terça-feira, 23 de agosto de 2016
quarta-feira, 17 de agosto de 2016
Alberto Pucheu e a crítica enquanto amor
Alberto Pucheu
Há algum tempo venho pensando no ensaio como o
lugar privilegiado onde tem se dado o idílio entre a crítica e a arte, a
filosofia e a poesia. Isso não é novidade. Muitos têm refletido sobre o diálogo
entre a filosofia e a literatura no gênero ensaio ao longo da história, de
Montaigne a Agamben, mas cumpre ainda lermos como essa relação tem se
desdobrado na crítica do presente e como ela tem produzido gestos importantes
para a produção crítica e literária na contemporaneidade, transformando a nossa
maneira de pensar a crítica bem como a literatura do presente. Poderíamos citar um crítico como Alberto Pucheu que tem há algum tempo apontado para a
fertilidade de um exercício crítico pautado pela indiscernibilidade entre a
crítica, a filosofia, e a própria literatura. É o caso, por exemplo, de
sua leitura da obra de Antonio Cícero, publicada aliás em uma série destinada a
pensar nos limiares entre a crítica e a poesia. Refiro-me à Coleção Ciranda da Poesia, idealizada e
organizada por Ítalo Moriconi. No prólogo da Coleção aponta-se para um exercício
que motiva não apenas o trabalho de Pucheu, mas de outros críticos/poetas ou
poetas/críticos contemporâneos, participantes ou não da coleção:
Ciranda da Poesia é roda de leitura.
Poeta lê poeta que lê poeta. Crítico lê poeta que lê poema. Poema leitura de
poema, poesia e crítica, poesia é crítica. Leitura/escrita em movimento. A
Coleção Ciranda pretende levar ao leitor de poesia exercícios de análise
literária das obras de poetas contemporâneos. Aprender a ler poesia pela
prática da análise. Conhecer mais de perto alguns nomes significativos da
poesia e da crítica de hoje. Celebrar o trabalho do poeta. Estimular o trabalho
da crítica (MORICONI in PUCHEU, 2010, s/p - orelha).
Das
aventuras crítico-poéticas de Pucheu poderíamos apontar ainda o já citado livro
sobre Roberto Corrêa dos Santos, interessado em pensar no poema contemporâneo
enquanto ensaio teórico-crítico-experimental. Ou seja, trata-se nesse caso de
pensar filosoficamente e poeticamente na potência crítica, teórica e ensaística
da obra de Roberto Corrêa dos Santos. Segundo Pucheu, o poeta em questão leva a
demanda de uma crítica enquanto "atividade simultaneamente filosófica e
artística ou criadora ao extremo, acatando-a não apenas em seu texto como
também na própria concepção dos livros-objetos, de livros-de-artista"
(2012, p.10). Depreende-se da leitura crítica de Pucheu a poesia do poeta
Alberto Pucheu, tanto em relação à obra de Roberto quanto a de Giorgio Agamben.
Tal riqueza se manifestaria, então não apenas na obra de Roberto, mas também na
de Alberto[1].
Observemos um outro momento de leitura que se coloca em diálogo com essa
questão. Em um livro dedicado ao estudo da obra-pensamento de Giorgio Agamben,
Pucheu escreve:
Ao invés de se apropriar de seu objeto,
crítico é o pensamento que, através, de seus elementos constitutivos
colocadores dos signos de uma negatividade absoluta, resguarda a
inapreensibilidade e a inacessibilidade do objeto, mantendo sua pura e
constante liberdade. Fluente, deslizante no abismo do nada, tudo que se relaciona
com o positivo fica mantido em inteira contingência e suspensão. Ao invés de
apenas uma busca pelas condições de possibilidade do conhecimento, a crítica é,
primeiramente, uma garantia das condições de inacessibilidade ao objeto de
conhecimento do qual, entretanto, não abre mão, e de sua inapropriabilidade.
Destinando-se à reunificação da palavra ocidental fraturada, ela mistura o
filosófico ao poético na presentificação do negativo enquanto negativo, como
uma estância que se apropria do inapropriável devolvendo-o enquanto
inapropriável (PUCHEU, 2010a, 38-39).
Em
outros dois momentos do mesmo estudo, o poeta/professor/crítico avalia:
Se ainda se pode dizer que, como
sinalizadora da unificação possível do literário e do filosófico, a experiência
crítica trata da verdade, deve-se ao fato de que, no duplo sentido de seu
risco, nela, a verdade se arrisca e, arriscando-se, a crítica, como a
literatura e a filosofia, se apropria da linguagem da irrealidade, alcançando a
tarefa mais ambiciosa que jamais um ser humano confiou a uma criação sua (idem,
p. 39-40).
Isso não significa abolir um cancelar
para sempre as possibilidades de distinção entre os modos literários e
filosóficos da linguagem, mas, simplesmente, jogando com elas, brincando com
elas, restituindo-as à potência que as anima, amá-las, acreditar nelas a ponto
de as devermos destruir, falsificar, fazer delas uma nova felicidade, profaná-las,
usá-las e atualizá-las de maneira mais condizente com nosso tempo (idem, p. 42)[2].
Novamente,
o amor aparece como elemento fundamental da crítica em questão. E amar não está
desvinculado, aqui, de profanar.
Roberto Correa dos Santos
Alberto Pucheu, cuja crítica vem nos interessando sobremaneira nos últimos anos, tem apontado, num franco e fértil diálogo com a obra de Giorgio Agamben, para um pensamento que suplanta o mero caráter judicativo, alcançando a própria poesia, na sua dimensão inapreensível. Tal experiência pode ser tocada pelo universo da maquiagem, no qual a crítica "desenha, retoca, aumenta, retira, alonga, cobre, suaviza, interfere, enfim, ativamente no outro texto, descobrindo no antigo, novas redes de relações, outras possibilidades de contornos não antevistos, até chegar a composição de um novo texto" (2012, p. 60). Tal ideia é desenvolvida a partir da leitura da obra de Roberto Corrêa dos Santos, que pratica uma espécie de "ensaio-teoria-crítica-romance-poesia-conceito", levando a crítica ao que, no contexto das artes plásticas, foi chamado por Rosalind Krauss de "campo ampliado" ou "campo expandido". Trata-se de pensar a crítica a partir de um gesto interventivo (intervenção e não interpretação), ou mesmo a partir de "uma prática instauradora" (2012, p. 52). Escreve Pucheu ainda sobre Roberto: "Diante do texto abordado, diante do crime a ele cometido, tem-se uma crítica que assume para si a crueldade, a crueldade de uma crítica entendida, literária e criticamente, enquanto amor" (2012, p. 50).
[1]
Sobre a interessante e prolífica produção crítica de Alberto Pucheu destaco a
recente publicação do livro Kafka Poeta (2015),
no qual o ensaísta nos apresenta um olhar inusitado e poético sobre a "obra
menor", entenda-se textos curtos, do autor de O Processo; bem como o livro intitulado apoesia contemporânea (2014), que reúne boa parte de sua produção
crítica.
[2] Vejamos mais uma passagem de Pucheu sobre a
negatividade na arte/crítica contemporânea:
Nascido nesta ambiência, o
crítico enfrenta a contradição de encontrar o morto quando procurava o vivo, de
encontrar a sombra quando procurava a luz, de encontrar o inautêntico quando
procurava o autêntico, de encontrar o negativo quando procurava o afirmativo.
Esquecendo a arte, com seu conteúdo morto, sombrio, inautêntico, negativo; a
crítica aborda a arte com seu conteúdo. Do mesmo modo que, no império da
avaliação sob a medida do bom gosto, a arte procurou o mau gosto como saída
privilegiada, a arte do século XX se inclinou em direção ao que não pertencia à
arte, ou seja, estabeleceu como seu o privilégio da não arte, da arte. Fato que
ocorreu em manifestações como o ready made (...), causando a reversão da
compreensão do ato criador. Não à toa, aqui no Brasil, um dos artistas mais
importantes das últimas décadas do século XX foi Arthur Bispo do Rosário que,
interno na Colônia Juliano Moreira, nunca quis fazer arte, mas segundo suas
próprias palavras, obrigações a serem apresentadas perante o divino no dia do
Juízo Final (PUCHEU, 2010a, p. 36).
sexta-feira, 12 de agosto de 2016
Dois pontos de vista sobre o gênero ensaio: Jean Starobinski e César Aira
Jean
Starobinski, no texto "É possível definir o ensaio?", ensaiando sobre o ensaio, relembra a frase de Montaigne:
"Vou, inquiridor e ignorante", para acrescentar que "apenas um
homem livre, ou libertado, pode inquirir e ignorar". Ao
contrário dos regimes autoritários, que proíbem inquirir e ignorar, o ensaio
faz da liberdade do espírito o primeiro e maior objeto de seu desejo. Se por um
lado uma liberdade como essa parece hoje ser um bem "escassamente
compartilhado", por outro, parece também se apresentar como refúgio,
estância, morada da resistência e da reinvenção. É ainda Starobinski que,
interrogando sobre a possibilidade de se definir o ensaio, observa que a partir
de uma liberdade que escolhe seus objetos e inventa sua linguagem e seus
métodos, esta prática deveria saber aliar ciência e poesia, buscando ser, ao
mesmo tempo, "compreensão da linguagem do outro e invenção de uma
linguagem própria, escuta de um sentido comunicado e criação de relações
inesperadas no âmago do presente".
No
texto "O ensaio e seu tema", César Aira lembra de um procedimento
inventado por ele e outros amigos nos anos setenta com a finalidade de criar
ensaios. Tratava-se de um diagrama feito a partir de duas linhas em ângulo
reto, sobre as quais eram escritos duas vezes, na vertical e na horizontal,
termos como Liberação, Colonialismo, Classe Operária, Peronismo,
Estruturalismo, Psicanálise, Sexo etc. Ao acaso, uma palavra era ligada a
outra. Bastava pousar o dedo em qualquer lugar do papel e traçar, a partir
dele, a abscissa e a coordenada, para encontrar um tema, ou melhor, uma
combinatória de dois temas que funcionariam como o ponto de partida para a
escrita. O encontro com o tema, que nesse caso se dá a partir da formulação de
uma combinatória, seria fundamental no processo, já que o ensaio é "a peça
literária que se escreve antes de escrevê-la quando se encontra o tema". Mas como encontrar o tema sem antes escavá-lo?
quinta-feira, 11 de agosto de 2016
Sobre a essência e a forma do ensaio: carta a Leo Popper, de György Lukács (fragmentos para reflexão)
"Quando
falo do ensaio como obra de arte, o faço em nome da ordem (portanto de um modo
quase simbólico e impróprio) e apenas a partir do sentimento de que o ensaio
possui uma forma e se distingue de todas as outras formas de arte com
definitiva força de lei. E se tento isolar o ensaio com o máximo de
radicalismo, é justamente porque o considero uma forma artística".
"Na
ciência, são os conteúdos que atuam em nós; na arte, as formas; a ciência nos
oferece fatos e suas conexões; a arte, almas e destinos".
"Existe,
pois, uma ciência da arte; mas existe ainda um tipo completamente distinto de
exteriorização dos temperamentos humanos cujo meio de expressão na maioria das
vezes é a escrita sobre a arte. Digo na maioria das vezes porque existem muitos
escritos que, embora emanem de tais sentimentos, não têm nenhum contato com a
literatura e arte; neles, encontramos as mesmas questões vitais dos escritos
denominados de crítica, só que essas questões são dirigidas diretamente à vida,
dispensando a mediação da literatura e da arte".
"É
certo que há e tem de haver uma ciência da arte. E os maiores defensores do
ensaio são justamente os que menos podem renunciar a ela: o que eles criam
também precisa ser ciência, mesmo que sua visão da vida haja transcendido o
círculo da ciência. Se por um lado, seu livre voo geralmente é tolhido pelos
fatos imutáveis da seca matéria, por outro, o ensaio costuma perder todo o seu
valor científico, na medida em que, sendo uma visão de mundo, se antecipa aos
fatos e os manipula livre e arbitrariamente. Até hoje, a forma do ensaio, segue
sem concluir o caminho que sua irmã, a poesia, já percorreu há tempos: o do
desenvolvimento rumo à autonomia a partir de uma unidade primitiva,
indiferenciada com a ciência, a moral e a arte".
"O
ensaísta fala de um quadro ou de um livro, mas o abandona em seguida. Por quê?
A meu vero, porque as ideias desse quadro e desse livro se tornaram
preponderantes nele, porque ele esqueceu completamente todo o detalhe concreto,
utilizando-o apenas como ponto de partida, como trampolim. A poesia é anterior
e maior, é mais ampla e mais importante que todas as obras poéticas: é o mais
antigo sentimento vital do crítico literário, mas ele só pôde tomar consciência
disso em nossa época"
"O
ensaio é uma forma de arte, uma configuração própria e cabal de uma vida
própria e completa. Somente agora não soaria contraditório, ambíguo e equívoco
referi-lo como obra de arte e, ao mesmo tempo, ressaltar enfaticamente suas
diferenças em relação à obra de arte; o ensaio se posiciona diante da vida com
o mesmo gesto de uma obra de arte, mas apenas o gesto, a soberania de sua
tomada de posição, pode ser o mesmo; fora isso não resta nenhum contato entre
eles"
domingo, 7 de agosto de 2016
Papele: poemas sobre o corpo
Corpo-página: suporte do texto. Ou o Poema que mora no corpo. PAPELE: Papel-pele que o poeta tanto tateia quanto tatua. Ou a escrita do corpo incorporada no poema, ou o ato ou a arte do corpo se dobrar no movimento do poema. Prazer do texto: Pele que cintila entre duas peças de roupa; ou se insinua lá onde a veste se entreabre. Os poemas sobre o corpo que se apresentam aqui intentam num jogo de bem me quer e mal me quer despir a flor para descobrir a pele-palavra que se ensaia no jardim-poema onde o corpo habita. O poeta, como o fotógrafo, escreve com a luz, FOTO-GRAFA. E tal grafia se dá no poema, na página, como no corpo, tal qual tatuagem, cuja natureza é sempre selvagem e performática.
Caio Ricardo Bona Moreira
Caio Ricardo Bona Moreira
quarta-feira, 3 de agosto de 2016
Orquídea (da série: Fábrica de Flores)
A orquídea ophrys, com arte e engenho, faz do engano seu meio justo de ganhar a vida. A cada nova temporada, na melíflua serenata dos mantras e matagais, esta alteza que chamamos flor abre o guarda-roupa e se traveste de abelha, propagando além do visual policromado e brejeiro - com direito a asas e antenas -, o cheiro matreiro da fêmea mãe do mel. Jandaíra, mandaçaia, jataí ou manduri, quem sabe rainha. Finge, e finge tão completamente que nem ela sabe mais se é flor ou apenas uma abelha dormente. E na dormência de fêmea traduzida ou na mentira da apis mellifera transcriada, a orquídea ophrys, em decúbito ventral, mansa e docemente recebe o zangão sem fazer zum zum. O macho com seu destro garrancho de Pollock desenha velozmente e sem sucesso o quadro mais conhecido do anima mundi. Quando percebe o engano, furioso, voa para longe levando a seiva que ela sábia, santa e serena, depositou no ludibriado pobre operário. Tarde demais.
terça-feira, 2 de agosto de 2016
QUARENTA CLICS EM CURITIBA: ENTRE A POESIA E A FOTOGRAFIA, O DIA DO JUÍZO
Caio Ricardo Bona Moreira
A própria foto não é em nada animada
(não acredito em fotos “vivas”)
mas ela me anima:
é o que toda aventura produz.
R. Barthes
“Fotografia” quer dizer “escrever com a luz”.
Fotos. Grafeim. É o que o Pires faz.
Um poeta que escreve com a luz.
Logo vi.
P. Leminski
1 INTRODUÇÃO
Esse
artigo é o resultado de uma aventura.
Posso
interrogar-me inicialmente para ver se descubro o motivo de tal escolha. Por
que falar sobre a relação entre fotos e poemas? Em que momento a palavra deixa
de cumprir seu desígnio, entregando-se às impressões imediatas da fotografia,
que assume a função de dizer? Por que a foto me anima se não é em nada animada?
Num
primeiro momento, bastaria desenvolver uma reflexão para descobrir que a
relação entre a fotografia e a poesia, que transcende um método de análise, não
é uma simples questão de código. Fotos e poemas escapam daquilo que caracteriza
cada uma de suas peculiaridades, aproximando-se daquela afirmação do fotógrafo
Mário Rui Feliciani: “O homem fotografa o que não consegue descrever e descreve
o que não consegue fotografar”.
O
objetivo dessa aventura é pensar o livro Quarenta clics em Curitiba,
como um passeio pela cidade de Curitiba, bem como pelo Dia do Juízo, anunciado
por Giorgio Agambem. A publicação é o resultado de uma parceria criativa entre
Paulo Leminski e Jack Pires.
Pesquisando
na Fundação Cultural de Curitiba, entre alguns dos textos originais de Leminski,
encontrei Quarenta Clics em Curitiba[1].
Há alguns anos alimentara o desejo de manuseá-lo. Quarenta clics não era
mais visto em livrarias, bibliotecas, ou em sebos. No Brasil, muitos textos
interessantes deixaram de ser reeditados, chegando ao esquecimento do grande
público. Ao mirar as fotografias do livro, imaginei a cidade de Curitiba
reinventada pelos dois poetas, um da palavra, outro da foto. A história que
vemos na imagem é também nossa, aquela que inventamos no texto.
A
Curitiba do livro é uma cidade de gente simples, dos pipoqueiros, dos menores
abandonados, da velha senhora que, sentada no banco na praça, olha para lugar
nenhum. É uma Curitiba que não existe mais, apesar de os personagens, mesmo
escondidos, continuarem sendo os mesmos.
2 QUARENTA CLICS EM CURITIBA
O projeto do livro nasceu no final do inverno de 1976. Toninho Vaz
lembra que a iniciativa foi do empresário Luiz Henrique Garcez de Oliveira
Mello, que fundara a Editora Etecetera e escolhera como trabalho de estréia a
edição de um livro de Leminski (2001, p. 191). Jack Pires vinha tirando
fotografias da cidade de Curitiba há algum tempo. A idéia era de misturar as
fotos com poemas. Para a época, a idéia era inovadora, pois não era comum que
poetas realizassem esse tipo de experimentação. Nesse caso, as fotografias
exerciam uma outra função, não funcionando apenas como elementos meramente
ilustrativos, mas como um fator constitutivo de seu conjunto. Logo, não são as
fotos que ilustram os poemas. Ambos dialogam na construção de um terceiro
texto, aquele que demonstra que a cidade é feita de imagens e palavras, e o
livro é a própria cidade.
Jack Pires era um paulista especialista em fotos do cotidiano. Toninho
Vaz lembra o encontro do fotógrafo com o poeta:
(...)
certa vez ele apareceu na Cruz do Pilarzinho com dezenas de fotos 18 X 24, que
seriam espalhadas pelo chão para permitir um a visão global do material.
Leminski buscou uma pasta de poemas no escritório e, junto com Alice, passaria
horas selecionando os textos que se identificavam melhor com as fotos (VAZ,
2001, p. 192).
As páginas não foram numeradas, o que criou a idéia de que esse mapa
urbano não teria centro, periferia, começo e fim. O livro da dupla saiu um ano
depois de Catatau, aquele que seria considerado o texto mais
significativo da produção de Leminski. Quarenta clics parece ser uma
tentativa de transcender as maneiras tradicionais de dizer. Logo, o lançamento
do livro participa daquilo que chamo de pós-literatura, pois Leminski não se
satisfaz com a literatura tradicional. O trabalho imprimiu-se num espaço em que
o processo de criação estava além do que tradicionalmente se caracteriza como
literatura. Esse exercício permitiu que o poeta se lançasse numa produção
intersemiótica, não se contentando com as “maneiras convencionais de dizer”,
apesar de, ao mesmo tempo, nunca abandoná-las, visto que a idéia de velho/novo,
em Paulo Leminski, tem uma outra dimensão[2].
No mesmo período, Leminski voltou-se para a música popular compondo, por
exemplo, como Ivo Rodrigues, do grupo Blindagem; Marinho Galera; Moraes
Moreira; Itamar Assunção e Guilherme Arantes.
Não foi por acaso que o poeta afastou-se do Concretismo, partindo da alta
racionalidade prevista pelo movimento para a radicalidade da poesia feita para
ser cantada: “quero fazer uma poesia que as pessoas entendam” (LEMINSKI e
BONVICINO, 1999, p. 111).
Foi nessa época, depois da publicação de Catatau, em 1975, que começou a trocar cartas com Régis Bonvicino,
um amigo responsável por estabelecer uma ponte entre a capital paranaense e a
efervescência cultural do eixo Rio-São Paulo. Numa das cartas, o curitibano
afirmava serem os tropicalistas os responsáveis por essa mudança estética:
“[...] foi Caetano e Gil quem furou o papo do concretismo, e veja que a revolução
do Caetano e do Gil dependeu enormemente do plano pragmático: do livro para o
disco, para o show” (idem, p. 111). Pode ser percebida nessas cartas a paixão
do poeta que não separava a arte da vida. Essa paixão apontou para a urgência
da comunicação e da fomentação de uma produção cultural séria e contínua. É o
que pode ser lido no fragmento em que Paulo Leminski coloca seu trabalho num
horizonte além da literatura:
[...] acho que estamos depois da literatura / não é preciso mais
combatê-la / o que nós estamos fazendo já não é ela / a produção dos signos /
de bens simbólicos / de mensagens / já ultrapassou a barreira da cultura verbal
/ em plena conquista de um espaço intersemiótico (idem, p. 33 – 34).
Influenciado pelas leituras da semiótica desde o início de sua relação
com os concretistas, passando pela forte presença que a reflexão sobre
linguagem marcou em Catatau em toda a
sua poesia, Leminski levava agora ao extremo a idéia de que a revolução da
poesia passava necessariamente pelo plano pragmático. Esse gesto em que a
comunicação começa a ganhar peso na discussão de Leminski, falo da década de
70, faz com que o poeta afirme a necessidade de escrever para muitos, tomando
cuidado, ao mesmo tempo, para não deixar que a arte perca o rigor. Basta
lembrar que Catatau foi considerado
por muitos, como um texto difícil, o que fez com que o poeta repensasse o seu
trabalho num contexto de aproximação da poesia com o universo do cotidiano:
“quero ser claro. Quero ser comunicação. Banal – nunca. Óbvio – jamais” (1999,
p. 149). Nota-se agora o motivo do imediato entusiasmo que levou Leminski a
trabalhar com Jack Pires.
3 IL GIORNO DEL GIUDIZIO
O que chama a atenção na
fotografia não é propriamente o ato de parar o fluir da vida, permitindo que
alguém observe atentamente cada detalhe, mas principalmente a sensação de
movimento que não cessa com a fotografia, projetando seus efeitos numa dimensão
quase mágica, aquela do “isso ainda está aqui”, ou “isso realmente aconteceu”.
O momento da rápida impressão se estende num reflexo daquilo que ainda poderia
estar acontecendo e também sobre a maneira como determinado ato está sendo
interpretado. Aqui, o que interessa, então, não é apenas o significado de uma
imagem, tomado como o outro lado de um determinado significante, mas a própria
expressão que engloba a si mesma como constituinte da significação. Nesse caso,
poesia e fotografia acabam criando um universo próprio, como se o livro não
fosse nada mais do que uma cidade, e a cidade, nada mais do que palavras e
imagens.
Mas o que a fotografia reproduz? A resposta vem de Barthes, um escritor
apaixonado pela Fotografia:
O que a fotografia reproduz ao infinito só ocorreu uma vez: ela repete
mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente. Nela, o
acontecimento jamais se sobrepassa para outra coisa: ele reproduz sempre o corpus
de que tenho necessidade ao corpo que vejo; ela é o Particular absoluto, a
Contingência soberana, fosca e um tanto boba, o Tal (tal foto, e não a
Foto) em suma a Tique, a ocasião, o Encontro, o Real, em sua expressão
infatigável (BARTHES, 1984, p.13).
O registro fotográfico do cotidiano seria impossível na metade do século
XIX, pois o movimento das pessoas, marcado na cadência dos transeuntes, ficaria
ausente da imobilidade das coisas; as casas, praças e esquinas não andam. Logo,
o cotidiano não seria nada mais do que dois tipos de fantasmas, os que não
aparecem[3],
pois não estão parados, neste caso, os homens, e aqueles que ganham um
semblante fantasmagórico justamente por estarem parados, como o francês que
engraxava seus sapatos em Boulevard du Temple. É esse gesto ínfimo de
“ficar parado” que revela a grandiosidade do registro do cotidiano por meio da
fotografia. É o que Agambem cita como Il Giorno del Giudizio:
Non saprei fantasticare un’immagine piú adequata Del Giudizio
Universale. La folla degli umani – anzi l’umanità intera – è presente, ma non
si vede, perché il giudizio concerne uma sola persona, uma sola vita: quella,
appunto, e non altra. E in che modo quella vita, quella persona è stata colta,
afferrata, imortalata dall’angelo dell’Ultimo Giorno – che è anche l’angelo
della fotografia? Nel gesto piú banale e ordinario, nel gesto di farsi lustrare
le scarpe! Nell’istante supremo, l’uomo, ogni uomo, è consegnato per sempre al
suo gesto piú infimo e quotidiano. E tuttavia, grazie all’obiettivo
fotografico, quel gesto si carica ora del peso di un’intera vita,
quell’atteggiamento irrilevante, persino balordo compendia e contrae in sé il
senso di tutta un’esistenza (AGAMBEM, 2004, p. 8).
O que se coloca como fundamental nessa relação entre a fotografia e a
poesia é a relação que cada uma mantém como a realidade. A foto possui a
teimosia do referente, no dizer de Barthes. Insiste em “copiar” a realidade.
Nela, as coisas do mundo estão representadas com uma fidelidade não encontrada
nem mesmo nos melhores pintores renascentistas. Nela, os homens continuam
repetindo eternamente o gesto irrepetível, o Dia do Juízo, como diria Agambem.
Esse paradoxo com o qual convive a fotografia é indispensável para a sua
própria existência. E a poesia?
A
relação da palavra com a realidade é bastante difusa. A teimosia do referente
está exilada da palavra. E essa noção, parece-me, só pode ser entendida como um
jogo. A palavra hesita em copiar o real, funcionando como um distanciamento.
Esse fato é julgado desde a Antigüidade clássica com a cautela de quem tem medo
da palavra, da violência dessa linguagem, já que a palavra tem o poder de
distorcer a realidade. Não é à toa que os poetas são expulsos do paraíso da República,
em Platão. O que explica tal violência é a noção de Phármakon,
significando ao mesmo tempo o veneno da escritura e o seu remédio. A escritura
foi vista pela metafísica ocidental como um mero suplemento da fala, e na
maioria das vezes, entendida como um perigo. Convém lembrar que a expressão phármakon,
polissêmica por natureza, deve ser pensada além das oposições que se
constituíram no seio da metafísica. A carga polissêmica da palavra acabou
direcionando-se para a idéia de veneno. Nesse sentido, não seria um
remédio, pois a fala perderia seu poder mnemotécnico, sofrendo o jogo da
escritura, distanciando-se das verdades da alma. Por isso, a tentativa de
conter a escritura não conjurando-se o “ouvir-se falar”. Nesse olhar, a
fotografia parece ser menos “rebaixada” do que a escritura, pois nela o
referente marca a sua presença. Mas não seriam as fotografias também
mentirosas? No Dia do Juízo, foto e poesia parecem fazer um acordo. Já não
interessa discutir qual dos dois elementos melhor se relaciona com a realidade
já que tudo passou a ser um grande texto, que a princípio destrói a realidade
para então reconstruí-la no jogo das diferenças. Tudo agora parece se
transformar naquela faísca de que fala Leminski no prefácio de Quarenta
clics em Curitiba: “(...) aproximamos fotos e poemas como ideogramas
japoneses. Entre foto e poema – a faísca de uma nova poesia (LEMINSKI;
PIRES,1990).
Se o homem fotografado de Jack Pires insiste
em continuar existindo, o homem na poesia de Leminski é afastado por meio dos
jogos de linguagem que transformam as fotos em poesia. A foto faz da coisa uma
imagem. A palavra faz da imagem um texto e das coisas uma morte, julgando a
capacidade da imagem de “copiar” o real, como no dia do acerto de contas.
4 UM PONTO ENTRE
A POESIA E A FOTOGRAFIA
Os poemas de Quarenta clics em Curitiba aproximam-se muito da forma do
haicai, tipo de poesia japonesa muito explorada por Leminski. Os textos podem
ser caracterizados como fragmentos.
Roland Barthes dedicou grande parte do curso “A preparação do Romance”, mais especificamente todo o volume
1, na análise da importância do
fragmento no processo de criação de um romance. O haicai, fragmento poético por
excelência, clic fotográfico verbal, é bastante comentado pelo escritor francês.
A impressão causada por apenas três versos pode ser comparada, mesmo em
se tratando de códigos diferentes, à apreciação de uma fotografia.
No prefácio do livro A preparação do romance, em que foram
compiladas as aulas do curso homônimo ministrado por Barthes, no Collège de
France, Nathalie Léger observa que as análises expostas na aula de 17 de
fevereiro de 1979, que abordavam a relação entre a fotografia e o haicai,
motivaram o escritor a escrever A câmara clara (BARTHES, 2005, p. XVII).[4]
Na aula citada, o haicai e a fotografia foram comparados:
Minha proposta é que o haicai se aproxima muito do noema da fotografia:
“Isso-foi " cinema também; mas é uma aproximação mentirosa, que é muito diferente
da aproximação mediatizada por um significante heterogêneo, as palavras,
portanto não falsa, mas de uma outra ordem de credibilidade. (...) Portanto
mina proposta de trabalho é que o haicai dá a impressão (não a certeza: urdoxa,
noema da fotografia) de que aquilo que ele anuncia aconteceu, absolutamente (2005,
p. 148).
Esse é apenas um dos fatores que aproximam os dois tipos de texto.
Outros poderiam ser apontados. A proximidade entre eles pode ser observada
também na idéia de que em ambos nada pode ser acrescentado: “(...) o haicai não
pode se desenvolver (aumentar), a foto também não, não podemos acrescentar nada
a uma foto, não podemos continuá-la: olhar pode insistir, se repetir,
recomeçar, mas ele não pode trabalhar (...) (BARTHES, 2005, p. 151).
Barthes situa o exercício de anotação (prática de anotar) como uma
importante experiência na preparação de um romance. Ao considerar o haicai como
uma forma exemplar de anotação, elege este tipo de escrita como o “ato mínimo
de enunciação”.
Se o objetivo do curso era analisar o processo de confecção de um romance,
caminhando do primeiro gesto de representação de um momento até a caracterização
de um ponto final que transforma as anotações em um conjunto chamado romance,
nada mais justo do que partir do haicai. É nesse mesmo caminho que tento ler
nas linhas de Quarenta clics, e também em suas fotos, ecos da
manifestação desses átomos que concatenados disseminam no texto os sabores e
saberes daquilo que chamamos “fragmentos”.
Na tentativa de conceituar o haicai, deve-se levar em consideração
inicialmente que não se trata apenas de escrever três versos – dois deles com
cinco sílabas e um com sete. Esse esquema de metrificação nem sempre é seguido
pelos escritores. O haicai acabou por sofrer transformações e Leminski é um dos
poetas que criaram haicais fora desse esquema tradicional. No dizer de Barthes,
o haicai é “a conjunção de uma ’verdade’ (não conceitual, mas do Instante) e de
uma forma” (2005, p.52), o que Leminski representa num de seus poemas de Quarenta
clics:
1º dia de aula
na sala de aula
eu e a sala
(LEMINSKI; PIRES, 1990)
Os fragmentos, vistos sob esse aspecto da anotação que concatena verdade
e forma, almeja representar fortes impressões vividas num determinado instante,
imprimindo-as em poucas palavras, como uma espécie de clic fotográfico.
A abertura dos sentidos é um passo importante nesse estado de poesia
“estalo”. A imagem agora é a de um homem olhando para uma mulher que olha
talvez para lugar nenhum:
isso?
aqui
já?
assim?
(LEMINSKI, 2000, p. 171).
O poeta passa a ser o tradutor desse instante entre o pulo do sapo e o
barulho da lagoa – o próprio silêncio. Nesse poema, a foto mostrava uma mulher
sentada num banco de praça ao lado de uma sacola de compras :
Domingo
Canto dos passarinhos
Doce que dá pra por no café
(LEMINSKI; PIRES, 1990).
A presença do sujeito dá lugar a uma espécie de rarefação do ser na
linguagem. Talvez por isso Leminski tenha considerado o haicai como o melhor
meio de expressão do “satori”, uma espécie de momento de iluminação. O satori
seria uma das manifestações do neutro.
O “satori” está além do campo da racionalidade e é analisado por Barthes
como uma espécie de Insight, “aquilo que não pensamos (...) = o que não
está numa continuidade lógica prevista” (BARTHES, 2004, p.240). Logo, o haicai
transcende a lógica da cultura ocidental, preocupada com a abstração de
conceitos em busca de uma racionalização. O bom haicai seria uma experiência de
iluminação – um “satori” – “luz interior da superação dialética dos contrários”
(LEMINSKI, 1997, p.89).
Essas informações já bastariam para mostrar que a mesma atenção que Leminski
direcionava a mitologia grega poderia ser enfocada também na prática do haicai.
Vendo a poesia como bem mais do que somente palavras, Leminski, na
sessão kawa cauim – Desarranjos Florais – de Distraídos Venceremos
apresenta o ideograma kawa que sintetizaria para o poeta a experiência
do haicai: “o ideograma de kawa, ’rio’, em japonês, pictograma de um
fluxo de água corrente sempre me pareceu representar (na vertical) o esquema do
haicai, o sangue dos três versos escorrendo na parede da página” (LEMINSKI,
2001, p. 76).
O valor atribuído à cultura oriental pressupõe a disciplina e o rigor de
um “samurai”. Leminski, na adolescência, estudou no mosteiro São Bento, em São
Paulo. Lá, ele pôde entrar em contato com outras línguas, com a religião, com a
literatura clássica e toda a fonte de saber que jorrar dela e, que mais tarde,
seria base para a erudição de Catatau.
O silêncio do mosteiro serviria de inspiração para o aprimoramento.
A
impressão que esse momento causara seria tema de um de seus poemas (2000,
p.34):
(...) a ordem sabe que tudo é
santo
a hora a cor a água
o canto o incenso o silêncio
e no interior do mais pequeno
abre-se profundo a flor do mais imenso.
A disciplina praticada no mosteiro se estendeu ao longo de sua vida,
pelo menos no que se refere à prática poética: “Trabalho à noite. Todas as
noites. A disciplina de um copista beneditino. Até as cinco da manhã. Essas
horas da madrugada, quando escrevo as minhas coisas, eu não entregaria por
nada”. (LEMINSKI 1999, p. 06).
Esse
processo metódico que sempre moveu vários poetas serve como condição para o já
citado aprimoramento. Para Barthes (2005a, p.242), grandes escritores foram
“animados de uma vontade incessante: vontade de trabalho, de correção, de
cópia, exercendo-se em todas as condições possíveis: de saúde, de desconforto,
de miséria afetiva, energia verdadeiramente corporal”. Cada um, dentro de sua
“teimosia”, estabelece seus horários particulares. Leminski, assim como
Flaubert, adormecia geralmente depois das cinco horas da manhã. Essa teimosia,
para quem queria que tudo fosse poesia, não escapou à regra:
carrego o peso da lua,
três paixões mal curadas,
um saara de páginas,
essa infinita madrugada:
viver de noite
me fez senhor do fogo
A vocês, eu deixo o sono.
O sonho, não.
Esse, eu mesmo carrego
(LEMINSKI, 2001,
p.40)
5
tentando fotografar uma conclusão
A caminho de um quase-método, a tentativa aqui é de abandonar, pelo
menos provisoriamente, as questões históricas e culturais, para perceber aquele
lugar onde poemas e fotos se transformam em poesia. Em Quarenta clics,
várias fotos que podem surpreender devido a sua capacidade de mostrar as chagas
sociais, mas é somente interagindo com o poema que surge aquela faísca citada
por Leminski.
O exercício de deixar de lado a cultura, a história, permite que, mesmo
momentaneamente, as páginas avulsas possam ser experimentadas em si
mesmas.
O que permite abandonar o olhar técnico sobre a fotografia é justamente
o “sentimento”: “(...) vejo, sinto, portanto noto, olho e penso” (BARTHES,
1984, p. 39). E é esse olhar que se estende aqui. O pensamento sobre a foto e o
poema não pode ser analisado sem olhar para o motivo da escolha: “gostei dessa
foto e não aquela”. Essa escolha, portanto, não está distante do sentimento que
elas podem provocar.
Uma marca que pode chamar a atenção numa cena captada pela experiência
de um fotógrafo que mira todos os horizontes possíveis e que serão captados
pela máquina é justamente a espontaneidade do cotidiano, fruto talvez de um
“satori urbano”. É aquela situação que é captada inocentemente pelo fotógrafo
que chama a atenção de Barthes: “Certos detalhes poderiam me “ferir”. Se não o
fazem é sem dúvida porque foram colocados lá intencionalmente pelo fotógrafo”
(BARTHES, 1984, p. 75).
O interessante entre esse misturar poemas e fotos, que acontece de uma
maneira quase mística, é o elo criado entre o mundo da foto e o mundo da
imagem, pois cada um criou seu texto na solidão de quem não sabe aonde esse
trabalho chegaria. As fotos parecem indicar para mim um certo apoio mágico para
os poemas e estes parecem interferir em meu olhar sobre a foto, como se o
poeta, mesmo sem saber, me assoprasse um sentido. Buscá-lo só pode ser uma
aventura.
6 REFERÊNCIAS:
AGAMBEM, G. Il Giorno del Giudizio. Roma:
Nottetempo, 2004.
BARTHES, R. A Câmara clara. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
______ A preparação do romance I. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
______. A preparação do romance II. São
Paulo: Martins Fontes, 2005a.
______. Neutro.
São Paulo: Martins Fontes, 2004.
LEMINSKI, P. Anseios
Crípticos. Curitiba: Pólo Editorial do Paraná, 1997.
______. DIÁLOGO. In: Série Paranaenses.
Curitiba: ed. UFPR, nº 2, 1994.
______. Distraídos Venceremos. São Paulo:
Brasiliense, 2001.
______. La vie em close. 5. ed. São Paulo:
Brasiliense, 2000.
LEMINSKI, P.; BONVICINO, R. Envie meu Dicionário. Cartas e alguma crítica. 2. ed. São Paulo:
editora 34, 1999.
LEMINSKI, P.; PIRES, J. Quarenta clics Curitiba.
2 ed. Curitiba: Etcétera, 1990.
POUND, E. ABC da Literatura. São Paulo,
Cultrix, 1970.
VAZ, T. Paulo
Leminski – o bandido que sabia Latim. Rio de Janeiro: Record, 2001.
[1] A
primeira edição do livro é de 1976, contando com apenas 300 exemplares. A
segunda edição é de 1990 e patrocinada pela Secretaria de Estado da Cultura do
Paraná.
[2] Influenciado por Ezra Pound, Leminski
defendia que a vanguarda não se incompatibiliza com o velho, mas sim tem
melhores possibilidades de mostrar o que ela tem de novo (1999, p. 63). Advém
dessa perspectiva a noção de Paideuma. Ezra Pound, em ABC da Literatura (1970, p. 32), afirma que a
literatura é “linguagem carregada de significado”. Para ele, a literatura não
existe no vácuo: “os bons escritores são aquêles que mantêm a linguagem
eficiente” (1970, p. 36). O conceito de “paideuma”, enfocado como uma tradição
revisitada, pode ser mais facilmente compreendido se associado com algumas das
classes de pessoas que buscam “elementos puros”, trabalhadas pelo teórico. Ele
as classifica em: inventores, aqueles que descobriram um processo de
criação; os mestres, que combinam um certo número de processos; os diluidores,
que vieram depois dos dois primeiros e são capazes de realizar bem o processo; os
bons escritores sem qualidades salientes; os beletristas que realmente
não inventaram nada, mas se especializaram na arte de escrever; e os
lançadores de moda, que, para Pound, são incapazes de ordenar o seu conhecimento
sobre a arte. Enfocando a importância de alguns autores clássicos, Pound passa
a ser bastante revisitado pelos poetas que integraram o concretismo. A
valorização do conceito de paideuma demonstra que os concretistas estavam muito
preocupados com a questão histórica. Essas posições se delineiam como um
subsídio teórico no pensamento de Leminski sobre a produção literária. Na
década de 70, Leminski começa a defender o abandono da preocupação com o
Paideuma, é o que pode ser observado em Envie meu Dicionário (1999).
[3] As
imagens gravadas em daguerreótipo não registravam as pessoas em movimento. Era
necessário que o fotografado ficasse em repouso para que sua imagem pudesse ser
gravada.
[4] Em
A câmara clara, Barthes não desenvolve uma análise profunda entre a
relação haicai-fotografia, limitando-se a fazer alguns comentários. No entanto,
algumas das idéias presentes na aula do dia 17 de fevereiro foram prolongadas
no livro, como sua meditação sobre o tempo, o desvanecimento das formas e a
cintilação de algumas fantasias (BARTHES, 2005, p. XVII).
"Quarenta Clics em Curitiba: entre a poesia e a fotografia, o Dia do Juízo", publicado originalmente em "FACE em Revista", nº9, em 2006)
segunda-feira, 1 de agosto de 2016
Crítica como invenção
Há alguns anos, José Castello (2007), crítico-romancista-ensaísta-contista-jornalista, publicou na extinta revista EntreLivros - que circulava nas bancas de jornais -, uma leitura da novela Um Copo de Cólera, de Raduan Nassar. A ideia era, a partir dela, analisar os motivos que levaram o autor de Lavoura Arcaica a desistir de escrever. Não nos interessa aqui esmiuçarmos a leitura do ensaio, que pode ser lido na integra na internet (texto aqui), mas apenas apontar para um curioso procedimento de leitura explorado pelo escritor/crítico. Ao invés de analisar meticulosamente o livro de Nassar, ou dos motivos que o levaram a deixar de escrever, Castello dissemina uma espécie de crítica criativa, logo ensaística, ao garantir as condições de inacessibilidade da obra. Vejamos.
Depois de considerar Raduan Nassar um
"escritor do não", inspirado na galeria de Bartlebys de Enrique Vila-Matas
- em diálogo com Herman Melville -, e de
se perguntar sobre os motivos que levaram o escritor a parar de escrever, o
crítico nos informa, explorando a primeira pessoa do singular (incomum no
universo da crítica, mas bastante presente no âmbito do ensaísmo) que, numa
terça-feira escura, em São Paulo, dedicou-se a reler Um copo de cólera, convencendo-se de que o livro guarda uma
resposta para os motivos que levaram o autor ao abandono da literatura.
Inicia-se aí uma breve narrativa. Com uma pergunta na cabeça, o crítico visita
a Pinacoteca Paulista e confessa se deter no conjunto dedicado ao século XIX,
concentrando-se em três telas de Almeida Júnior, a saber Leitura (1892), O Importuno
(1898) e Saudade (1899).
Saudade
O Importuno
Leitura
Castello
escreve que, enquanto observava os quadros, a novela de Raduan não lhe saía da
cabeça. Inicia-se, então, um processo crítico bastante curioso, pois, ao invés
de criticar, julgar ou interpretar o romance e/ou as telas, o ensaísta
contenta-se (e contentar-se implica sempre numa espécie de emoção e alegria) em
estabelecer relações curiosas entre as obras de Almeida Júnior e Raduan Nassar,
em imaginar associações inusitadas. Interessante perceber que essas relações
não estão dadas a priori. Em
princípio, não há nada em comum entre as pinturas do realista e a novela de
Raduan. É o crítico que inventa essas relações, que só passam a existir depois
de imaginadas. A obra se mantém para nós como enigma, ou seja, o crítico
garante as condições de inacessibilidade do objeto. Castello encerra o texto
apontando justamente para o aspecto inventivo necessário à leitura, ou seja à
crítica:
Saio da Pinacoteca certo
de que as telas de Almeida Júnior me ajudaram a ler Raduan. Leitores precisam,
sempre, experimentar novos caminhos (como picadas na mata, feitas a golpes de
facão) para, enfim, chegar a ler. Não, Almeida Júnior não me ajudou a entender
Um copo de cólera. Livros não existem para o entendimento, mas para a invenção.
Inventamos novas maneiras de ler os mesmos livros. Sobre livros, abrimos outros
livros, e nada mais. Mas, como o importuno que se esconde atrás da cortina,
como o retrato que não se deixa ver, como o livro que não podemos ler, os
livros continuam inacessíveis. Vem-me a sentença de Borges: “A literatura é um
eixo de infinitas relações”. Quando nega nosso desejo de sentido, e faz desse
Não um enérgico Sim, a literatura afirma sua grandeza (2007, s/p).
Inventar novas maneiras de
ler talvez seja a função mais importante da crítica hoje, um tempo no qual
promover o mero julgamento da obra parece não fazer mais sentido algum. Pensar
nas infinitas - ou pelo menos indefinidas -, relações que podem se estabelecer
por meio de um procedimento de (des)leitura criativa é uma forma de devolver
potência não apenas para a crítica, mas principalmente para o texto literário.
Nunca mais leremos Raduan com os mesmos olhos depois de mirar os quadros de
Almeida Júnior depois de mirados por José Castello. É nesse sentido que me encanta
o trabalho de críticos-criativos como José Castello, Alberto Pucheu, Raúl
Antelo, Alexandre Eulálio, Eduardo Portela, Sebastião Uchoa Leite, Affonso
Ávila etc. Cada um com uma perspectiva teórico-crítica bastante diferente, com
seu estilo, em seu tempo, mas todos exímios inventores de procedimentos.
Certamente, cada um mereceria um estudo aprofundado à parte. Poderíamos citar
também, a título de curiosidade, um teórico como Georges Didi-Huberman, que não
é um crítico avan la lettre, mas que
produz a todo momento hibridismos entre a teoria/crítica/filosofia e a
arte/literatura/poesia/dança. Tome-se como exemplo a relação entre a o flamenco
de Israel Galván, as Soledades
barrocas e o conceito de trágico nietzschiano, em El Bailaor de Soledades (2008).
A relação entre o cinema/pensamento de Pasolini com o gesto de resistência
que se depreende do voo (vaga)iluminado dos vaga-lumes numa noite de escuridão,
em Sobrevivência dos Vaga-lumes (2011).
O jogo de cores que se prolifera entre os vitrais religiosos e o trabalho
pictórico-fotográfico de James Turrel, em El
Hombre que Andaba en el Color (2014). O voo das borboletas com o saber
posto em movimento pelo cinema e pelas artes plásticas, em Falenas (2015); A sobrevivência do horror de Auschwitz nas lascas
de um tronco de bétula, no ensaio poético/fotográfico intitulado Cascas (2013); entre outros
textos-ficção desse historiador da arte que poderiam ser compreendidos como
poético/ensaísticos.
Lembremos que no texto
de Castello a crítica se dá justamente a partir de um passeio pela Pinacoteca
Paulista. Narrar, ensaiar e criticar são elementos, aqui, indiscerníveis. Como
não lembrar nesse falar-flanar crítico
do passeio de Gonzaga Duque evocado no texto "Salão de 1905" -
inserido posteriormente no livro Contemporâneos
(1929) - onde já se prefigura o conceito de crítica de arte tomada como
busca inquieta do objeto ausente. Não seria descabido
considerar a crítica de Castello como ensaística. Lembremos que, curiosamente,
ela se apresenta no universo da crítica cultural jornalística, ou seja, fora do
âmbito acadêmico. É esse tipo de experiência ao mesmo tempo crítica e poética
que parece hoje não ser mais exercitada no ambiente universitário. Os motivos
disso não conseguimos mapear com precisão: predomínio de uma concepção ainda
cientificista/positivista no exercício crítico? Heranças do Formalismo, da Nova
Crítica, do Estruturalismo? Falta de leitura ou de gosto pela poesia?
Cumpre observar que nessa
concepção crítico/poética, o leitor/crítico precisa alcançar em seus
procedimentos uma criatividade semelhante a do próprio poeta. Não que o crítico
necessite ser de fato um poeta, mas sem tino poético ficaria difícil ler a
literatura de forma literária. Resquícios conservadores poderiam considerar
essa experiência como um devaneio egotista, logo frágil e pouco eficaz como
fundamento crítico.
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