sábado, 29 de junho de 2019

Sobre Kafka, Hitchcock, Orson Welles e a recente política brasileira: um olhar sobre o documentário Democracia em Vertigem, de Petra Costa




Próximo do nascimento de minha segunda filha, assisti ao documentário “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa, que acaba de ser disponibilizado na plataforma Netflix. Ao longo da narrativa, fui sendo tomado por uma triste emoção que me levou a perguntar: Que Brasil será o país de minhas filhas? Que país será o Brasil dos filhos de todos os outros brasileiros? Esse sentimento de apreensão não brotou só agora com o filme. Ele já vem se delineando há alguns anos, no entanto, “Democracia em Vertigem” me fez lembrar com vigor dos acontecimentos políticos que têm transformado o Brasil em palco de um drama que, como nas antigas tragédias gregas, apresentava a transição de um estado de felicidade à infelicidade nos caminhos de um herói cujo destino era sofrer. Lembrando do filme “Um corpo que cai”, de Alfred Hitchcock, cujo título original é “Vertigo”, constato que nossa democracia está atravessando um momento de grande desequilíbrio. Se a vertigem nos dá uma falsa sensação de movimento de rotação, isso significa que enquanto alguns pensam que estamos caminhando para frente, talvez estejamos apenas nos desequilibrando numa trágica e inevitável lei do eterno retorno. Talvez estejamos caminhando para trás.



Sou um admirador do cinema de Petra Costa desde que vi o belo documentário “Elena”, que reflete poética e autobiograficamente sobre o suicídio de sua irmã. Percebi ali uma sensibilidade cinematográfica que faz jus ao trabalho de documentaristas como Eduardo Coutinho e João Moreira Salles. A influência é visível. Petra articula com propriedade a linguagem artística de suas narrativas com questões íntimas, usando em seus filmes inclusive imagens de arquivo pessoal. No caso do novo filme, podemos vislumbrar um olhar pessoal sobre a decadência de nossa jovem democracia que cresceu junto com a diretora. Nesse sentido, a história é especial também para mim, porque minhas mais remotas lembranças estão ligadas às manifestações em prol da democracia no início dos anos 80, bem como a morte de Tancredo Neves e o processo de redemocratização, a que eu assistia pela TV entre desenhos infantis. Envelhecemos agora tão jovens.     


“Democracia em Vertigem” começa com a prisão de Lula, mesclando cenas de protestos a favor e contra a condenação, bem como tomadas do interior do Sindicato dos Metalúrgicos, em São Bernardo, onde podem ser vistos os bastidores da prisão. Logo depois, a voz de Petra Costa começa a narrar de forma melancólica, tendo como fundo visual uma panorâmica do interior do Palácio do Alvorada, em Brasília. A diretora fala sobre a dura construção de uma estabilidade política que parece ter durado pouco. A narradora teme que a nossa democracia tenha sido um sonho efêmero. Imagens de sua infância vão sendo intercaladas com registros do movimento das Diretas Já. É aí que entra Lula e sua importância histórica no processo de redemocratização. Comenta-se, in media res, a criação do Partido dos Trabalhadores, sua ascensão, bem como uma série de derrotas presidenciais até a eleição de Lula, em 2002, com posse em 2003. A diretora apresenta as contradições de seu governo, que foram desde o mensalão até a subida do Brasil no ranking das maiores economias mundiais, em tempos de crise internacional, evocando com nostalgia a saída de milhões de brasileiros da zona de pobreza. Petra celebra as conquistas, mas não perde o senso crítico ao apontar falhas do governo, inclusive aquelas ligadas a uma perigosa aliança com o PMDB, que seria peça-chave para a derrocada do governo alguns anos depois. Na sequência, assistimos à eleição de Dilma e ao início de uma grande crise nacional no final de seu primeiro mandato, em 2013, tensão que foi sendo agravada por uma série de motivos até o processo que motivou seu impeachment.


A tônica do documentário está nos acontecimentos que precipitaram a saída de Dilma, como as manifestações que tomaram as ruas do país, muitas vezes influenciadas pela grande mídia, que foi profundamente parcial, passando pelo advento da Lava Jato, que ganhou infelizmente um ar partidarista ao longo de seu processo, até a ópera simultaneamente bufa e grotesca da votação no Congresso para a aprovação da instauração do impeachment. Dali, sairiam nossos próximos líderes, com seus votos sensacionalistas, seus discursos altamente questionáveis e sua esquizofrenia em relação a uma suposta invasão comunista em nosso país, dignas de um roteiro de Orson Welles, em “A Guerra dos Mundos”, inspirado em H.G. Wells. Tudo isso tendo como pano de fundo uma movimentação clandestina movida pelo PMDB disposto a comprar o silêncio de Cunha para manter Michel Temer no poder, o que veio à tona por meio da escuta telefônica de uma conversa entre Romero Jucá e Sérgio Machado. Petra Costa apresenta também o parecer de juristas internacionais apontando problemas no julgamento de Lula, que não teria sido imparcial, o que os adventos das últimas semanas envolvendo o atual Ministro Sérgio Moro têm consignado.



Há uma complexidade que está por trás de todos os acontecimentos políticos que desencadearam não só o impeachment de Dilma, a prisão de Lula e a emergência de uma ultradireita em nosso país, cujo espaço aqui é insuficiente para ser esmiuçada. O documentário de Petra Costa, em suas quase duas horas de duração, consegue resumir com nitidez os fatos. O momento mais trágico talvez seja aquele em que Dilma confessa ser o próprio Josef K, personagem do romance “O Processo”, de Franz Kafka.

  

Em certo momento do filme, a narradora observa que na construção de Brasília o povo foi esquecido, e a cidade acabou se solidificando em cima da corrupção. Petra observa que é a história de um país rachado que estamos herdando. A história da família da própria diretora está repleta de contradições já que, ao lado dos ideais de direita de seus avós, filhos de uma elite mineira tradicional, estão os ideias de seus pais, que sonharam com uma democracia nos anos 60 e 70, tornando-se militantes contra a ditadura que chegaram a viver na clandestinidade. As próximas cenas desse filme estão ainda para ser escritas. Que nossos filhos não cresçam se sentindo envergonhados por nós. Que a vertigem seja passageira.

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 29 de junho de 2019.

sexta-feira, 14 de junho de 2019

Coisas da Argentina



Dentre as literaturas latino-americanas, aprecio consideravelmente a da Argentina, em especial aquela produzida pelos contemporâneos. Para além de Jorge Luis Borges e Júlio Cortázar - autores que dispensam comentários -, gosto muito de Alan Pauls e Cesar Aira (já escrevi sobre eles neste Caiçara). São escritores muito diferentes, no entanto bastante comprometidos com uma linguagem sofisticada e enredos bem elaborados, bem como fieis a um projeto literário muito criativo e singular. Gosto também de Martin Kohan, mas não tanto. Seus temas são bons, porém suas narrativas e o trato com a linguagem (pelo menos dos livros que li) em geral ficam devendo. Gosto é gosto, não se discute. Encantam-me as obras de Leónidas Lamborghini, de seu irmão Osvaldo Lamborghini e de Rodolfo Fogwill, autores ainda pouco conhecidos no Brasil. Aprecio o neobarroco Néstor Perlongher, que chegou a morar no nosso país durante alguns anos. Tenho lido com muito interesse os livros de Daniel Link, escritor que tive o prazer de conhecer e reencontrar em alguns eventos literários no Brasil e na Argentina. Recentemente, descobri a poesia de Ricardo Daniel Piña, poeta que tive também o prazer de conhecer de uma maneira bem inusitada. Vou contar.
Certa vez, passeando pela Calle Corrientes, no centro de Buenos Aires, parei para observar jornais em um dos tradicionais “kioscos”, aquelas bancas de revista que estão situadas no meio das calçadas em qualquer grande cidade. Em muitos “kioscos” de Buenos Aires, podem ser encontrados exemplares das famosas cartoneras, livros confeccionados de forma artesanal e com baixo custo por uma editora chamada Eloísa Cartonera. Os livros possuem capa de papelão e este é comprado de uma cooperativa de catadores (cartoneros), daí o nome da publicação. Curiosamente, a aparente simplicidade da cartonera contrasta com a qualidade dos autores editados por ela. A Eloísa seleciona muito bem os livros que edita, geralmente escritos por grandes nomes da literatura argentina (alguns brasileiros já foram editados por ela). Há um outro elemento curioso na confecção das cartoneras: a reprodutibilidade mecânica dos textos (geralmente fotocopiados), de forma bastante comum, contrasta com o caráter irreprodutível das capas, pintadas uma a uma de forma artesanal e diferentes umas das outras, o que lhe dá um caráter verdadeiramente artístico. Cada exemplar é único e irrepetível. O fenômeno das cartoneras nasceu com a Eloísa num período de grave crise econômica da Argentina, e se espalhou por toda a América Latina. No Brasil, já existem muitas dessas editoras: a Dulcinéia Catadora, em São Paulo, a Katarina Cartonera, em Florianópolis, a Severina Catadora, em Pernambuco, só para citar algumas. Em 2013, aqui em União da Vitória, tive o prazer de criar, com acadêmicos do curso de Letras da UNESPAR, a Therezinha Cartonera, cujo nome é inspirado na querida amiga e poeta local, Therezinha Thiel Moreira. De lá para cá, pudemos lançar algumas edições inéditas sempre promovendo a obra de autores locais. Os livros eram distribuídos gratuitamente na cidade, em uma tentativa de promoção do ato de ler. Quem sabe no futuro possam nascer outras edições. Mas voltemos ao “kiosco” e a Ricardo Daniel Piña.



Depois de escolher algumas cartoneras (cada uma custando um valor quase irrisório) em um “kiosco” da Calle Corrientes - esquina com a Paraná -, dirigi-me ao dono da banca para pagar. Qual a minha surpresa ao descobrir que o proprietário do “kiosco” era poeta e, ainda mais, um dos autores editados pela Eloísa Cartonera. Um dos livros artesanais que eu escolhera, “La Bicicleta”, tinha sido escrito justamente por ele. Demos boas risadas e Piña ainda autografou o livro para mim. Ele me falou de sua amizade com poetas brasileiros, alguns dos quais sou fiel leitor. Perguntou-me de Douglas Diegues, Joselly Vianna Baptista e Haroldo de Campos. Saí da banca imaginando qual seria a chance de encontrar no caixa de uma livraria ou de uma banca de jornais e revistas o autor do livro comprado. Coisas da Argentina. Se o leitor passar pela esquina da Corrientes com Paraná, em Buenos Aires, leve a Ricardo o meu abraço.




Ricardo Daniel Piña

Outro fato que me chamou a atenção em Buenos Aires foi a quantidade de livrarias na cidade, bem como o interesse que os livreiros têm de falar sobre os livros que vendem com um conhecimento particular de quem lê. Aí concluí que não se pode vender um livro como se vende um sapato ou um guarda-chuva. É preciso amar minimamente aquilo que se vende. O que se ama se vende melhor, o que se ama se dá para além do vender. Vislumbrei com alegria muitas pessoas na rua com livros na mão e fiquei surpreso ao ouvir, no congresso de literatura, vários jovens pesquisadores falarem com entusiasmo e propriedade sobre a obra de Clarice Lispector. Aí fiquei preocupado pensando se Clarice não estaria hoje sendo mais lida por jovens argentinos do que brasileiros. Tomara que não. Tudo bem que uma escritura como a de Clarice seja pós-nacionalista, para muito além da pátria - Clarice é cósmica -, mas seria um desperdício perder para “los hermanos” neste campo tão poético quanto o futebol.

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 08 de junho de 2019