segunda-feira, 7 de maio de 2012

O aniversário da cidade, o pintor e a charrete


(Depois de visitar ao ateliê do pintor e amigo Renato Ruschel, escrevi o texto que segue. Ele foi publicado no jornal O Comércio, de União da Vitória - PR, em março de 2012) 

Tarde ensolarada. O pintor entra em seu ateliê, retira as tintas, pincéis e espátula de um pequeno baú, dispõe o quadro branco sobre o cavalete e inicia com presteza o trabalho. Traça a lápis pequenos contornos de uma imagem que ainda não é. Da ordem do vir a ser, talvez só ele mesmo saiba o que será.




Cores vão sendo lançadas e misturadas em uma paleta que mais parece agora um quadro de Pollock. Aos poucos, metódica e ininterruptamente, os movimentos da espátula, comandados pelos gestos de uma mão valorosa e precisa - cuja técnica é inspirada também pelo talento -, vão contornando com tinta os traços previamente delineados e dando forma a uma paisagem específica. Trata-se da antiga sede da Prefeitura Municipal de União da Vitória. A construção, que ocupa grande parte do quadro, recebe a luz de um dia claro numa possível manhã de primavera. É o que indica o ipê florido em uma das extremidades. A obra nasce.

Estamos diante de uma homenagem não só ao município, pela passagem dos seus 122 anos, mas também ao povo de União da Vitória, pois a cidade, sem o povo que lhe dá alma, nada mais é que a pálida sombra de um território sem ânimo. Por isso, falar do pintor e de sua obra é também uma forma de comemorar o aniversário.

O prédio é belo e imponente, no entanto, um pequeno detalhe lhe rouba a cena. À frente da Prefeitura Municipal, deparamo-nos com uma charrete. A sua presença não é fortuita no quadro. Não se trata apenas de um motivo ilustrativo ou um mero charme pictórico. O pintor a insere com um gesto de gentileza, como quem entrega uma rosa à mulher amada. Curiosamente, ao olhar para a obra, tenho meus olhos voltados imediatamente para o pequeno detalhe. Roland Barthes, ao falar sobre fotografias, em “A Câmara Clara”, observou dois aspectos presentes nas imagens: o “studium” e o “punctum”, algo que poderíamos pensar, aqui, em relação à pintura. O “studium” seria o “visível”, o elemento que determina o contexto da época, a cultura retratada na obra. O “punctum”, por sua vez, seria o “detalhe”, algo instigante que chama a atenção, parecendo sair da imagem para tocar o observador. Pois é assim que vejo a charrete, como “punctum”.


A charrete pertencia ao Sr. Francisco Laubembacher (nascido em 1900), que abriu o primeiro Escritório de Imóveis das Gêmeas do Iguaçu, na rua Prudente de Moraes nº 91. O pequeno meio de transporte era um aproveitamento de um Chevrolet 1925. Segundo o artista, com base em informações da família Laubembacher: “Após ter fechado a imobiliária, o Sr. Francisco continuou suas vendas em bares da cidade. Faleceu em 1965, tendo seu filho Reinaldo vindo de Curitiba para acertar as vendas. Utilizou-se da charrete e para sua surpresa, a égua Morena parava sistematicamente em cada bar”.

Na presença efêmera, contingente e transitória da charrete, que ganha ares de infinito e é eternizada na obra, vemos um sintoma da imortalidade do povo que constrói a cada dia a nossa querida cidade. Aliás, são os artistas, pintores, poetas, escultores e compositores que conseguem de maneira plácida e inconfundível imortalizar nossa gente, nossos costumes e habitat. Do silêncio de seus ateliers, brotam manifestações artísticas de grande valor, como o poema de Joaquim Serapião do Nascimento, uma declaração de amor à cidade que parece dialogar com o quadro: "Selvagem qual bugre nu / Banhada pelo Iguaçu / À beira dele nasceste, / Linda cabocla indolente (...) / Ao som de cantos de amores, / “Eis a União da Vitória.”

O autor do belo quadro que comentamos ao longo do texto é Renato Ruschel, conhecido nas nossas cidades não só como o pintor das paisagens azuis, mas também como exímio alfaiate. A mesma mão que corta os tecidos e costura os elegantes trajes masculinos é aquela que passeia pelo quadro, retratando belos pinheiros, cenas históricas e lindos luares. O professor Eloy Tonon, em seu livro sobre a saga da família Ruschel, escreveu sobre o pintor: “As pinturas do artista plástico Renato são representações de memórias, abertas para uma leitura de suas significações. Imagens de nossos momentos de história local e regional. Lembranças evocadas, que contabilizam um resultado altamente positivo na beleza plástica visível e nos complexos aspectos de memórias invisíveis”. Tornar visível o invisível, imortalizar o transitório e abraçar a arte em busca de um mundo mais pleno e belo, parecem ser os objetivos de um pintor que, assim como o município abraçado em seu aniversário, é eterno.
Obs: O quadro de Renato Ruschel integra a exposição de artistas plásticos das Gêmeas do Iguaçu, que ocorrerá na Galeria de Arte Eric Herbert Will, na Fundação Municipal de Cultura de União da Vitória, entre 26 e 30 de março, como parte das comemorações pelo aniversário do município.

caio ricardo bona moreira

Nenhum comentário: