo, algumas montagens realizadas por John Heartfield. O artista confere a elas uma politização da arte, ao tornar-se produtor de formas. Goering é retratado como um açougueiro, Hitler como um cofre de dinheiro, e a fumaça produzida por aviões de guerra como uma alegoria da morte: 

      




Não muito distante dos dois ensaios citados de Benjamin, Brecht, mais especificamente em 5 de abril de 1942, anota em seu Diário de Trabalho a impotência que sente, como produtor de palavras líricas, diante da guerra: "Escrever poesia, mesmo poesia de circunstância, aqui é como se isolar numa torre de marfim. (...) É como meter uma mensagem dentro de uma garrafa" (2005). Debaixo dessa frase, Brecht inseriu uma fotografia de duas mulheres desesperadas diante dos cadáveres de seus filhos mortos, em Singapura, depois do bombardeio de 7 de dezembro de 1941. Didi-Huberman chama a atenção para esse grito prolongado que vai reaparecer na peça teatral Mãe Coragem. O que estaria em questão aqui é a memória dos sofrimentos padecidos, que aparece em Brecht sob a estola da guerra.
Benjamin (1994), em “Sobre Conceito de História”, dizia que o pensador e o historiador têm como função política a utilização da memória como “advertência de incêndios futuros”. Para Brecht, nos diz Didi-Huberman, o poeta e o dramaturgo devem colocar em cena “a imaginação dos sofrimentos futuros” sobre a base de uma “memória dos sofrimentos padecidos” (2008, p. 195). Nesse sentido, as montagens anacrônicas de Kriegsfibel (ABC ou Abecedário da Guerra), ou mesmo as do Arbeitsjournal (Diário de Trabalho), de Brecht, estariam destinadas a “retomar o enfoque teatral e lírico da dor do mundo” (2008). Ou seja, Brecht é produtor, pensa a política, a(r)mando a arte.


O mesmo teor patético que Didi-Huberman encontra numa das chapas de Kriegsfibel, ao se referir ao bombardeio de Singapura, e que sobrevive em Mãe Coragem, ele encontra em outra fotomontagem, na qual aparece uma mãe russa que, ao identificar o filho morto entre os cadáveres, abre os braços em forma de cruz: “A mulher russa que abre os braços em cruz diante do cadáver de seu filho baleado está ela mesma atravessada, conscientemente ou não, pela memória gestual, cultural e cultual da Pietà, quer seja como rito católico ou ortodoxo” (2008). Sob esse ponto de vista, estar na história significa necessariamente estar atravessado pela memória.
O Kriegsfibel e o Arbeitsjournal, de Bertolt Brecht, discutidos por Didi-Huberman, poderiam ser lidos como obras cujas imagens, pautadas pela montagem, estariam a serviço de uma politização da arte. O procedimento de montagem, por sua vez, estaria subordinado à imaginação.
                  



[1] Trata-se de uma conferência pronunciada no Instituto para o Estudo do Fascismo, em 27 de abril de 1934. 
[2] Jeanne Marie Gagnebin, na apresentação de O que resta de Auschwitz, de Agamben, observa que "Auschwitz"é a prova sempre viva de que o nomos (a lei, a norma) do espaço político contemporâneo - portanto, não só do espaço político específico do regime nazista - "não é mais a bela (e idealizada) construção da cidade comum (pólis), mas sim o campo de concentração" (in AGAMBEN, 2008). Nesse sentido, retoma a ideia do filósofo italiano que entende o campo como um espaço que se abre quando o estado de exceção começa a tornar-se regra, na medida em que os seus habitantes são reduzidos, no contexto de uma biopolítica, à vida nua

[3] Ao analisar, por exemplo, o Arbeitsjournal (Diário de Trabalho), que Bertolt Brecht produziu durante a Guerra, bem como o seu atlas fotográfico da guerra, intitulado Kriegsfibel - nos quais o dramaturgo produz uma montagem singular com fotos e textos - Didi-Huberman percebe uma obra cujas imagens são capazes de tomar posição, ou seja, de possuir uma potência política. Nesse sentido, o processo de montagem "dis-põe" e "recompõe", criando novas relações entre os objetos: "Su valor político es por lo tanto más modesto y más radical a la vez, porque es más experimental: sería, hablando estrictamente, tomar posición sobre lo real modificando justamente, de manera crítica, las posiciones respectivas de las cosas, de los discursos, de las imágenes" (2008).

[4] Talvez esse tenha sido também o caso de boa parcela da "arte de esquerda" produzida no Brasil no período da ditadura militar. Em 1962, o Manifesto do Centro Popular de Cultura tenta sistematizar suas posições diante do quadro político e cultural do país. Considerando as próprias perspectivas revolucionárias que se apresentam ao homem brasileiro, o Manifesto postula o engajamento do artista e afirma que em nosso país e em nossa época, fora da arte política não há arte popular. Na arte popular revolucionária, o artista e o intelectual devem assumir um compromisso de clareza com seu público. Cabe ao artista realizar o laborioso esforço de adestrar os poderes formais a ponto de exprimir correntemente na sintaxe das massas os conteúdos originais. Heloísa Buarque de Hollanda revê a questão da arte e da política na produção cultural brasileira no período da ditadura militar de 64. Arnaldo Jabor, revendo sua própria participação na produção cepecista, escreveu: “A gente pensava que a fome era um caso de falta de informação: se o povo fosse bem informado, aconteceria a revolução, sem nos darmos conta da complexidade do problema” (JABOR apud HOLLANDA, 1980):

O laborioso esforço de captar a sintaxe das massas significa para o escritor a escolha de uma linguagem que não é a sua. Programaticamente ele abre mão do que seria a força do seu instrumento de trabalho, - a palavra poética – seu único engajamento de trabalho possível, - em favor de um mimetismo que não consegue realizar, não levando, inclusive, em conta o nível de produção do simbólico nessa mesma poética popular. Produz, então, uma poesia metaforicamente pobre, codificada e esquemática (HOLLANDA, 1980). 

terça-feira, 22 de abril de 2014

Cascas e Vaga-lumes


                Foto de Karo Yuki: Vaga-lumes                                       

Em junho de 2001, depois de visitar o Museu de Auschwitz, Didi-Huberman escreve o belíssimo ensaio "Cascas", no qual por meio da montagem intercalada de fotos do Museu a céu aberto e um texto poético-político, revisita não só as atrocidades do campo, bem como os seus estudos presentes em "Imágenes pese a todo". No bosque do campo de concentração, o historiador da arte extraiu três pedaços de casca de uma árvore e depois de colocá-los sobre uma folha de papel julgou que olhá-los poderia o ajudar a ler algo jamais escrito. As cascas trazem ao nosso tempo ruínas de um outro. Assim como esses resíduos - cascas de bétula -, as fotografias que integram o ensaio ajudam o ensaísta a imaginar o inimaginável:

Apesar de agora vazio de todos os atores de sua tragédia, este é claramente o lugar de nossa história. O fogo da história passou. Partiu como a fumaça dos crematórios, soterrado junto com as cinzas dos mortos. Isso significa que não há nada a imaginar porque não há nada - ou muito pouco - a ver? Certamente não. Olhar as coisas de um ponto de vista arqueológico é comparar o que vemos no presente, o que sobreviveu, com o que sabemos ter desaparecido (2013).

Cada uma das imagens que compõe o ensaio ajuda o ensaísta a escrever senão o testemunho do campo, o inimaginável, pelo menos um olhar; menos para capturá-lo do que para imaginá-lo, entendê-lo. Em uma das imagens, por exemplo, aquela na qual vemos um lago, Didi-Huberman enxerga as cinzas de judeus:

(...) A destruição dos seres não significa que eles foram para outro lugar. Eles estão aqui, decerto: aqui, nas flores dos campos, aqui, na seiva das bétulas, aqui, neste pequeno lago onde repousam as cinzas de milhares de mortos. Logo, a água adormecida que exige de nosso olhar um sobressalto perpétuo. As rosas depositadas pelos peregrinos na superfície da água ainda flutuam, e começam a murchar. As rãs saltam de todos os lados quando me aproximo da beira d'água. Embaixo estão as cinzas. Aqui, temos de compreender que caminhamos no maior cemitério do mundo, um cemitério cujos "monumentos" não passam de restos de aparelhos concebidos precisamente para o assassinato de cada um separadamente e de todos juntos (2013). 

É nesse sentido que Didi-Huberman nos convida, benjaminianamente, a olharmos como arqueólogos. É, segundo ele, a partir de um olhar desse tipo que temos a possibilidade de vermos que as coisas "começam a nos olhar a partir de seus espaços soterrados e tempos esboroados" (2013). A alusão, aqui, é ao texto "Escavar e lembrar", de Benjamin, para quem, na esteira de Freud, a atividade do arqueólogo era capaz de esclarecer, "para além de sua técnica material, alguma coisa de essencial à atividade de nossa memória" (DIDI-HUBERMAN, 2013). O que significa que, para o ensaísta, a arte da memória não se reduz ao inventário dos objetos trazidos à luz. A arqueologia não é uma atividade interessada somente em explorar ao passado, mas também um exercício para compreender o presente. A casca da bétula, mais do que um souvenir de turista, é o fragmento de uma ruína que permite ao arqueólogo-ensaísta imaginar o inimaginável. São páginas sobreviventes de um livro queimado. São lascas de uma história irrepresentável que, por meio da montagem de singularidades de imagens, se apresenta novamente no nosso presente.




Didi-Huberman encerra o ensaio lembrando que os latinos inventaram a palavra liber, que designa a parte da casca ainda mais propícia que o próprio córtex a servir de suporte para a escrita:

Nada mais natural, portanto, que ela tenha dado seu nome a coisas tão necessárias para inscrever farrapos de nossas memórias: coisas feitas de superfícies, de lascas de celulose decupadas, extraídas das árvores, onde vêm reunir-se as palavras e as imagens. Coisas que caem de nosso pensamento e que denominamos livros. Coisas que caem de nossos dilaceramentos, cascas de imagens e textos montados, fraseados em conjuntos (2013).   

O que vemos no ensaio, além das cascas e da consequente possibilidade de imaginar o inimaginável, é uma politização da arte em um texto que mais do que pensar o passado, pensa o próprio presente. Que podem os contemporâneos além de lembrar? Que lugar é esse do campo nos dias de hoje? Que pode a arte diante dessas cascas, ou seja, ruínas? Que podem as imagens nos mostrar, apesar de tudo? Que pode o ensaio nos fazer pensar em uma arte que arma a sua própria ética, que inventa a sua própria estética? Ainda é possível fazer experiência depois que os homens voltaram calados dos campos de batalha, depois que Auschwitz virou museu? E Auschwitz, virou mesmo museu?
No livro Sobrevivência dos Vaga-lumes (2011), Didi-Huberman, a partir de um fragmento da Divina Comédia, de Dante[1], ensaia reflexões sobre a arte e a política. O ensaísta confronta a pequena luz dos vaga-lumes de Dante, com a obra de Pasolini, observando que o cineasta, em um texto sobre vaga-lumes, indica, muito precisamente, que a arte e a poesia valem também como esses pequenos lampejos, ao mesmo tempo eróticos, alegres e inventivos. Nesse sentido, a própria obra de Pasolini poderia ser lida como um lampejo de vaga-lume que, em meio à escuridão dos tempos obscuros, faz da arte uma pequena luz de vaga-lume, ou seja, um gesto de resistência. Portanto, o gesto dos vaga-lumes, além de ser uma questão de arte, é também uma questão política e histórica. A dança dessas luzes voadoras é enfocada por Didi-Huberman como um momento de graça que "resiste ao mundo do terror" (2011), sendo o que existe de mais fugaz, de mais frágil. Pasolini, por meio dessa dança, reuniria toda a violência do político, "associada, montada, com toda a doçura do poeta" (2011). Ou seja, diante de sua obra estaríamos diante de uma constelação, ou seja, de uma politização da arte.  

Ainda que beirando o chão, ainda que emitindo uma luz bem fraca, ainda que se deslocando lentamente, não desenham os vaga-lumes, rigorosamente falando, uma tal constelação? Afirmar isso a partir do minúsculo exemplo dos vaga-lumes é afirmar que em nosso modo de imaginar jaz fundamentalmente uma condição para nosso modo de fazer política. A imaginação é política, eis o que precisa ser levado em consideração (2011).  

A frase está intimamente ligada aos textos de Didi-Huberman já citados neste trabalho. O processo de politização da arte, ou mesmo do conhecimento, está ligado, aqui, à possibilidade de imaginar, ou seja, montar. Para saber é preciso imaginar. E a arte política que nasce desse ato de imaginar, mesmo possuindo a pequena luz de um vaga-lume, tem a capacidade de iluminar o seu próprio tempo. Essa pequena luz (arte), que guarda sua própria política sobrevive na escuridão. São imagens sobreviventes que, segundo o ensaísta não prometem nenhuma ressurreição. São apenas lampejos passeando nas trevas, "porque elas nos ensinam que a destruição nunca é absoluta – mesmo que fosse ela contínua -, as sobrevivências nos dispensam justamente da crença de que uma “última” revelação ou uma salvação “final” sejam necessárias à nossa liberdade" (2011).

  
Não nos cabe aqui esmiuçar a figura do vaga-lume - o que mereceria, sem sombra de dúvida, outro texto -, mas apenas observar que nessa pequena luz de vaga-lume pode ser encontrada a possibilidade da sobrevivência de uma politização da arte e não de uma estetização da política. Enquanto aquela jaz como pequena luz de vaga-lume, esta guarda a grande iluminação dos refletores, os mesmos refletores que nos cegam ao iluminar um grande comício fascista. Ou como nos diz Didi-Huberman, devemos nos tornar vaga-lumes e, dessa forma, formar uma comunidade do desejo, uma comunidade de lampejos emitidos, de danças apesar de tudo, de pensamentos a transmitir: "Dizer sim na noite atravessada de lampejos e não se contentar em descrever o não da luz que nos ofusca" (2011) Estaria na arte alguns dos gestos mais políticos de nosso tempo? Confio nas pequenas luzes de vaga-lumes como Pasolini, ou nas dos poetas que integram o livro virtual Vinagre, uma antologia de poetas neobarracos (2013), organizado por Fabiano Calixto e publicado na rede poucos dias depois das grandes manifestações ocorridas no Brasil em 2013.
Há alguns dias, voltando para casa depois do trabalho, caminhando pela rua, deparei-me com alguns vaga-lumes. Lembrei da forma como Didi-Huberman encerra seu livro sobre Pasolini, depois de perguntar se os vaga-lumes desapareceram, para responder que não: "Alguns estão bem perto de nós, eles nos roçam na escuridão; outros partiram para além do horizonte, tentando reformar em outro lugar sua comunidade, sua minoria, seu desejo partilhado" (2011, p. 160). Cabe-nos aprender a ler em sua poesia, em suas cascas de bétulas, em suas imagens, a sua a(r)mada política.

Obs: Silviano Santiago escreveu para o jornal estado de São Paulo uma bela crítica sobre o livro Sobrevivência de Vaga-lumes: "Revoada de Vaga-lumes" :

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,revoada-de-vaga-lumes,693993,0.htm



[1] No fragmento, que integra o vigésimo sexto canto do Inferno, antes de encontrar a grande luz do Paraíso, Dante reserva um destino discreto, embora significativo, à "pequena luz" dos vaga-lumes.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Imagem e memória


Nascimento de Venus, de Botticelli

Poderíamos pensar, seguindo os passos do poeta cubano Lezama Lima, na imagem como a última das histórias possíveis. Nesse lugar, não nos caberia a possibilidade de desvendar um segredo, tal como nos é dado nos romances policiais, em que os fatos se justificam numa rede causal em que o investigador, por meio de seus dotes interpretativos, alcança o sentido final. Se é verdade, como nos dizia Lezama, que uma imagem ondula e se desvanece se não se orienta, ou ao menos consegue reconstituir um corpo ou um ente, é também verdade que o homem sempre se sentiu como um corpo que se sabe imagem, pois o corpo “ao tomar a si mesmo como corpo,verifica tomar posse de uma imagem” (LEZAMA LIMA). Poderíamos arriscar dizer que mais importante do que tomar consciência do mundo como uma grande rede de imagens, é perceber como essas imagens nos chegam, transformadas por um eterno retorno, que as faz diferentes. Se partirmos do pressuposto de que uma imagem sempre está carregada de história, perceberemos que o retorno dessa mesma imagem, em outras condições, instaura uma diferença que lhe confere uma potência capaz de colocá-la em rede, fazendo-a funcionar, ao mesmo tempo como sintoma, mediante uma interrupção no saber, e como conhecimento, mediante uma interrupção no caos. Nesse sentido, uma das características mais relevantes da imagem é funcionar simultaneamente como carrasco e como vítima, lembrando aqui do poema heautontimoroumenos, de Charles Baudelaire. Essa diferença, que faz com que uma imagem possa ser dialética, tal como Walter Benjamin sugeriu sobre poemas do próprio autor das Flores do Mal, nos interessa de maneira especial.  Poderíamos partir da ideia, presente nos trabalhos de Georges Didi-Huberman, de que diante da imagem, estamos diante do tempo (já discuti esse assunto no blog há algum tempo). Em Ante el tiempo, o filósofo chama a atenção para um dos afrescos do Convento de São Marcos, em Florença, pintado no século XV pelo Frei Angelico. O contraste entre as paredes pintadas a cal e o quadro roxo salpicado de “manchas erráticas”, que se perpetuou como uma constelação de fogos de artifício ou estrelas fixas, gera uma deflagração do tempo, capaz de mostrar que “ante una imagen – tan antigua como sea -, el presente no cesa jamás de reconfigurarse” e que “ante una imagen – tan reciente, tan contemporánea como sea -, el pasado no cesa nunca de reconfigurarse” (DIDI-HUBERMAN). O problema que se coloca, segundo Didi-Huberman, é como estar à altura de todos os tempos que as imagens diante de nós conjugam sobre tantos planos? O que está em questão é a própria ideia de um regime do olhar. Colocar-se diante de um objeto não significa somente interrogar o objeto, mas principalmente atentar para a questão do tempo. Essa é a aposta do trabalho do filósofo francês: desenvolver uma arqueologia crítica dos modelos de tempos, dos valores do uso do tempo. A necessidade é a de um anacronismo, que aparece no interior dos próprios objetos, sendo “el modo temporal de expresar a exuberancia, la complejidad, la sobre-determinación de las imágenes” (DIDI-HUBERMAN). Nesse sentido, a imagem deveria ser pensada como uma construção da memória.

Esse é o interesse de um crítico como Raúl Antelo, ao observar que as imagens produzem um regime de significação que apela aos processos da memória psíquica e, elaborando-se como sintoma, “sobrevivem e deslocam-se no tempo e no espaço, exigindo que se alarguem, consequentemente, os modelos da temporalidade histórica e que se acompanhe a sua sobrevivência para além do espaço cultural originário” (ANTELO). Se adotarmos um outro modelo de temporalidade, como nos sugere Antelo, e levarmos a cabo a afirmação de Giorgio Agamben, de que a “história não pode ser o progresso contínuo da humanidade falante ao longo do tempo linear, mas é, na sua essência, intervalo, descontinuidade, epoché” (AGAMBEN), perceberemos que acompanhar a sobrevivência da imagem, tal como nos é dada no torvelinho da história, e consequentemente no jogo de um anacronismo fundante, pode ser uma forma ainda possível de ler o próprio presente. Aby Warburg, que foi um dos pioneiros dessa perspectiva, no campo da história da arte, apresentou uma concepção rememorativa da história. Nela, as imagens criam, no movimento de sobrevivência e de diferimento que lhes é característico, “determinadas circulações e intricações de tempo, intervalos e falhas, que vão desenhando um percurso, um regime de verdade, uma densidade constelacional própria” (ANTELO). Ainda acompanhando o raciocínio de Raúl Antelo, perceberemos que o conceito de sobrevivência, central na teoria de Warburg, e que foi desenvolvido previamente por Edward Tylor, nos fornece uma saída para o impasse do presente, e as fórmulas do passado, tocadas pela fórmula do pathos, pathosformel, no dizer de Warburg, ainda podem ser equacionadas como problema.  Há um texto de Aby Warburg que pode nos ajudar a pensar a questão das sobrevivências na arte. 

Em 1893, o historiador alemão escreve um estudo que seria de suma importância para as suas pesquisas posteriores. Warburg intitulou-o como “O Nascimento de Vênus e a Primavera de Sandro Botticelli”. O texto consistia em uma investigação sobre as representações da Antiguidade no primeiro Renascimento italiano. Nele, o historiador da arte propõe comparar os conhecidos quadros mitológicos de Sandro Botticelli com as representações equivalentes da literatura poético e teórico-artística contemporânea com o objetivo de estudar os aspectos da Antiguidade que interessaram a Botticelli e a outros artistas do Renascimento. O elemento dos quadros que chama a atenção de Warburg é principalmente o movimento dos cabelos e da roupagem das personagens, que se caracterizam a partir de representações da Antiguidade e de textos literários em que sobreviveram tais representações. Warburg resgata uma passagem do texto em que Poliziano, na sua História da Literatura Italiana, descreve o nascimento de Vênus. A descrição assemelha-se ao quadro de Botticelli. Poliziano, que fora amigo de Lorenzo de Medici, havia tomado um hino homérico como base para a caracterização de sua Vênus. Warburg compara a descrição de Poliziano com um hino homérico para demonstrar que a ideia do movimento sobrevive no texto florentino e por sua vez na pintura de Botticelli. Em ambos, Vênus emerge do mar e é tocada pelo sopro de Zéfiro, sendo recebida pelas deusas das estações. Curiosamente, os movimentos do vento são valorizados por todas as representações elencadas. Outro poeta da Antiguidade lembrado por Warburg é Ovídio, que também valoriza a ideia de movimento semelhante nas suas "Metamorfoses". Seguindo os passos de Burckhardt, Warburg acreditava que o Renascimento buscara na Antiguidade pagã um modelo de cultura que transcendia o cristianismo medieval e desenvolvera uma experiência global diferente daquela expressada pelas sociedades urbanas e mercantilistas. 

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Criação e Salvação


Anjo acordando o profeta ELIAS 


Óleo sobre tela de Juan Antonio de Frias e Escalante 
século XVII,  Berlim, Alemanha


Há um ensaio de Giorgio Agamben que pode nos ajudar a pensar a crítica contemporânea e a sua relação com a tradição da crítica moderna. O texto intitula-se "Criação e Salvação". Nele, o filósofo italiano, pensando no precoce desaparecimento dos profetas na história do Ocidente, lembra que a tradição rabínica tende a encerrar o profetismo num passado ideal, que remonta à primeira destruição do Templo em 587 a.C. Com a morte do último nabi, o sopro sagrado afasta-se de Israel, no entanto, as "mensagens celestes" chegam aos homens através de bat kol, a "filha da voz", isto é, a tradição oral e o trabalho de leitura e interpretação da Torah. Para o cristianismo, uma vez que o "messias" veio à terra, os profetas perdem a sua razão de ser. Os enviados são, agora, apóstolos e não mais profetas.
Agamben chama a atenção para o fato de a tradição islâmica ligar a figura e a função do profeta a uma das duas obras ou ações de Deus. Para esta doutrina, há em Deus duas práxis diferentes: a obra de criação e a obra de salvação. Os profetas seriam mediadores da obra de salvação e os anjos da obra de criação. Curiosamente, ao contrário do que se poderia supor, a obra de salvação é entendida como anterior à de criação. Como a primeira obra - a de salvação -, é mais importante que a segunda - a de criação -, os profetas seriam mais importantes que os anjos, pois é a sua obra que torna compreensível a criação, dando-lhe sentido: "Maravilhoso é que a redenção do criado tenha sido confiada, não ao criador (ou aos anjos, que procedem diretamente do poder criador) mas a uma criatura". Isso significa que "não será o poder angelical (e em outras palavras, demoníaco) com que os homens produzem as suas obras,(...) mas o que lhes compete, mais humilde e corpóreo, enquanto criaturas, que salvará o mundo". Significa também que, no profeta, "os dois poderes de certo modo coincidem, que o titular da obra da salvação pertence, quanto ao seu ser, à criação".
Essas ações não estão trancafiadas em um passado remoto. Para Agamben, na cultura da época moderna, a filosofia e a crítica herdaram a obra profética da salvação, enquanto que a poesia, a técnica e a arte, herdaram a obra angélica da criação. Com a secularização da tradição religiosa, ambas perderam progressivamente a memória da relação que as ligava:

Onde, outrora, o poeta sabia dar conta da sua poesia ("Abri-la pela prosa" [Aprirla per prosa], dizia Dante) e o crítico era também poeta, o crítico, que perdeu a obra da criação, vinga-se sobre esta pretendendo julgá-la; o poeta, que já não sabe salvar a sua obra, compensa esta incapacidade entregando-se cegamente à frivolidade do anjo.


Dando um passo adiante nessa discussão, poderíamos pensar na crítica e na poesia como "dois rostos de um mesmo poder divino". Seguindo os argumentos de Agamben, poderíamos também considerar que a obra de criação é centelha que se soltou da obra profética, assim como a obra de salvação é "só um fragmento da criação angélica que se tornou consciente de si próprio".

quarta-feira, 9 de abril de 2014

reflexões poéticas sobre o gênero ensaio

QUADRO 1


Talvez fosse possível imaginar uma poética do ensaio a partir de uma visita imaginária a uma exposição de quadros de Ismael Nery. Murilo Mendes, em um depoimento sobre o pintor, escreveu que certa vez o artista lhe contara que, desde cedo, interessara-se pelo trabalho de Cremona, o pintor italiano dos namorados. Ao longo de sua vida, Nery pintou muitos quadros, e esboçou desenhos com o motivo dos amantes. Penso se esses quadros não poderiam nos convidar a pensar o ensaio como o lugar onde se dá o idílio entre dois apaixonados. De um lado o ensaio é passeio, do outro é o encontro amoroso entre a crítica e a poesia. Os dois corpos em um mesmo plano. Os amantes olham fixamente um para o outro como que intuindo a relação prestes a se concretizar em um beijo.


QUADRO 2

O ensaio poderia ser pensado como o retrato de um beijo tímido, mas não menos voluptuoso, entre a crítica e a poesia, encarnadas no quadro "Namorados", de Ismael Nery. O corpo de um personagem completa o corpo do outro. O beijo, oficialmente impossível no espaço bidimensional do quadro, porém verossímil, se realiza poeticamente no ensaio, consumindo as fronteiras espaciais e precisas que antes delimitavam os amantes e interditavam o toque dos lábios. O beijo sela o contato e rompe a cisão que antes separava o conhecimento de um e o gozo do outro.


QUADRO 3

Amor é sempre ensaio ou será ele a prática de uma escrita amorosa onde a crítica está encantada pela alegria enquanto o poema está apaixonado pelo saber? O corpo dele preenche o corpo dela, enquanto ela, morada ou estância, reveste com a sabedoria dos astros, o corpo do ser amado. Para Agamben, o que fica fechado na "estância" da crítica é nada, mas esse nada contém a inapreensibilidade como "o seu bem mais poderoso". Amor é sempre um enigma. O ensaísmo entendido como prática erótica ou como a fala de uma pessoa apaixonada. Nesse sentido, o ensaísta pode ser apontado como amador, não necessariamente como alguém que não sabe o que fala, mas que não descola a sua escrita de seu objeto de desejo, seja para dele falar bem ou mal. Talvez possamos aprender com Derrida que não há fundo na escritura, mas apenas escrita sobre escrita. A crítica não pode pretender encontrar o fundo da obra, "pois esse fundo é o próprio sujeito, isto é, uma ausência", ensaiou Barthes. 



sexta-feira, 4 de abril de 2014

Cruz e Sousa e outros simbolistas, bailarinos trágicos


Que experiência é essa que toma o corpo da poesia, ou que ganha corpo na poesia trágica de Cruz e Sousa? Penso aqui no poeta de Desterro como alguém que tirou o trágico para dançar. Nesse sentido, Cruz é um bailarino trágico, para usar uma expressão de Georges Didi-Huberman que, no livro dedicado a Israel Galván, El bailaor de soledades, caracteriza Galván como um bailaor do nascimento da tragédia:

Bailaor trágico, porque no baila sino hasta renunciar a sí mismo, porque está dislocado como individuo; trágico porque se ve metamorfoseado por su penetración en una naturaleza extraña, y entonces las fronteras de la individuación saltan por los aires. Trágico porque crea, no sólo una representación, sino una musicalidad, y esa musicalidad siempre deja estallar el conflito, la disjunción, el eterno antagonismo, padre de todas las cosas. Esto es, musicalmente hablando, la disonancia (2008, p.91).   

Didi-Huberman conclui seu estudo lembrando que Eisenstein explica que Dionísio representa a imagem da montagem encarnada, "pues danza continuamente con la embriaguez de la vida y se disloca bajo el cuchillo de los Titanes con na experiencia de la muerte" (2008, p. 178). Segundo a mitologia, os Titãs teriam tomado seu nome do gesso ou cal branca  (titanos) que os cobriam como estátuas de deuses. Uma vez que despedaçaram a sua vítima, assando-a e servindo-a em um ritual de sacrifício, Zeus os reduziu a cinzas, brancas, pó de onde nasceria o gênero humano. Cal branca é também o pó com o qual Cruz e Sousa parece se maquiar em seu sacrifício de negro-branco na belle époque que nos legou um dos capítulos mais curiosos de nossa vida literária e social.
Se por um lado Eisenstein concebe o nascimento da montagem como sinônimo de Dionísio, a máquina de produzir imagens, ou seja, o cinema, em Cruz e Sousa, e em outros simbolistas, seria o dispositivo propulsor de gestos dionisíacos. Dionísio, "deus da ebriedade bem-aventurada" - para usar uma expressão do ensaio não assinado que abre uma das edições da revista Acephale (2006) -, seria, assim, uma espécie de mentor do homem trágico - porque não dizer Cruz e Sousa - que prova o sofrimento mais áspero, sendo bastante forte, pleno e divinizador, ao contrário do cristão, para quem o sofrimento é o de um ser santificado. Daí apostar numa oposição entre o sofrimento de sentido cristão e o de sentido trágico. Para esse ser trágico, o sofrimento não é sintoma de uma maldição sobre a vida, mas de uma conjuração, onde se renasce eternamente e onde se volverá eternamente da destruição, como num lance de cinema, ou seja, de um corte e de uma repetição, de uma decomposição e  de uma composição sucessivas, em outras palavras, de uma montagem de heterogeneidades (DIDI-HUBERMAN, 2008).      
Didi-Huberman escreve que o deslocamento nietzscheano resulta exemplar porque sabe que é capaz de exigir o futuro da arte só na medida em que convoca uma nova memória - uma nova filologia, uma nova arqueologia - que se aglomere alegremente em torno da questão trágica (2008, p. 17). O bailaor, nos diz ainda, faz a beleza mais visível que a ferida, enquanto o toureiro faz a ferida mais visível que a beleza (2008, 41). No caso de Cruz e Sousa, carrasco e vítima, em sua própria poesia, o trágico estaria situado no hiato que jaz entre as duas figuras. Cruz faz beleza com a ferida e vice-versa. É touro e toureiro, um poeta assinalado. Em uma das cenas do filme Cruz e Sousa, o poeta de Desterro, de Sylvio Back (1995), a personagem do poeta declama o soneto "Escravocratas" (1993), ilustrado por cenas onde um touro é abatido (lembrando um ritual de sacrifício) depois da projeção de cenas (verídicas) de uma farra do boi, típicas no Estado de Santa Catarina: "Eu quero em rude verso altivo adamastórico / vermelho, colossal, d'estrépito, gongórico / castrar-vos como um touro - ouvindo-vos urrar". Aqui, o poeta além de tomar o lugar o algoz, alude ao barroco, cujas dobras seriam capazes de castrar o escravocrata. A politização que se apresenta aqui não está desvinculada da trágica linguagem barroca. O que se destaca é justamente o fato do poeta delegar à linguagem - verso altivo adamastórico, vermelho, colossal, d'estrépito, gongórico - o seu poder político.
Se a palavra "trágico", em Cruz e Sousa não deve ser entendida no sentido tradicional é porque, assim como os gestos trágicos de Israel Galván, são gestos de quando o trágico ainda não existe como gênero. São gestos antes de todo gênero (2008, p.92). Um trágico para aquém ou além da forma. Seria possível pensar o trágico em Cruz apenas como gênero? O trágico como ruína ou sobrevivência, gesto e ritmo, um descompasso do verso para além da serenidade apolínea do verso alexandrino, por exemplo. Lembremos que a dança de Israel Galván é considerada trágica justamente porque cria não apenas uma representação, mas uma musicalidade e essa musicalidade sempre deixa emergir o conflito, ou seja, a dissonância.
A relação entre ritmo e dissonância parece na poesia simbolista iluminar a experiência de aproximação entre o trágico e a linguagem. O crítico Batista Pereira, por exemplo, em um texto de 1902, ao analisar os poemas de Jacques D'Avray (Freitas Valle),  define-os como tragi-poemas, ou seja:

(...) pequenas peças de verso nas quais um caso humano, que impressionou violentamente o autor, é fixado com a nitidez, com a precisão, com a verdade de uma água-forte de Dürer. (...) Combinai estes dois princípios de D'Avray: o princípio do teatro e o princípio do ritmo e tereis a explicação artística dos tragi-poemas. A valorização do ritmo é oriunda da ideia de que é por meio dele que se dá a expressão dos sentimentos imprecisos, das coisas obscuras, que não se podem traduzir, mas apenas sugerir (PEREIRA in CAROLLO, 1980, p. 283).

Muitas vezes é na própria poesia que se dá essa reflexão sobre o trágico, uma reflexão presente também na estrutura (corpo) do próprio poema, revelando uma consciência concreta bastante sofisticada, ao chamar a atenção para um "reaprendizado da leitura como tomada de consciência dos mecanismos significantes" (CAROLLO, 1996, p. XVI). É o caso da estrofe inicial do poema "Frontispício" do simbolista Péthion de Vilar:

Por que não pode a Rima, em duplo diapasão,
como um lábio gemer e urrar como um trovão?...
Sintetizar a dor num grito lancinante,
ter do raio o bramir - torva cacofonia -
e exclamar pavorosa a música sombria,
que eu quero que ela cante?
(VILAR in CAROLLO, 1981, p. 116).

Em outro exemplo, o simbolista Neto Machado encerra o curioso poema "Ritmopéia", de título bastante sugestivo, apontando para o suicídio do metro, aludindo às personagens trágicas das Heroides, de Ovídio, Leandro e Hero, precursores ao lado de Píramo e Tisbe, das personagens de Romeu e Julieta, equiparando a tragédia ao enjambement:

Na imemore canção que se alteia e se abranda
o metro avança a passo isocrono de prece,
como um rio caudal que a vaga clara expanda.  

e despenha-se enfim do mais remoto ponto
sobre a rocha imortal do mármore da ideia
lembrando a visão de Hero e as águas de Helesponto.

em sobrenatural e helena ritmopéia
(NETO MACHADO in CAROLLO, 1981, p. 118).

Luiz Murat percebendo a ascensão do enjambement no Brasil, escreve em 1885 - ou seja, dez anos antes de Mallarmé publicar seu Crise de Verso - que esse procedimento poético facilita a manifestação do pensamento, "excarcera" o cérebro do processo obsoleto e inconveniente de uma "mecânica refratária à plena liberdade da rima, da ideia e da inspiração" (in CAROLLO, 1980, p. 30). Para ele as regras fixas da métrica destruíam os movimentos dos versos, em outras palavras, sua dança trágica, o mergulho no abismo de Helesponto, que é o mergulho de um verso em outro, em outras palavras, a perda de compasso. Diz ainda que: "o enjambement tem a suprema vantagem de variar o ritmo e sons musicais e acompanhar o pensamento sem coagi-lo, a ideia sem localizá-la, distribuindo profusamente por toda a paisagem uma melodia de cores (...) (idem, p. 30). Como não lembrar aqui da frase de Didi-Huberman, bailando las soledades de Galván: "Un gesto poético es un gesto que abre una noche, que desmesura las cosas del dia. El poeta, escribe Bergamin, no es solo poeta quando canta, sino cuando pierde el compás. Cuando el poeta pierde el compás ya no puede medir sus versos" (2008, p. 71). Perder o compasso, ou seja, experimentar a impossibilidade de medir seus versos, e produzir a dissonância são elementos trágicos que, de fato, encontramos, nos simbolistas.
Talvez pudéssemos concordar em partes - friso, apenas em partes - com José Veríssimo, se não com o artigo preconceituoso que escreve sobre Cruz e Sousa, pelo menos com parte da frase na qual considera que os versos do poeta têm a "monotonia barulhenta do tam-tam africano" (1977, p.229). Só não consigo concordar que o barulho do tam-tam africano e da poesia de Cruz sejam monótonos. Pelo contrário, quem já visitou um terreiro de umbanda ou candomblé, onde ressoam sobrevivências sonoras da senzala, percebeu que o canto está para o êxtase e para o inebriamento. No candomblé, ainda podemos encontrar rituais de sacrifício. Aliás, Sylvio Back, em um artigo que celebra o sesquicentenário do nascimento do poeta, vê em Cruz e Sousa a pomba-gira que baixou no terreiro da poesia brasileira, "desossando-a de toda e qualquer possibilidade de duplo" (2011, p.1). Como não ver nesse êxtase as marcas de um sagrado selvagem que Bastide (2006) percebeu invadir o Brasil - e por que não dizer, a poesia simbolista - no final do século XIX? As torções sonoras, via sinestesia, aliteração, assonâncias, e outros pecados poéticos - feito a dança de serpente de Salomé - são fundamentais em Cruz, e capazes de inserir um suplemento no lirismo simbolista, acrescentando um "de", no lyrio, logo de-lyrio. Por isso, penso que não seria fortuito imaginarmos a polifonia e o enjambement como dois dos elementos que acentuam o trabalho com a linguagem no poema simbolista, fazendo ecoar reminiscências trágicas. A polifonia a que me refiro não é a bakhtiniana, mas aquela propriamente sonora que, ao lado do cromatismo, foi incorporada ao teatro primeiramente pelo coro na tragédia grega e depois por Wagner.
Nada mais estranho à monotonia que a polifonia ou mesmo o enjambement que faz com que o verso perca a sua vocação para o natural, para o sentencioso e para o aforístico, produzindo aquela crise de verso, esmiuçada por Mallarmé. Uma crise que talvez seja reflexo de outra, uma crise de nervos, com ar trágico de um canto estranho não mais entendido pelo cantor. Aliás, a própria pesquisadora assimila a crise de verso à crise de nervos, ou seja, à nevrose do decadentismo. Mario da Gama Kury, por exemplo, chamou a atenção para a importância do enjambement na tragédia grega. Em uma das passagens de sua tradução de Édipo, termina o verso com as palavras "...sua mulher e mãe" e desloca as palavras "dos filhos dele" para o início do verso seguinte, procurando conservar o efeito do original onde a sequência das palavras, interrompida por um enjambement, "dá lugar a uma ambiguidade momentânea, condizente com as verdadeiras relações entre Jocasta e Édipo, ainda desconhecidas a essa altura" (in SÓFOCLES, 1990, p.100).
Vera Lins já apontava que os simbolistas são da linhagem trágica, que, como Pascal e Kant acreditavam que a razão é insuficiente , não pode conhecer, imitar ou usar como ideal a Natureza, a substância, o ser em si mesmo (1998, p.4). Por terem a consciência trágica de que o mundo não é o que parece, preocuparam-se com a verdade, fazendo da linguagem um problema central. Tal conhecimento trágico, segundo Nietzsche, encontra socorro e proteção na arte contra o locus horrendus da vida. Nessa perspectiva, a poesia não é apaziguadora, mas permite ao poeta a possibilidade de imaginar outras formas de vida e, consequentemente, de comunidade. Daí a aproximação com o expressionismo, cuja postura está pautada pela equação arte = pensamento + linguagem, ou ainda desejo + linguagem; e não pela equação impressionista, pautada pela arte = natureza + linguagem.
 Nesse contexto, a torre de marfim dos simbolistas foi um gesto político por excelência. Tal argumento não estaria distante do enfoque dado por María Negroni (1999) ao castelo gótico. Ao se referir aos castelos sonhados por William Beckford - que aqui poderiam ser associados às torres de marfim do poeta simbolista -, María Negroni sustenta que se equivoca quem imputa a essa estética um afã reacionário: "Deles deriva uma nova mirada, um pathos que levanta o inatual como estandarte e faz da errância imaginária um baluarte contra a cena iluminada da História" (1999, p.21). O castelo-torre se identifica aqui com a poesia, ou melhor, com seu "devir lírico transformado em interrogação" (idem, p.22). Nesse sentido, um devir trágico: "Contra o nobre ou exemplar do ser humano, a poesia, como o castelo gótico, opõe a violência de um movimento que, uma e outra vez, é fiel às suas tristezas" (idem, p. 22). Lembremos que, para Agamben (2009), contemporâneo é aquele que consegue se afastar de seu tempo para lê-lo melhor. Lembremos que, em janeiro de 1989, numa entrevista que talvez seja a última de Paulo Leminski (in GUIMARÃES, 1989), realizada por Denise Guimarães, para o Jornal Nicolau, o poeta discorreu sobre o simbolismo, e lembrou que o movimento soube perceber com mais profundidade as transformações sociais do final do século XIX do que o realismo socialista, o que bastaria para colocar em xeque a ideia da turris ebúrnea como mera evasão ou como gesto de covardia do artista nefelibata. Na revisão do simbolismo, em pleno fin-de-siècle, agora o XX, o poeta encontrava na ilha de televisão uma espécie de torre-de-marfim.
  Em um outro ensaio do mesmo livro, Negroni lembra que a melancolia também é uma estética e a sensibilidade gótica finissecular (a nossa) talvez seja um de seus nomes" (1999, p.27):  

Villiers de Lisle-Adam, Théophile Gautier, Mary Shelley, Swinburne ou Renée Vivien, souberam já nos fins do século passado (...) que a respiração asmática, como toda ostentação, tem a ver com a carência. Por isso, a beleza decadente de sua produção, cheia de emblemas, martírios, intrigas e lamentos, como a luz que ilumina nos quadros barrocos o desenho obscuro da alegoria, é um efeito de opostos. Reduzido a um estado de ruína, a linguagem já não serve para a comunicação mas está mais perto do incognoscível (1999, p. 29)