segunda-feira, 21 de julho de 2008

ENFIM, UM FILME SEM FIM!
MESMO TUDO ESTANDO DITO; OU EMPALHANDO CADÁVERES

Enfim, um filme sem fim
Mesmo tudo estando dito
Talvez um final assim
seja a sua melhor forma de ser infinito
PARTE I

Será possível falar de um filme sem extrair a poesia que sustenta o seu corpo, que comanda os seus gestos? Será possível nele entrar e sair sem roubar-lhe a sensibilidade que o faz ser o que é? Ao falar sobre o filme serei um suicida, um soldado, um seminarista ou um taxidermista? Como roubar-lhe a poesia e ao mesmo tempo deixá-lo intocado, imaculado, constelado aos olhos de quem o vê por meio dos meus olhos?
Será possível preenchê-lo com a mesma força que antes lhe dava a vida que meus olhos roubaram? Talvez o leitor esteja pensando que exponho segredos desnecessários, palavras demais. Mas é preciso começar por aqui. A cada texto escrito me pergunto se seria preciso repetir essas palavras; elas poderiam servir para todos. Mas é impossível falar sobre um filme que nos toca sem tocar em questões como a impossibilidade de reconstituí-lo no comentário, lugar onde o texto parece muitas vezes dormir à espera de um sapo que beije a boca do príncipe na expectativa de que tal ato romântico possa enfim despertá-lo da tumba. Sim, essas palavras nos levam ao cinema. Bom filme é aquele que faz com que o espectador nunca saia ileso da tela.
Meu desconhecimento sobre o cinema iraniano tem boas e más conseqüências. As más não convêm assinalar, basta dizer que o desconhecimento é uma forma de melancolia. Concentro-me nas boas conseqüências. Quem nunca comeu uma cereja, quando come experimenta sensação semelhante ao menino que descobre pela primeira vez o prazer e o sabor do sexo. Por exemplo: nasci em um país que já conhecia João Gilberto. Não consigo lembrar qual foi a primeira vez que ouvi “Chega de Saudade”. Convivi desde cedo com a idéia de que o mundo sempre foi assim. Fico imaginando as pessoas que ligaram o rádio em 1959 e escutaram pela primeira vez o hino da bossa nova. Acostumados com Vicente Celestino, Orlando Silva e Carlos Galhardo, a maioria dos ouvintes provavelmente tiveram experiência semelhante à mordida da primeira cereja. E a cereja nunca foi um fruto proibido como a maçã.
O cinema iraniano tem sido para mim uma feliz descoberta. Uma descoberta que se repete com diferença - redescoberta. Depois de assistir ao brilhante “Salve o Cinema”, de Mohsen Makhmalbaf, fiquei curioso para ver os filmes de Abbas Kiarostami, um cineasta que possui a qualidade de reinventar o cinema a cada filme que produz.
“Gosto de Cereja” (Ta`m e Ghilass – Taste of Cherry), de 1997, é maravilhoso não apenas do ponto de vista narrativo, mas pela força intrínseca das imagens. O filme toca em dois tabus do mundo islâmico: o homossexualismo e o suicídio. O primeiro tabu é apenas sugerido e está presente implicitamente na primeira parte do filme, quando ainda não sabemos do que trata. Sr. Badii (Homayon Ershadi) nos aparece como uma espécie de “gay desiludido” à procura de um homem nos arredores de uma cidade do Irã. Ele passeia de carro e tenta convencer um jovem soldado a acompanhá-lo em um passeio a fim de possa contar com sua ajuda em um importante trabalho – trabalho que aqui ainda é um mistério. Depois de saber de que se trata o jovem foge como quem se deparasse com uma serpente prestes a convencer Eva a morder uma maçã-cereja. Mas Kiarostami frustra expectativas pré-moldadas. O pecado é outro. Sr. Badii pede que o soldado o ajude a cometer suicídio. Ao soldado falta coragem e sobra humanidade. As outras duas pessoas que Sr. Badii tenta convencer são um seminarista, que fundamentado no Alcorão não aceita desumana proposta, e um velho taxidermista que promete ajudá-lo apesar de não concordar com a atitude do motorista. Basta dizer que o Sr. Bagheri (Abdolrahman Bagheri) é figura central no filme. Não convém falar mais para não estragar a curiosidade do leitor que talvez sinta o desejo de assistir ao filme.

PARTE II

Taxidermista é aquele que concentra em si duas atividades no mínimo corajosas: presenteia o corpo morto com uma espécie de sobrevida, ao conservar-lhe o aspecto de ser ainda vivente. Expor o corpo morto dessa maneira a outros olhos é fazer da fantasmagoria uma espécie de alegoria da vida. Ao mesmo tempo que presenteia o cadáver com a fantasia ululante de ainda existir, permite àquele que mira o morto uma experiência impactante de vida, como se a morte pudesse nos dizer: “você ainda está aí”. Esse contato com a faccies hipocratica da morte talvez seja um dos grandes presentes que alguém possa nos oferecer. Curiosamente, no filme, o contato do Sr. Badii com o taxidermista é a possibilidade de contato com a vida. Cabe descobrir de que vida se trata, se é a sobrevida de um cadáver, ou se é uma vida reconstituída pelo hábil “empalhador”. Arrisco dizer que o próprio Sr. Bagheri também ganha um presente. Acostumado a empalhar cadáveres, o taxidermista tem agora em suas mãos a possibilidade de conservar a vida. Isso o velho faz com palavras. A história que conta a Sr. Badii dá nome ao filme e justifica uma das cenas mais bonitas, o passeio de ambos. Se a história funcionar, é possível que o homem não cometa o suicídio, se não funcionar, saberemos o resultado. Eis a força de uma história. A capacidade de um taxidermista transformar a vida de um homem que nem conhecemos faz com que todas as cenas posteriores sejam tocadas pela conversa anterior.
Encomendar a própria morte a outrem não é a novidade do filme. Basta lembrar do filme “A Igualdade é Branca”, da trilogia das cores, de Krzysztof Kieslowski. A novidade não está na história, está na capacidade de Kiarostami operar com a força intrínseca das imagens, com a capacidade de frustrar expectativas pré-moldadas e fazer de seus filmes um instrumento de reflexão sobre a realidade e sobre o próprio cinema, é o que penso sobre o final (sem fim, por isso infinito) de “Gosto de Cereja”, uma cena inusitada. Contar histórias é uma maneira eficaz de lutar contra a morte.

PARTE III

Um final feliz ou triste talvez seja ainda muito pouco. Sr. Badii deita na cova, conforme o combinado. Espera o taxidermista. A decisão ainda não está tomada. Se levantar o braço, o velho o salvará da morte; se permanecer quieto, o velho o enterrará. Amanhece. Kiarostami corta. O que vemos agora são as câmeras, o cineasta, a equipe de filmagem que se prepara para guardar o equipamento. O filme está chegando ao fim – sem final. O ator se levanta da tumba. Seria esse um fim que versa sobre a própria impossibilidade de um fim? Em que momento um determinado filme começa ou termina? Será possível um final feliz ou triste quando o filme se debruça sobre a vida e a morte? Kiarostami consegue tematizar sobre o próprio cinema neste final curioso? Histórias que nos trazem mais perguntas que respostas parecem concretizar melhor a própria idéia de um infinito que talvez começa quando o diretor grita: “Corta!”.
Caio Ricardo Bona Moreira - publicado no jornal O Comércio - agosto de 2008