segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Não entendi Cabeças Cortadas, de Glauber Rocha, talvez sonhei tê-lo entendido

Jorge Luis Borges encerra (ou começa?) seu Livro dos Sonhos com uma explicação de Nathaniel Hawthorne, do Livro de anotações (1868): “Um homem na vigília, pensa bem de um outro e nele confia plenamente, porém o inquietam sonhos em que este amigo age como um inimigo mortal. Revela-se, afinal, que o caráter sonhado era o verdadeiro. A explicação seria a percepção instintiva da realidade”. O caráter verdadeiro do sonhado tem muitas máscaras. Glauber Rocha, um leitor de Borges, escreveu em 1971 o texto Eztetyka do sonho, para ser apresentado aos alunos da Universidade de Columbia. No texto, lembra o “Seminário do Terceiro Mundo”, realizado em Gênova, em 1965, onde apresentou a propósito do Cinema Novo Brasileiro, A estética da fome. A comunicação, que situava o artista do Terceiro Mundo diante das potências colonizadoras, defendia que “apenas uma estética da violência poderia integrar um significado revolucionário em nossas lutas de liberação”.
Entre a repressão interna da década de 60 e a repercussão internacional conquistada com Terra em Transe, Glauber aprendeu a lição: “O artista deve manter sua liberdade diante de qualquer circunstância”. O texto apresentado em 1971 retomava a discussão central da conferência de 1965: arte e revolução. Para o cineasta baiano o pior inimigo da arte revolucionária era a mediocridade: “diante da evolução sutil dos conceitos reformistas da ideologia imperialista, o artista deve oferecer respostas revolucionárias capazes de não aceitar, em nenhuma hipótese, as evasivas propostas". Mas engana-se quem pensa que a proposta de Glauber está situada somente no nível político, já que para ele a arte deveria também promover a especulação filosófica, “criando uma estética do movimento humano rumo a sua integração cósmica”. O racionalismo entendido como repressor. O que o leva, penso, a superar tanto a razão de esquerda quanto a de direita, entendidas como sistemas culturais atuantes que estão presos a uma razão conservadora. Assim, propõe responder à razão opressiva não com a razão revolucionária, mas com a anti-razão (a expressão é do próprio cineasta). Feito um Lezama Lima brasileiro, Glauber percebe nas raízes índias e negras do povo latino-americano a única força desenvolvida desse continente. Ele observa que a cultura popular será sempre uma manifestação relativa quando apenas inspiradora de uma “arte criada por artistas ainda sufocados pela razão burguesa”. Somar o revolucionário com as estruturas mais significativas da cultura popular significava para ele a primeira configuração de um signo revolucionário.
Mas o que a afirmação de Hawthorne, postulada por Borges, tem a ver com isso? É que para Glauber “o sonho é o único direito que não se pode proibir”: “Arte revolucionária deve ser uma mágica capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não suporte mais viver nesta realidade absurda”. Quem indica a Hawthorne o inimigo é o sonho. É também na dimensão do sonho que Glauber aponta seus inimigos. Estou nesse vai-e-vem desmiolado porque acabo de assistir ao Cabeças Cortadas, filme que me levou às portas da loucura. Enquanto assistia, pensava: “Onde Glauber está querendo chegar?” É claro que um mínimo de conhecimento acerca de sua obra nos permite fazer algumas inferências. Sabemos, por exemplo, que há um soberano que se chama Díaz II, uma referência ao personagem de Terra em Transe, Porfírio Díaz, protagonizado por Paulo Autran. Em Cabeças Cortadas, reaparecem a imaginária Eldorado, a multinacional Explint, entre outras referências. Como disse Sylvie Pierre sobre o filme, “a terra continua em transe. Mas, desta vez, está acontecendo o apocalipse”. Sabemos que as alegorias se materializam relacionadas à relação entre colonizador/colonizado. Mas uma leitura despretensiosa não nos leva muito adiante. Seria preciso pensar muito. O excesso de alegorias me pareceu, em um primeiro momento, um problema para o filme. Mas pensando bem, não podemos esquecer que se trata de Glauber Rocha. Qualquer tentativa de “compreensão plena” do significado seria completamente fadada ao fracasso. É, precisamos nos acostumar com as imagens. Viajar com elas, talvez até deixar que elas cortem a nossa cabeça, como aquele personagem que passa o filme cortando a cabeça de todos, como que ressuscitando a degola do bando de Lampião, às avessas.
Às vezes, algumas cenas valem a pena apenas pelo teatro que se desenrola como uma pintura medieval em movimento: Cavalos, Cavaleiros, Donzelas, Dulcinéias, e as ruínas de uma paisagem desconhecida (que descobri ser a de Barcelona - ruínas espanholas. Aliás, não seria desimportante analisarmos a obsessão de Glauber por ruínas. A cena inicial de Claro se passa nas ruínas de Roma). O filme foi realizado em 1970, portanto um ano antes da conferência da Eztetyka do sonho. As aproximações não são fortuitas. Em 1979, quando o filme foi projetado pela primeira vez no Brasil, segundo informações de Sylvie Pierre, Glauber declarou ao Jornal do Brasil, que o cinema é o instrumento que permite materializar o inconsciente: “Cabeças Cortadas é um filme que deve ser visto através de símbolos e significantes. É um filme estruturalista. Reduzi toda história ao significante. Temos mouros, índios, América Latina colonizada, Espanha moura, encontros de vários mundos. Díaz poderia ser a história de um louco que pensa que é ditador. (...) Cada vez que vejo o filme encontro novas explicações. Há todo um arco de sugestões. Deixei que o trabalho seguisse a estrutura do sonho, tal como Borges e em Skakespeare”. A frase nos ajuda a aceitar certas loucuras do filme. “A história poderia ser...”. é no espaço e tempo do "poderia ser" que devemos pensar não apenas esse filme, mas toda a obra de Glauber Rocha. Eldorado poderia ser...Brasil. Glauber não fez feio na onda do Estruturalismo. No final da conferência de 71, é justamente Borges que é lembrado, por superar esta realidade: “Sua estética é do sonho. Para mim é uma iluminação espiritual que contribuiu para dilatar a minha sensibilidade afro-índia na direção dos mitos originais da minha raça. Esta raça, pobre e aparentemente sem destino, elabora na mística seu catolicismo, que é feitiçaria da repressão e redenção moral dos ricos". Como diria Antonio Machado, também lembrado por Borges, em seus sonhos: “De toda a memória somente vale o dom esclarecido de evocar os sonhos”. Explicá-los, comentá-los, esgotá-los, entendê-los é tarefa impossível - nem vale a pena comprar um dicionário de sonhos nas bancas de jornal, ou perder metade da minha vida estudando Freud e Jung. Isso me conforta depois de assistir Cabeças Cortadas, um filme que não entendi – e que agora orgulhosamente confesso que não entendi. Glauber, feito o cego mais visionário da Argentina, declara no final da conferência: “Não justifico nem explico meu sonho porque ele nasce de uma intimidade cada vez maior com o tema de meus filmes, sentido natural de minha vida”.
c.moreira

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