segunda-feira, 14 de março de 2016

CLARICE LISPETOR, UMA ÁGUA VIVA À PROCURA DO NEUTRO



Eu descobri a Clarice muito tarde. Não sei dizer se isso foi bom ou ruim. Prefiro pensar que foi ela que me descobriu muito tarde. Ou muito cedo. Quem saberá? Creio que, na maior parte das vezes, são os livros que nos procuram. Clarice dizia que são os livros que nos escrevem. De maneira que eu me consolo pensando que talvez as coisas aconteçam quando devem acontecer, nunca cedo ou tarde demais. No Ensino Médio, eu lera Kafka, Hemingway, Umberto Eco, Mário de Andrade, mas não Clarice. Quando me deparei com ela já estava na faculdade. E a primeira coisa que pensei foi: “Pode um ser humano escrever assim? Isso é humano?”. 
Hoje, arrisco uma resposta: “Não, isso não é humano”. Não que Clarice não seja humana, pelo contrário, é demasiado humana, para usar uma terminologia nietzscheana. A sua escritura é inumana. Com isso não quero dizer que seja desumana. Aquilo que é inumano pode ser entendido como aquilo que ainda não é humano, ou aquilo que está além do humano (mas não no sentido transcendental). De maneira que poderíamos aproximar os seus textos da magia, da bruxaria. Aliás, Clarice em 1975, participou do I Congresso Mundial de Bruxaria, realizado em Bogotá, na Colômbia. No encontro, ela se sentiu um pouco indisposta, então, não falou, mas um texto seu foi lido no evento, “O ovo e a galinha”. Um conto que ela considerava um dos seus prediletos, justamente por não entendê-lo muito bem. Interessante essa questão. A fascinação por aquilo que não se entende. Uma vez, eu estava fazendo uma pesquisa na Fundação Cultural de Curitiba, no acervo do poeta Paulo Leminski, e encontrei no meio dos seus papéis, uma anotação, dessas que ele escrevia e colava na geladeira. O rabisco dizia: “Só estou interessado naquelas coisas que não consigo entender”. Acho que a frase poderia muito bem ser escrita pela Clarice. Ela sempre se interessou muito por aquelas coisas que não entendia. Aquelas coisas que ultrapassavam a conhecimento humano. Em relação à Clarice, não consigo separar a autora da obra – todas as teorias que afirmam ser o escritor um mentiroso se deterioram diante de seus textos – que sempre me pareceu uma bruxa, no bom sentido. Deve haver algum elo que junte essas duas coisas. 


Certa vez, o jornalista José Castello perguntou a ela por que escrevia. Clarice respondeu com uma pergunta: “Por que você bebe água?” Ele respondeu: “Porque tenho sede”. E ela: “Você toma água para não morrer”. Na minha opinião, Clarice escrevia para não morrer. A reconstituição do interessante encontro entre os dois pode ser encontrada no livro Inventário das Sombras, editado pela Record. Nesse texto, Castello lembra um encontro com o escritor Otto Lara Resende, em que ele falou para o jovem jornalista ter cuidado ao ler Clarice, pois não se trata de literatura e sim de bruxaria. Poderíamos encontrar três bruxos na literatura brasileira. Se Drummond era o bruxo do Cosme Velho, e Guimarães, o bruxo de Codisburgo, a Clarice era uma bruxa ucraniana que veio pelo Brasil. Numa outra passagem do mesmo texto, José Castelo lembra que certa vez encontrou a Clarice na rua, em frente a uma vitrine. Ele se aproximou e percebeu que ela observava manequins nus. É que Clarice tinha obsessão pelo vazio. Escreve para chegar ao silêncio, e este me parece ser um projeto radical. Sem contar que muitas vezes não sei dizer se os seus textos se tratam de prosa ou poesia. Esse é um dos grandes problemas pra quem estuda poesia, pois qual é a essência que faz com que um texto seja considerado prosa ou poesia? Talvez fosse interessante relermos os Formalistas Russos.
Enfim, voltando a minha primeira leitura de Clarice, eu nunca tinha lido nada parecido. Desde então, depois da leitura de “A hora da estrela”, a literatura para mim nunca mais foi a mesma. Eu acho que estudamos aquilo que desejamos ou aquilo que tememos. Eu confesso que desejo e temo ao mesmo tempo a escritura de Clarice. Ao mesmo tempo que encanta, apavora.  
Quase nunca escrevi nada sobre Clarice e quando fui movido a esta escrita a primeira coisa que pensei foi na impossibilidade de falar qualquer coisa sobre a sua literatura sem mergulhar no íntimo de sua escritura. Nesse sentido, acredito que deveríamos ler de “dentro” a sua obra, como fizeram vários de seus “seguidores”, e não de fora, como faria um analista com pretensões metódicas e científicas. A questão me faz pensar no próprio papel que a crítica exerce, ou pelo menos deveria exercer. Mais do que decifrar uma obra ou explicar, talvez fosse mais interessante partir da premissa que essa seria uma aposta de antemão perdida. Eu não sei o que significa a barata de A paixão segundo GH. Eu não sei o que é Macabéa, eu não sei o que é o ovo, a galinha de Laços de Família, eu não sei o que significa uma Felicidade Clandestina. Mas desconfio que todas essas coisas, todos esses objetos não identificados são tão interessantes justamente por desterritorializar certezas, nos colocando num lugar incômodo e ao mesmo tempo tão revelador.


Quando disse que deveríamos ler de “dentro” a obra de Clarice, quis dizer que me parece impossível falar sobre ela sem levar em conta que se trata de um texto escritível e de gozo, “só podendo se falar de dentro dele”, como diria Roland Barthes. Assim, uma leitura – que não deixa de ser também uma espécie muito especial de escrita – deveria tomar a consciência que não há uma ruptura entre a crítica e a própria literatura. Essa foi uma das grandes lições que aprendemos com os românticos alemães, ou Agamben mais recentemente. A crítica, mais do que julgar, deveria partir do pressuposto de que talvez já não faça mais sentido para o crítico apenas julgar uma obra como se fosse um juiz do tribunal da Santa Inquisição. O que dizer dos textos críticos que Jorge Luis Borges escreveu, é literatura ou crítica? Acho que não precisamos responder. Castello define muito bem essas questões: “Só os que entram em harmonia com a escrita de Clarice, os que conseguem oscilar como ela entre a palavra e o susto, podem seguir adiante”.
Então, ao partir dessas questões levantadas gostaria de observar que se o texto de Clarice é um texto “escritível”, no sentido que Barthes pensou a noção de “escritível”, isso significa que ao ler o texto dessa escritora ucraniana radicada no Brasil, somos convidados, ou melhor, convocados, a escrever junto com ela tal texto. Clarice, certa vez escreveu em uma crônica que pode ser encontrada em A descoberta do mundo: “O personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor, é o escritor”.
 Essa seria também uma função da crítica, ao se deparar com o texto. Que sentido teria dizer que A Hora da Estrela é um livro ruim, ou que Macabéa seria um símbolo da nordestina ignorante que vai morar na cidade grande? Não seria Macabéa uma alegoria daquilo que em nós não é humano – o inumano? Não seria a representação personificada da barata de GH, ou mesmo a barata de Kafka, ambas baratas que estão além ou aquém do que é humano? Falo isso apenas para apontar a armadilha que poderia vir a ser uma leitura interpretativa de seus textos.


 Isso é tão forte para mim que prefiro até trocar a palavra interpretação (muitas vezes ligada ainda a uma certa tradição do significado pleno, transcendental), pela palavra Intervenção, muito mais interessada naquelas coisas que muitas vezes um texto não diz, ou mesmo naquelas que só começam a fazer sentido quando lemos. Vou dar um exemplo. Quando li As tentações de Santo Antão, de Flaubert, achei uma livro interessante, aquele desfile de monstros, o anacoreta a meditar e a se deparar com o demônio que é o próprio texto, etc e tal, e ponto – ponto final. Depois, descobri um prefácio (ou posfácio) que o Foucault escreveu para a obra – um texto que vocês podem encontrar na coleção Ditos e Escritos (III). Pois bem, li o texto de Foucault e só nele descobri a maravilha que é As Tentações de Santo Antão. Foucault não explicou a obra, mas me parece que fez algo muito mais interessante do que isso. Ele reinventou o livro de Flaubert. Isso significa que um texto crítico, ou uma fala sobre uma obra, como essa aqui, tem um poder muito maior do que parece. Ele pode interferir na própria obra. E para mim deve ter “sabor”, como a própria literatura. Aquele sabor que Barthes procurava na sua Aula inaugural. Esse é o poder que vocês, como leitores, professores ou pesquisadores da literatura, têm. Um poder que muitas vezes passa despercebido – um poder, no bom sentido, tão forte quanto o poder do próprio autor, um "dom". Somos mais importantes no mundo da literatura do que pensamos. Então, eu gostaria que a minha fala fosse mais um depoimento, de alguém que é apaixonado pelos textos de Clarice, e não necessariamente um artigo, uma escrita que seja busca principalmente do sabor da literatura e não apenas do saber que ela poderia comunicar.



Um dos textos mais curiosos que li da Clarice foi o Água Viva, o texto que escolhi para a fala de hoje. Um texto que ela começa a trabalhar em 1970 e que só seria publicado em 1973. Em 1970, ela intitula esse texto como Atrás do pensamento: monólogo com a vida. O livro posteriormente seria chamado de Objeto Pulsante e por fim, receberia o título Água Viva. Penso que esses três títulos nos dizem muito sobre o texto – um texto que já não podemos chamar de conto, novela, ou romance. As tipologias parecem não dar conta do objeto. Clarice caracterizaria o texto como ficção, um texto que ultrapassava as classificações convencionais da narrativa literária, nas palavras de Clarice. O texto tinha aproximadamente 280 páginas. Mas Clarice não estava satisfeita com o resultado final. Em 1972, ela volta a trabalhar no texto e elimina as alusões à própria biografia, o que faz com que o texto sofra significativa diminuição. Uma diminuição apenas de tamanho, porque a meu ver ela mantém a complexidade do objeto. Uma das amigas que lê o texto é Nélida Piñon, participando com sugestões. Ainda insegura quanto ao livro, Clarice busca um amigo, Carlos Scliar, famoso pintor para que pintasse um retrato seu. 


O retrato pode, de certa forma, nos ajudar a ler o livro. Até porque a narradora se diz pintora, uma pintora que descobre a possibilidade de pintar a própria escritura – substituindo uma linguagem por outra. No quadro, Clarice aparece apenas com traços e a idéia de “traço” nos ajuda a pensar sua obra. Em Água Viva, a escritora se rarefaz, se apaga na medida em que escreve. Em 1973, recebe uma carta de Alberto Dines sobre o livro: “Você venceu o enredo (...) A gente vai encontrando a todo instante situações-pensamento. (...) É menos um livro-carta e, muito mais, um livro música. Acho que você escreveu uma sinfonia”.

 (Clarice também foi pintora, assim como a narradora de Água Viva. Acima, um quadro da artista)


Enfim, algumas coisas que eu gostaria de pensar:
·         Que tipo de experiência está em jogo na escrita de Clarice no livro Água Viva, experiência que, por sinal, não está dissociada da escritura de Clarice em outros textos?
·         A que outras forças essa força de Água Viva está interligada? Falo em força e não em forma porque esse livro – Água Viva – parece que está muita além de qualquer ideia de forma. É mais do que isso.
É uma força que não se define, como uma forma pode ser definida. Nesse sentido, a literatura de Clarice se coloca muito além das pretensões modernistas. Ela é um corpo estranho no modernismo, como em qualquer outro movimento. Assim penso também a literatura de Guimarães Rosa. Impossível situá-los no contexto de uma vanguarda, porque as vanguardas morrem e a literatura de Lispector e Rosa não. Dois bruxos.
Mas o meu objetivo principal, procurando delimitar um pouco melhor essa questão é ler o Água Viva a partir da ideia do Neutro, tal como Roland Barthes procura desenvolver num curso de literatura no Collège de France, entre 1977 e 1978. Num curso intitulado O neutro, o teórico francês procurou analisar várias figuras a parir dessa noção, principalmente na literatura. Foi o segundo curso que ele ministrou na instituição. As aulas aconteciam todos os sábados e antes de dar as aulas Barthes anotava apontamentos sobre o que falaria aos seus alunos. Depois de sua morte, uma trágica morte - Barthes tinha sido atropelado por uma caminhonete de uma lavanderia depois de almoçar com François Miterrand -, as anotações foram reunidas e publicadas. No Brasil, em 2003, foi publicada uma versão desse curso. Quando eu li Água Viva, eu imaginei na hora que se tratava de uma coisa (talvez seja a melhor definição do livro), de uma coisa à procura do neutro.  Mas o que Barthes nos diz a respeito do neutro?: “Defino o Neutro como aquilo que burla o paradigma, ou melhor, chamo de Neutro tudo o que burla o paradigma. (...). Paradigma é o quê? É a oposição de dois termos virtuais dos quais atualizo um, para falar, para produzir sentido”:


“Neutro: tempo do ainda não, momento em que na indiferenciação original, começam a desenhar-se, tom sobre tom, as primeiras diferenças: madrugada; espaço daltônico (o daltônico não consegue opor vermelho e verde, mas distingue áreas de luminosidade, intensidade diferente)” (BARTHES, 2003, p. 108).
Ovo ainda não eclodido: antes do sentido, ou seja, tríptico fechado de Bosch, do Jardim de Delícias 




Vamos pensar que toda a cultura ocidental está baseada nessa lógica do binarismo. Feio-bonito; certo-errado; bom-mal. O objetivo do neutro seria burlar essa lógica. O paradigma seria este esquema. O neutro seria a tentativa de remover esse paradigma. Mesmo a ideia na linguística saussureana, de que há um significante-significado. Se só conseguimos explicar uma palavra por meio de outras palavras isso significa que um significante só nos leva a outro significante e assim ad infinitum. O mundo é a própria linguagem. O desejo do neutro é em primeiro lugar suspensão das ordens, leis, arrogâncias, terrorismos, intimações.  Interessante perceber que uma guerra dos EUA, por exemplo, contra o terrorismo se dá justamente pela crença de um significado, a luta entre o bem e o mal. A procura do silêncio, transformar a linguagem em balbucio, é um desejo de neutro em Clarice. Vale lembrar que aquilo que está fora do campo da racionalidade, para Barthes, pode ser considerado como um elemento do neutro. Em Paixão segundo GH, muitas vezes, Clarice afirma ser homem e mulher ao mesmo tempo. É uma forma de romper com esses binarismos. O neutro é combinação dos sexos.



Em Água Viva, os pensamentos de Clarice parecem não ter palavras. Daí a recorrência da expressão “Atrás do pensamento”, que também é recorrente em Paixão segundo GH: “Será que isto que estou te escrevendo é atrás do pensamento? Raciocínio é que não é. Quem for capaz de parar de raciocinar – o que é terrivelmente difícil – que me acompanhe”. A frase já serve para mostrar a dificuldade de falar ou escrever sobre Água Viva, já que qualquer explicação racional estaria fadada, como já falei no início, fadada ao fracasso. Pois Água Viva estaria atrás do pensamento, podendo denunciar o fim do próprio pensamento. É claro que o fim do pensamento desencadearia o fim da própria escritura. Daí a angústia da narradora. Como traduzir em palavras esse tipo de sensação? Há um texto muito interessante do filósofo italiano Giorgio Agamben, que por sinal foi aluno de Heidegger, intitulado O fim do pensamento. O jogo linguístico explorado por Clarice poderia ser lido como uma busca pela in-fans, algo que segundo Agamben, estaria antes da linguagem, mas que só poderia ser encontrado por meio da linguagem. Acho que isso cabe muito bem em Clarice. A busca pela in-fans. Em A paixão segundo GH, Clarice beira a ontologia, uma metafísica, cuja finalidade é desvelar o ser, como diria Olga de Sá sobre a autora. Desvelar o ser contra a linguagem (fazendo linguagem), A barata seria uma espécie de fonte do ser – uma fonte que Clarice busca por meio da linguagem. A Água Viva não seria a personificação exata dessa fonte? Uma “coisa cristalina”, como diria o cantor e compositor Wando. Aí, aparece uma Clarice ao mesmo tempo filósofa e mística, por mais que essa associação possa parecer paradoxal, pois o neutro estaria também além da própria filosofia, já estaria na mística. Nesse sentido, poderíamos dizer que a intuição é mais importante que o entendimento. 
Uma vez, na escola, eu deveria ter uns 6 ou 7 anos, a professora levou um microscópio na sala de aula e colocou um piolho para que todo mundo pudesse observar. Eu olhei aquele bichinho pelo aparelho e não vi nenhum piolho ali. Eu vi um monstro. Aquele piolhinho tinha se transformado num monstro horrível. Eu fico imaginando um cientista que pega o texto de Clarice e coloca no microscópio. Ele vê uma coisa ali que não é mais a Clarice. Eu acho que o excesso de teorização pode alterar aquele texto que estamos vendo. Talvez por isso a Clarice tenha falado várias vezes que a intuição e o sentimento seriam mais importantes que o próprio entendimento. Tem algo ali que não se explica. Posso fazer uma análise estrutural da narrativa, uma análise linguística, mas sempre tem algo ali que nos escapa, algo que é da ordem do imprevisto, do susto. Ouso dizer: “Largas todos os ismos, ficar só com os sustos”. Se a Clarice se sentia insegura diante do mundo, o que diremos nós diante dos textos de Clarice? Seguros é que não estamos. Mas isso não significa que a sua obra seja hermética. Ela pode ser complexa, mas hermética ela não é. 


Numa entrevista, Clarice contou que um professor universitário a procurou para contar que tinha lido A paixão segundo GH várias vezes, e não tinha entendido. E que uma adolescente a procurou para contar que entendia o texto, e que era seu livro de cabeceira. O que pensar diante disso? Pensem sobre isso. Eu, particularmente, acho que não há segredos na obra de Clarice. 

Caio Ricardo Bona Moreira

 Fragmentos com os quais me propus a dialogar:

“Sinto que não humano é uma grande realidade, e que isso não significa desumano, pelo contrário: o não humano é o centro irradiante de um amor neutro em ondas hertzianas”
(LISPECTOR, 1968, p. 207).

“(...) só realizaria o meu destino especificamente humano se me entregasse, como estava me entregando, ao que já não era eu, ao que já é inumano
(LISPECTOR, 1968, p. 216). 

Fragmento da Carta de Alberto Dines para a Clarice Lispector sobre o Água Viva:
“Você venceu o enredo (...) A gente vai encontrando a todo instante situações-pensamento. (...) É menos um livro-carta e, muito mais, um livro música. Acho que você escreveu uma sinfonia”
(DINES apud GOTLIB, 2004, p. 33). 

“Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. Mas que mal tem isso? Improviso como no jazz improvisam música, jazz em fúria, improviso diante da platéia”
(LISPECTOR, 1980, p. 23). 

“E não adiantaria explicar porque a explicação exige uma outra explicação que exigiria uma outra explicação e que se abriria de novo para o mistério”
(LISPECTOR, 1980, p. 31). 

José Castello sobre Clarice: 
Perseguia o neutro, isto é, aquilo que escapa toda identidade e, portanto, a toda filiação. O que é autônomo e inalcançável, que é selvagem e que, ainda assim, nos rejeita. Em vez e falar de si, Clarice falava do real, essa esfera da vida que sempre nos escapa”
(CASTELLO, 2007, p. 47). 

“Mas esses dias de alto verão de danação sopram-me a necessidade de renúncia. Renuncio a ter um significado, e então o doce e doloroso quebranto me toma”
(LISPECTOR, 1980, p. 26).
Ouve apenas superficialmente o que digo e da falta de sentido nascerá um sentido como de mim nasce inexplicavelmente vida alta e leve”
(LISPECTOR, 1980, p. 25).
“E esta é uma festa de palavras. Escrevo em signos  que são mais um gesto que voz”
(LIESPECTOR, 1980, p. 24).
“Não tenho palavras para exprimir, e falo então em neutro”
(LISPECTOR, 1968, p. 192).

Início de Água Viva:
“É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é o grito de felicidade diabólica. Porque ninguém me prende mais. Continuo com capacidade de raciocínio – já estudei matemática que é a loucura do raciocínio – mas agora quero o plasma – quero me alimentar diretamente da placenta. Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois o próximo instante é o desconhecido. O próximo instante é feito por mim? Ou se faz sozinho? Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma desenvoltura de toureiro na arena. Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa.”
(LISPECTOR, 1980, p. 9)

“Tente entender o que pinto e o que escrevo agora. Vou explicar: na pintura como na escritura procuro ver estritamente no momento em que vejo – e não ver através da memória de ter visto num instante passado. O instante é este. O instante é de uma iminência que me tira o fôlego. O instante é em si mesmo iminente. Ao mesmo tempo em que eu o vivo, lanço-me na sua passagem para outro instante”
(LISPECTOR, 1980, p. 77).

“Quero escrever-te como quem aprende. Fotografo cada instante”
(LISPECTOR, 1980, p. 14).

“E se digo “eu” é porque não ouso dizer “tu”, ou nós ou “uma pessoa”
(LISPECTOR, 1980, p. 13).

“Estou num estado muito novo e verdadeiro, curioso de si mesmo, tão atraente e pessoal a ponto de não poder pintá-lo ou escrevê-lo.”

“Quero pôr em palavras mas sem descrição a existência da gruta que faz algum tempo pintei – e não sei como”
(LISPECTOR, 1980, p. 15).

“A harmonia secreta da desarmonia: quero não o que está feito mas o que tortuosamente ainda se faz. Minhas desequilibradas palavras são o luxo do meu silêncio”
(LISPECTOR, 1980, p. 12).
“Estou me fazendo. Eu me faço até chegar ao caroço”
(LISPECTOR, 1980, p. 41).

“Amor neutro. O neutro soprava. Eu estava atingindo o que havia procurado a vida toda: aquilo que é a identidade mais última e que eu havia chamado de inexpressivo”
(LISPECTOR, 1968, p. 159).
“Esse murmúrio, sem nenhum sentido humano, seria a minha identidade tocando na identidade das coisas. Sei que, em relação ao humano, essa prece neutra seria uma monstruosidade. Mas em relação ao que é Deus, seria: ser”
(LISPECTOR, 1968, p. 161).
Referências: 
AGAMBEN, G.  Infância e História: Destruição da experiência e origem da história.  Belo horizonte: UFMG, 2005.
BARTHES, R. O neutro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CASTELLO, J. Inventário das sombras. Rio de Janeiro: Record, 1999.
____.  Laços literários. In: Entrelivros. São Paulo: Segmento e Ediouro, 2007. (46-50).
____. Literatura na poltrona. Rio de Janeiro: Record, 2007.
GOTLIB, N. B. A descoberta do mundo. In: Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo:Instituto Moreira Salles, 2004.
LISPECTOR, C.  A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
____. Água Viva. 5 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
____. A paixão segundo GH. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Sabiá, 1968. 

Nenhum comentário: