Caro Marcos Pasche,
como vai?
Hoje,
recebi com grande alegria o seu livro “De pedra e de carne: artigos sobre
autores vivos e outros nem tanto”. Belo título, belíssima capa. Ótimas
vibrações. Aqui no sul sol lindo com a chegada do teu aguardado filho. Um
espaço na minha estante estava reservado para ele desde que você me comunicou o
envio.
Agradeço
pela generosidade de ter lembrado do amigo que no ano passado críticou tua
crítica no texto: “Literatura mediana ou
crítica mediana?: Então você quer ser crítico?”. Agora me falta lê-lo, o
que pretendo fazer antes do final das minhas férias. Até o presente momento, li
apenas a lúcida apresentação do Roberto Acízelo de Souza, de quem sou admirador
e leitor bissexto, e suas Palavras Prévias que muito me encantaram, não apenas
pela qualidade de reflexão, mas também pela humildade que nela detectei, cujo
tom só é encontrado nos grandes. Portanto, como ainda não li o livro, me são
enigmáticas as palavras do título PEDRA/CARNE, mas já tomo a liberdade de
imaginar alguns de seus possíveis sentidos.
Nem
só de pão e pedra, mas também de carne, a crítica viverá! A crítica pode ser
pedra (juízo), mas é também carne (poesia), não esqueçamos. O crítico também é
homem ou mulher de carne e osso, ou melhor de carne e pedra. A capa, aliás, me
sugere algo semelhante: Não poderia ser objetivo da crítica, além de julgar,
abalar as estruturas daquilo que está estabelecido, produzir uma fissura
naquilo que analisa, e no seu próprio corpo a partir daquilo que lê? Se os
livros deixam cicatrizes no leitor, como sugere José Castello em sua mais
recente publicação (As feridas de um leitor), será que a crítica também não
deixa cicatrizes não apenas nos seus leitores, mas de forma inevitável nos
livros que lê? Somos transformados, mas também transformamos aquilo que lemos.
Fiquei
feliz não apenas em receber o seu livro, mas principalmente em recebê-lo com um
carinhoso autógrafo, no qual me considera um primeiro e estimulante interlocutor. Não me julgo figura de importância e merecedora de elogio, mas de qualquer forma agradeço o carinho. O que para uns representaria um fetiche de leitor-colecionador,
para mim soa como um gesto generoso de alguém que mora longe mas que lembra dos
amigos, e que por se interessar pela literatura já me parece desde o início da
amizade como um interlocutor interessante. Alegrou-me o fato de você ter me
citado (diretamente na página 173 e indiretamente na página 14), não por uma
questão de vaidade minha, mas por achar, como você, extremamente saudável o
debate sobre a crítica e a literatura. Diletante e amador (nos dois sentidos)
que sou, encanta-me ver o amigo “matar a cobra e mostrar o pau”. Acho
extremamente saudável as leituras e contra-leituras que por ventura podem
surgir no exercício crítico. De dobras e redobras são feitos os origamis. Apresentar
esse outro olhar, nascido de um blog praticamente desconhecido mostra que o
amigo valoriza o pensamento crítico que transcende os grandes jornais e os
clubes do bolinha tão em voga hoje em rodas literárias. Agradeço a referência.
Recentemente,
li o livro de João Cezar de Castro Rocha sobre a crítica literária e gostei
bastante da maneira como ele discutiu a importância das querelas literárias que
ultrapassam o âmbito pessoal para atingir um patamar criativo e produtivo para
a produção literária e crítica. Aliás, nesse livro (editado pela Argos), ele
defende uma “esquizofrenia produtiva” que penso ser uma das qualidades do teu
trabalho, Marcos. Para ele, essa esquizofrenia está ligada à capacidade de
promover um diálogo interessante e inteligente entre o jornalismo cultural e a
academia, fazendo com que o analista saiba ser “bilíngue em seu idioma”. Outro
detalhe que me chama a atenção no livro dele é a reflexão que faz sobre a
crítica impressionista, crítica que tem recebido minha atenção ultimamente. O
termo (crítica impressionista) é tão amplo que acaba sendo vítima de muitos
equívocos interpretativos. Pode ser tanta coisa e nenhuma especificamente. Há
nela coisas positivas e negativas (olha só, também estou julgando!) Tenho
começado a pesquisar não apenas a crítica impressionista (com ênfase naquela
produzida pelos simbolistas, que ainda não sei se poderíamos chamar de
impressionista), mas também o processo de modernização dos estudos literários
no Brasil. Saiu agora pela Iluminuras um livro organizado pela professora
Susana Scramim (UFSC), chamado “O Contemporâneo na crítica literária” (creio
que é esse o título), em que publiquei um texto sobre a crítica simbolista, a
qual foi pejorativamente chamada de impressionista, entrando, assim, no bojo
das críticas consideradas diletantes, falíveis, por não serem sistematizadas
como foi a Nova Crítica, que encontrou em Afrânio Coutinho um de seus adeptos
mais fervorosos na esfera acadêmica brasileira.
Penso,
por exemplo, numa crítica que não seja apenas uma “manifestação palpiteira”,
para usar uma expressão do Acízelo, mas que também não seja apenas uma
manifestação sisuda e judicativa, pura e simplesmente, em que o crítico se
sente senhor da própria obra que analisa, como se não estivesse produzindo
também as suas ficções. Nesse sentido, relativizo, com prazer. Não se trata da “absolutização
do relativo”, para usar novamente uma expressão do Acízelo, em que todo e
qualquer julgamento é visto inocentemente como uma espécie de “bicho papão”.
Concordo
com você quando diz que o exercício judicativo não deve ser visto como um gesto
reacionário. Toda escolha, que pressupõe julgamento, desmente o fato. Acredito
que o julgamento está implícito em toda e qualquer leitura, e não é
necessariamente um tremendo “filho da pauta”. Agora, que ele precisa ser
repensado nas nossas práticas, isso precisa! Lembro-me que no meu texto sobre
sua crítica escrevi: “Depois de
ready-mades como o Urinol, de Duchamp – para citar o exemplo mais óbvio e um
dos mais curiosos – o que fazer com as noções tradicionais de valor?” Até agora
tenho apenas hipóteses para responder a esta pergunta. O que seria motivo para
uma longa digressão, convite à correspondência.
Julgamento...
Julgamento! O que eu penso é que a crítica pode ser mais do que só isso. E
acredito que você também pensa assim. Por isso concordo plenamente quando você
escreve que é absolutamente possível, e saudável, que o crítico compreenda a
obra, torne-se também inventor quando do contato com ela e, a partir disso,
formule uma opinião”. “Inventor”: essa palavra me entusiasma em seu argumento.
De que vale ser crítico se a busca da invenção não fizer parte de sua rotina?
Independente
do tipo de crítica que se produz, é possível ser inventor. Mario de Andrade,
por exemplo, escreveu críticas lindas, fortemente judicativas. É o que vemos no
“Empalhador de Passarinho”. O meu incômodo é com aquele tipo de crítica que se
contenta apenas em julgar, não saindo desse estágio. Se como nos diria Tristão
de Ataíde a crítica deve ultrapassar o estágio inicial das impressões, devo
sustentar que a crítica, da mesma forma, não pode estacionar no mero julgamento,
como se essa fosse a única forma de um pensamento crítico, e as impressões
gerassem meros devaneios poéticos que não alcançam a dimensão crítica. Há
muitas formas de se ler, não? Tão ou mais importante que aquilo que lemos é “como
lemos”. Como ler? Gosto muito das observações do crítico Daniel Link, que no
livro “Como se lê, e outras intervenções críticas”, pensa na crítica não apenas
como interpretação ou julgamento, mas também como uma espécie de intervenção.
Impossível,
na crítica, seja ela de que tipo for, abrir mão da imaginação e da
criatividade. Há que se sujar as mãos, compreende? Expressão que usei no meu
texto sobre o teu. No entanto, em relação a você, esse incômodo se deu por
alguns textos específicos, como aquele sobre o Miguel Sanches Neto e aquele
sobre a Estrela Leminski, que também me incomodou, além de ter incomodado a
Marília Kubota. Não é um posicionamento que valha para todos os textos que você
escreveu. Pelo contrário, muitas de suas críticas me encantaram fora do comum.
Ao contrário do que talvez você pense em relação ao meu texto, não acho que a
crítica poética seja a única possível (isso equivaleria ao fascismo), mas é
aquela que mais me interessa. Não há crítica ideal, mas há aquela que mais me
seduz e mesmo essa que “mais me seduz” pode errar também. Quando me refiro à
crítica poética não penso necessariamente naquela que pretende apenas plasmar a
linguagem poética, mimetizar seus sons, ritmos e palavras. Penso naquela que
problematiza a cisão da palavra que, na cultura ocidental, a partir de Platão,
colocou a poesia de um lado e a filosofia de outro. Por que os poetas precisam
ser expulsos da República? Com isso a filosofia “deixou de elaborar uma
linguagem própria, como se pudesse existir um caminho régio para a verdade que
prescindisse do problema da sua representação, e a poesia não se deu nenhum
método nem sequer uma consciência de si”(Giorgio Agamben, em Estâncias).
Continuando com Agamben: “A crítica nasce no momento em que a cisão alcança o
seu ponto extremo. Ela situa-se no descolamento da palavra ocidental e
sinaliza, para além ou para aquém dela, para um estatuto unitário do dizer.
Exteriormente, esta situação da crítica pode ser expressa na fórmula segundo a
qual ela não representa nem conhece, mas conhece a representação. À apropriação
sem consciência e à consciência sem gozo, a crítica contrapõe o gozo daquilo
que não pode ser possuído e a posse daquilo que não pode ser gozado” (Agamben,
em Estâncias). É essa a crítica que me seduz, aquela que não apenas é criativa
mas enigmática (como a literatura), cujo objetivo não é o de reencontrar o
objeto que analisa, ou meramente dissecar, mas aquela que está interessada
também em “garantir as condições da sua inacessibilidade” (Agamben, em Estâncias).
Por isso continuo acreditando nas palavras daquele texto que publiquei no blog,
agora com a diferença de me sentir um pouco constrangido de proferi-las a um
amigo (um crítico que aprendi a admirar quando decidi conhecê-lo melhor), por
tratarem dele sem serem necessariamente uma espécie de vela acesa. Vamos lá,
conhecer e gozar, como nos convida Agamben! Acolhamos, novamente, o poeta na
República.
Receba
minhas congratulações pela publicação
e
o abraço afetuoso e agradecido deste
humilde
diletante que é também seu admirador.
Caio
Ricardo Bona Moreira
União da Vitória (Cofrinho do mundo) / 2013
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