segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Reflexões sobre o estruturalismo e o depois



Um dos fatores de uma mudança no pensamento de alguns filósofos em relação aos estudos de linguagem na Europa dos anos 60 parece ter sido justamente a constatação de que o estruturalismo, que encontrou em Saussure o início de suas postulações e que posteriormente pôde ser aprimorado por pensadores como Levi-Strauss, não estava mais resolvendo sozinho problemas abordados pelos estudos de linguagem, fossem eles no âmbito da linguística, ou no da literatura, entre outras áreas das ciências humanas. François Dosse (1994, p. 73) lembra que quando Julia Kristeva chegou a Paris, não demorou muito para “subverter as perspectivas semiológicas estruturalistas”:

Na França somente desde o Natal de 1965, como se viu, ela assiste ao seminário de Roland Barthes, onde realiza uma exposição decisiva para a grande mutação do paradigma estruturalista dessa segunda metade dos anos 60. Julia Kristeva introduz no curso de Barthes uma visão nova, a do pós-formalismo russo, a partir da obra de Mikhail Bakhtin, desconhecido até então na França (...). A escolha de Bakhtin por Julia Kristeva nesse ano de 1966 não é fortuita; corresponde ao seu desejo de abrir uma brecha na abordagem estruturalista a fim de introduzir nela uma dinâmica histórica, sair do fechamento do texto, ampliar a inteligibilidade dos textos literários (DOSSE, 1994, p. 73).

Sobre o efeito da contribuição de Julia Kristeva para esse momento, François Dosse afirma:

 Essa exposição de Kristeva seduziu especialmente um ouvinte muito atento, que não era outro senão o próprio Roland Barthes. Este vai se apoiar nessas teses, novas para ele, a fim de operar uma virada radical em sua obra: A abordagem de Bakhtin era interessante porque ele via o texto literário, fosse de Rabelais ou de Dostoievski, em primeiro lugar como uma polifonia de vozes no interior do texto (DOSSE,1994, p. 73).



A partir desse momento, inaugura-se uma nova fase, não só no pensamento do escritor francês, mas em toda uma geração que infiltrara-se no programa estruturalista. Um dos aspectos responsáveis por essa mudança via Kristeva foi o conceito de intertextualidade. Este é o elemento que chama a atenção de Barthes e o leva a escrever S/Z. Segundo Dosse (1993, p. 76), “Com S/Z, dá-se a grande virada, o momento em que Barthes desconstrói sua própria grade conceitual para dar maior liberdade à sua intuição literária. Barthes surge onde não era esperado”.

Em relação a Roland Barthes especificamente, outra figura importante nessa guinada epistemológica foi o filósofo da desconstrução: “Nessa nova preocupação percebe-se a influência sobre Barthes não só de Kristeva, mas de todo o grupo Tel Quel e, sobretudo, de Derrida” (DOSSE, 1993, p. 77). A problemática desconstrucionista derridiana passa a influenciar Barthes em sua “preocupação de pluralizar, de exacerbar as diferenças, de as fazer atuar fora da significação num infinito em que elas se dissolvem para dar lugar ao branco da escritura” (DOSSE, 1993, p. 77). Enquanto Derrida esmiúça sua análise no campo filosófico[1], Barthes adere a esse conceito e investiga-o no campo literário. Passa então, a observar que um modelo estruturalista, como o presente em Mitologias, não daria conta do processo de análise.



O resultado desta transição no texto de Roland Barthes desencadeia um texto interessantíssimo, O Prazer do Texto, publicado em 1973. Nele, o escritor desenvolve a idéia de que o texto pode ser um elemento de prazer quando joga com o sentido: “O texto que o senhor escreve tem de me dar prova de que ele me deseja. Essa prova existe: é a escritura. A escritura é isso: a ciência das fruições da linguagem, seu kama-sutra” (BARTHES, 2002, p. 11). O estruturalismo não sabia disso.

Barthes, em O Prazer do Texto, evidentemente se distancia do estruturalismo. Via agora no texto uma Babel feliz, a impossibilidade de estabilizar o sentido não deveria mais ser vista como um fator negativo:

Prazer / Fruição: terminologicamente isso ainda vacila, tropeço, confundo-me. De toda maneira, haverá sempre uma margem de indecisão; a distinção não será origem de classificações seguras, o paradigma rangerá, o sentido será precário, revogável, reversível, o discurso será incompleto (BARTHES, 2002, p. 08).

Agora são os espaços que significam, e não a presença. O “signo” pede passagem, o jogo da significação, a flutuação do sentido. Numa de suas aulas no Collège de France, compiladas em Como viver junto, Barthes explicita a insuficiência do método como elemento único num processo de análise:

O método só é aceito a título de miragem: ele é da ordem do Mais tarde. Todo trabalho é assim assumido como sendo animado pelo Mais tarde. O Homem = entre o nunca mais e o mais tarde. Não existe presente: é um tempo impossível (BARTHES, 2003, p. 267).

O prazer do texto consiste no jogo estabelecido[2].

O texto seduz por meio da escritura. Barthes defende que a sedução se dá por meio da ruptura. A ruptura de uma linguagem centrada, que signifique por excelência. O interessante nesse processo é que o próprio autor constrói um jogo textual, espirros desconexos. Essa nova maneira de pensar a linguagem lembra que o prazer textual se dá num processo de “esconde-esconde”; num lugar em que o sentido é sempre um sentido-talvez. Esta forma de vivificar os signos, que vai além da constatação de uma conclusão, observa que no prazer textual não há “zonas erógenas”; o prazer se dá num quase-aparecer, numa possibilidade que se abre a possibilidades e não na explicitação do sentido levado ao extremo. Convém observar que esse prazer de que nos fala Barthes não é uma essência do texto, não é um lugar, um objeto, uma parte do texto, uma metodologia. Esse prazer está à deriva, tal qual aquela luz que se projeta no caos. Foucault parece compartilhar de uma crítica semelhante à de Roland Barthes. Ao passo que se insere num contexto em que as ciências humanas se fundamentam numa estrutura que lhes confere cientificidade, o pensamento de Foucault transcende o paradigma vigente na época. Para Rajchman (1987, p.15), ”(...) basta uma simples leitura de seus escritos até a Arqueologia do Saber, de 1969, e até sua entrada para o Collége de France (...) para se ver que ninguém explorou mais implacavelmente do que ele a questão de escritura.”



 No momento da publicação de As Palavras e as Coisas, em 1966, questionado sobre a noção de sentido (mais especificamente sobre em que momento ele deixou de acreditar no sentido) - insistentemente problematizado por grande parte dos pensadores da época - Foucault afirma: “o ponto de ruptura situa-se no dia em que Levi-Strauss e Lacan, o primeiro no que se refere às sociedades e o segundo no que diz respeito ao inconsciente, mostraram que o sentido não era, provavelmente, mais do que um efeito de superfície, uma espuma, e que o que nos penetrava, profundamente, o que estava antes de nós, o que nos sustentava no tempo e no espaço era o sistema” (FOUCAULT apud DOSSE, 1997, p. 369).

Mas já em 1963 vemos delineada nos escritos de Michel Foucault a insistência nos estudos de escritura. Pensamento diferente encontramos em 1977, quando chegou a afirmar que “ (..) a história que nos move e determina possui mais a forma de uma guerra do que da linguagem; relações de poder, não relações de significado” (FOUCAULT apud RAJCHMAN, 1987, p.14). [3]

Em As Palavras e as Coisas, chega a colocar a escrita de experimentação como um exemplo claro da busca de uma escritura imanente, com um fim nela mesma, dispersão, marco de uma escritura modernista. O filósofo francês expõe a impressão de que nessa relação da linguagem com sua infinita repetição uma mudança se produziu no fim do século XVIII (FOUCAULT, 2003, p.50). Um dos conceitos desse contexto é a ideia da auto-reflexividade.

Rajchman (1987, p. 16), comentando os pressupostos de Foucault, observa que “(...) a auto-reflexividade ou auto-referência habitualmente figura no que se tornou, mesmo no jornalismo corrente, o gênero ou cânone da obra modernista”. Ou ainda:

A arte volta-se para seus próprios meios e materiais básicos; o ato ou o gesto do artista a ninguém se dirige e não possui outra justificação ou função senão ele próprio. Num certo sentido, diz-se que as obras modernistas questionam-se a si mesmas (RAJCHMAN, p.1987, p. 16).

Nesse jogo de espelho, o período moderno seria a “manifestação de uma linguagem que não tem outra lei senão a de afirmar (...) sua própria e precipitosa existência” (Foucault apud Rajchman, 1987, p. 18).

Quando a arte é despojada de qualquer fim transcendente ou estético, subsiste apenas o mero ato artístico. Olha para dentro de si mesma, cerca-se de uma nova loucura que somente a psicanálise pode analisar. Foucault diz que a transgressão é a única ética no modernismo, pois a cultura modernista não pode tolerar a moralidade. O modernismo é aquela cultura que requer a transgressão no “contradiscurso” da arte moderna (RAJCHMAN, 1987, p. 19).

Esse é o resultado que vemos, por exemplo, na arte de vanguarda. Dalí, Breton, Maiakovski, Picasso, entre outros. No Brasil, é o que encontramos fortemente arraigado na literatura de Oswald de Andrade, Haroldo de Campos em Galáxias, Paulo Leminski em Catatau, Helio Oiticica em Parangolé e Tropicália etc.

Os artistas já não estão em busca do estilo agradável de “dizer as mesmas coisas com outras palavras” mas exploram, heroicamente, a própria “fonte” da linguagem com que designamos coisas, a fonte da fatal estranheza (RAJCHMAN, 1987, p. 20).

Foucault (2001, p. 49) mostra que o processo de representação na cultura ocidental se deu de maneira diferente do da cultura oriental. Na primeira, a escrita fonética seria o exemplo de que essa representação não é a representação do mundo, mas da palavra. Caso contrário acontece com a escrita ideogramática que “representa diretamente o significado, independente do sistema fonético”. É justo ligar esse conceito à ideia de que, neste caso, o significante não remete diretamente a um significado, mas a um outro significante, e outro, e mais outro, espelho do espelho do espelho ad infinitum. O significado, aqui, não seria visto mais como uma flutuação, um deslocamento constante. O sentido aqui escapa, desliza incessantemente.  A significação, assim, não estando presente somente no signo, mas também na ausência dele, revela o que Foucault chama de uma constante flutuação do sentido. Para Foucault (1987, p.13), a busca pela constituição de uma sistematização de um corpus que sirva à interpretação ainda não foi concretizada. A crítica de Foucault centra-se na ideia da desmistificação do sentido “que está por baixo”, escondido sob um véu hermético. Para o filósofo, a resposta está justamente na descoberta de que a profundidade é apenas um jogo.

Jacques Derrida, em L’écriture et la différence, assim como Foucault, questiona a noção de signo formulada pelo estruturalismo. O cerne da questão perpetuada pelo modelo estruturalista se encontra na ideia de fornecer um centro fixo para a estrutura. Segundo Derrida (2005, p. 230), “esse centro tinha como função não apenas orientar e equilibrar a estrutura (...), mas sobretudo levar o princípio de organização da estrutura a limitar o que poderíamos denominar jogo da estrutura”.

O centro, neste contexto, pode ser visto como o predomínio da simetria[4], impregnada que está de uma certeza confortante. Mas a ideia tão presente no pensamento de Derrida, de um centro que não é fixo, ou mesmo a da abordagem de Foucault, de uma constante oscilação do sentido, não pode ser vista como desestabilizadora. Para Derrida (2005, p.232), “a ausência de um significado transcendental amplia indefinidamente o campo e o jogo da significação”. Talvez esse jogo seja o “prazer” de Barthes, um prazer que é atópico, logo à deriva.





[1] Importante lembrar que Derrida também está preocupado com a literatura. Evando Nascimento (1999) escreve uma tese em que analisa as “notas” de literatura e filosofia nos textos de Derrida: “Suponhamos que alguém quisesse resumir o pensamento de Derrida da seguinte maneira: partindo da constatação de que no Ocidente a escrita foi sempre considerada uma simples representação da fala, Derrida intenta em diversos textos desconstruir o valor metafísico dessa representação. E se, dentro de nosso horizonte cultural, a literatura se define como a arte da escrita, fica facilmente explicado seu papel na desestabilização do privilégio do discurso oral” (NASCIMENTO, 1999, p. 29).
[2] Em uma outra aula, o professor lança aos alunos o desafio da construção da aula que estava ministrando: “Eu justaponho as figuras na sala de aula, em vez de misturá-las em casa, à minha mesa. A diferença é que, aqui, não há um quadro final: na melhor das hipóteses, caberia a vocês fazê-lo” (BARTHES, 2003, p. 263).

[3] Nesse período, Foucault estava mais preocupado com as relações de poder na sociedade do que nas questões de escritura. Um pensamento que foi se modificando a partir do ingresso do pensador no Collège de France, com a Ordem do Discurso até Vigiar e Punir, passando pela História da Loucura e da Sexualidade.

[4] Sobre essa questão, podem ser encontradas reflexões em O Elogio da Desarmonia (Dorfles, 1986).

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