quinta-feira, 31 de março de 2016

Atlas Mnemosyne da Guerra do Contestado: 100 anos




Texto dedicado a Daniel Link 
e a todas as pessoas vitimadas pelo Contestado

Como se escreve um desastre? Com tinta, silêncio ou sangue? Sob qual astro maligno seu signo se inscreve? Se etimologicamente desastre significa a posição não favorável dos astros (des-astre / sin-astro), preenchendo de azar um destino, como pensá-lo, ou seja, situá-lo no pensamento, ou ainda, inscrevê-lo no corpo desastrado do texto? Se admitirmos como desastrosa a própria escritura do desastre, restaria, então, escrevê-la. Se como nos sugere Maurice Blanchot, não nos é possível teorizar sobre o desastre, só podemos então, "evocá-lo através de uma forma capaz de reproduzir seu ritmo de incoerências", afirmando a soberania do acidental, bem como o domínio absoluto do azar.
Quando eclodiu a Primeira Grande Guerra, em 1914, os Estados do Paraná e Santa Catarina, no Brasil, assistiam à Guerra do Contestado, iniciada em 1912 e que duraria até 1916, com um saldo de milhares de mortos. Ao contrário da Guerra de Canudos, esta não contou com um narrador como Euclides da Cunha, que pudesse analisar  as contradições de seu combate, legando à história o testemunho das querelas sangrentas do sertão sul brasileiro. Nosso país olhava para a Europa. Mário de Andrade, por exemplo, em 1917, inaugura sua produção literária com Há uma gota de sangue em cada poema, um grito pacifista contra a Grande Guerra, sem ao menos citar o Contestado. No entanto, as palavras finais de seu livro de poemas talvez possam servir como preâmbulo para nossas reflexões desastradas: "Este livro é teu, Saudade do lar; única fada que, espero, concitará os homens ao mútuo perdão, fazendo das trincheiras e das arenas de batalha a mais trágica das solidões" (2009, p. 61).
Na Guerra do Contestado, os camponeses enfrentaram as forças militares dos poderes Estadual e Federal. O conflito levou esse nome por envolver área de disputa territorial entre os Estados do Paraná e Santa Catarina. As duas partes não tinham uma posição quanto à divisa. A economia da região estava concentrada na extração de madeira e no cultivo de erva-mate. A construção da estrada de ferro que ligaria São Paulo ao Rio Grande do Sul - cuja concessão havia sido conferida à empresa norte-americana Southern Brazil Railway, dirigida por Percival Farquart -, agravou a situação, tendo em vista que as terras situadas a quinze quilômetros da ferrovia, tanto à direita quanto à esquerda, foram cedidas pelo Governo à empresa com a finalidade de exploração de madeira e loteamento. A Lumber and Colonization Company, na época a maior serraria da América Latina, foi instalada na cidade de Três Barras, extraindo milhões de pinheiros. Como resultado da desapropriação os camponeses perderam além de suas terras, seu modo de ganhar a vida. A pobreza abriu as portas para movimentos messiânicos. O beato José Maria, que defendia o retorno da Monarquia, começou a pregar um mundo novo regido pelas leis de Deus, reunindo à sua volta milhares de camponeses sem terra. As autoridades começaram a ficar preocupadas com o movimento, que começava a ganhar ares de "Guerra Santa". Tratava-se, então, de uma revolta não só contra a exploração, mas principalmente contra a República. Policiais, militares e vacarianos começaram a ser enviados à região, iniciando-se, dessa maneira, a maior guerra civil camponesa da história do Brasil, talvez superior a Guerra de Canudos. A população cabocla, composta por remanescentes da Revolução Farroupilha, da República Juliana, da Revolução Federalista, da Guerra do Paraguai, de Quilombolas, de índios kaygangues e imigrantes europeus, começou, então, a enfrentar as forças oficiais. O auge da Guerra se deu aproximadamente em julho de 1914, período do estopim da Primeira Grande Guerra. Nesse momento, o movimento sertanejo se encontrava plenamente configurado. Até então os "pelados", como eram chamados os caboclos, vinham apenas se defendendo dos "peludos" - soldados do governo. Agora, os "pelados" partiam para ataques rebeldes, com o objetivo de criarem e/ou reforçarem seus redutos, vingando-se do Governo e dos "coronéis capitalistas".


Se a experiência da guerra, ou seu legado, é a morte, ou mesmo a impossibilidade de experiência, o desastre é a (im)possibilidade de todo e qualquer ato de linguagem, ou seja, é a ruína da palavra. Giorgio Agamben, por exemplo, seguindo as pegadas de Walter Benjamin, encara a destruição da experiência como uma destruição acabada, efetuada, ou seja converte a "queda" diagnosticada por Benjamin em "ocorrência passada, em destruição sem recurso" (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 121). Didi-Huberman, por sua vez, observa que o que cai não desaparece, as imagens estão lá, "até mesmo para fazer reaparecer ou transparecer algum resto, vestígio ou sobrevivência" (idem, p. 121). Ou seja, o que para Agamben acaba, para Didi-Huberman está fadado a sobreviver como ruína ou como lampejo de vaga-lume. O horizonte da morte da experiência dá lugar a "ressurgências inesperadas desse declínio ao fundo das imagens que aí se movem ainda, tal vaga-lumes ou astros isolados". O desastre de uma noite clara mas sem estrelas - para usar uma expressão de Blanchot -  dá lugar a uma constelação de restos. Nesse sentido poderíamos pensar o desastre como passível de ser ainda pensado, mesmo que a partir de ruínas, ou seja, fragmentos. A morte, nesse caso, se configura como linguagem da ausência: "No movimento do desastre, não há começo e fim, mas o acontecimento, o desenvolvimento de uma ruína permanente no corpo estrutural da linguagem". Podemos pensar, nessa concepção, que a história que propomos escrever ou pensar sobre o Contestado se configura como uma espécie de Altas. Atlas, no sentido warburguiano, uma máquina de produzir imagens a partir da justaposição de cacos, estilhaços de um conflito. Arriscaríamos dizer que essa mesa de orientação, pautada pela imaginação, nos convida a pensar a história de um ponto de vista não-fascista, não estando distante de outras máquinas, como a da História do Cinema, de Godard, a das Passagens, de Walter Benjamin, ou mesmo a do projeto Mnemosyne, de Warburg. Máquinas nas quais a imaginação não se nos apresenta como mera faculdade de desrealização, mas como aquela faculdade divina, que segundo Baudelaire, aprende para além dos métodos filosóficos, as relações íntimas e secretas entre as coisas, as correspondências e as analogias" (apud DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 13). Por isso nada tem a ver com uma fantasia pessoal ou gratuita, já que "concede-nos um conhecimento transversal, graças ao seu poder intrínseco de montagem". Curiosamente, a Guerra do Contestado ocorre no mesmo momento em que Warburg já está trabalhando em seu Atlas Mnemosyne, como uma resposta aos "entrincheiramentos políticos dos nacionalismos culturais exacerbados com a Grande Guerra" (idem, p. 171). Aliás, na mesma época, Warburg, fascinado pela Guerra - no seu desejo de utilizar a "memória, para que, no meio da destruição, fosse ainda possível um desejo de pensar" (idem, p. 189) -, elabora o seu Fichário de Guerra (Kriegskartothek), que reúne milhares de documentos sobre o conflito.
Poderíamos, à título de ilustração, elaborar uma prancha - à maneira daquelas montadas por Warburg, em seu Atlas Mnemosyne -, com imagens que, porventura, nos ajudem a pensar a Guerra (Ver ilustração no início da postagem). Na primeira imagem teríamos a reprodução da xilogravura intitulada "O profeta", que Emil Nolde criou curiosamente em 1912, ano do estopim do Contestado e do assassinato do Monge José Maria. Nas duas outras imagens novamente o Monge. Numa delas, a cena do filme "Guerra dos Pelados", de Sylvio Back, no momento exato em que o beato é assassinado. Na outra, a reprodução da pintura que até hoje é cultuada por fiéis do sul do Brasil, que transformaram José Maria em Santo. A associação entre as quatro imagens parece inscrever novos sentidos ao desastre. Messianismo, Expressionismo, cinema e fotografia integram a máquina imagética de fazer pensar que é o Império Caboclo. Na sequência, uma fotografia que ilustra a rendição de caboclos. No primeiro plano, vemos mulheres e crianças. Os sertanejos, nesse momento, já estavam quase todos mortos. Um detalhe nos chama a atenção. Os rendidos estão prestes a serem alimentados com um suculento churrasco. No entanto, não podemos esquecer, como sugerem vários historiadores, que a cena é pavorosa, já que o costume dos militares no Contestado, seguindo uma tradição desde a Guerra do Paraguai, era degolar os rendidos depois de os terem alimentado. Não há imagem que registre essa cena, ou melhor, o que se passou depois. Os olhos de uma das crianças, que entendo serem o punctum da foto, parecem intuir o desastre, materializando um olhar que talvez seja mais chocante do que seu corpo morto ainda vivo. Sobreviventes da Guerra chegaram a confessar terem presenciado mulheres mortas sendo estupradas. Não há foto que registre cenas como essa. Resta-nos imaginar. O Soldado Morrendo (1924), de Otto Dix, poderia ser o desenho do Coronel João Gualberto tombando no front. A xilogravura intitulada Memorial para Karl Liebknecht (1920), de Käthe Kollwitz, poderia ser a representação das exéquias do monge José Maria, em Irani. As ilustrações reforçam a potência expressionista do romance de Schüller.








Para finalizar, gostaria de esclarecer o motivo de ter voltado o olhar para a Guerra do Contestado em uma Jornada destinada a pensar a Primeira Grande Guerra, em seu centenário. Não apenas pelo fato de os dois conflitos ocorrerem no mesmo período, mas também porque o desastre "sempre tem lugar depois de ter lugar" (1990, p. 31), para usar uma expressão de Blanchot. Ou seja, não tem o fim ou limite. Não faria sentido dizer que a Primeira Grande Guerra seria mais desastrosa do que o Contestado, assim como não faria sentido dizer - como a idiota imprensa Brasileira - que a nossa ditadura militar deveria se chamar "ditabranda", ao contrário da ditadura argentina, pelo fato de as estatísticas apontarem um número maior de mortos em solo argentino. E em tempos de eleição no Brasil soa abjeta a posição daqueles que têm defendido, contra o governo do PT, o retorno da ditadura militar. Essa fala é no mínimo desastrosa e desastrada. Lembremos que a linguagem, bem como o pensamento, entra em crise no desastre. E este está fadado a sobreviver em suas ruínas, no rumor que continua murmurando no fragmentário. A região do Contestado, cindida por novos limites, ainda hoje é considerada o berço da pobreza no Sul do Brasil. Os descendentes dos caboclos ainda sentem, cem anos depois, o impacto social desencadeado pelo conflito e redesenhado pela história. No documentário Restos Mortais, o cineasta Sylvio Back levou médiuns para as terras do conflito, com a intenção de ouvir dos espíritos, ou seja, dos sertanejos desencarnados, nos médiuns incorporados, palavras sobre a Guerra. Muitos deles deixaram registrados na película que essa Guerra não acabou. O fato inusitado de entrevistar espíritos - para quem acredita neles, independente de crenças religiosas -, inscreve um novo sentido ao conceito de testemunho, já que neste caso aquele que viveu o verdadeiro horror, voltou para contar. Sim, a Guerra ainda não terminou. Que este texto seja uma singela homenagem a esses fantasmas que ainda não terminaram de escrever, de viver, ou seja, escreviver, o seu desastre. 



REFERÊNCIAS:

ANDRADE, M. de. Obra Imatura. Rio de Janeiro: Agir, 2009.
BLANCHOT, M. La escritura del desastre. Monte Ávila Editores: Caracas, Venezuela, 1990.
DIDI-HUBERMAN, G. Ante el tiempo. Buenos Aires: Adriana Idalgo Editora, 2006.
____. Atlas ou a Gaia Ciência Inquieta. KKYM; Escola de Arquitetura, Universidade do Minho. Lisboa, 2013.
____. Imágenes pese a todo. Memoria visual del Holocausto. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 2004.
____. Sobrevivência dos Vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
LOPES, E. et al. Quem é Donaldo. Disponível em . Acesso: em 01 mai. 2014.
ROSA, J. G. Tutaméia (Terceiras Estórias). 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
SCHÜLER, D. Império Caboclo. 3 ed.  Florianópolis: Editora da UFSC; Porto Alegre: Editora Movimento, 2005.

WEINHARDT, M. Mesmos crimes, outros discursos? Curitiba: Ed. da UFPR, 2000.

Obs: O texto aqui publicado é parte de uma comunicação apresentada na UNTREF, Buenos Aires, em dezembro de 2014. No evento, em 2014, apresentei, além das reflexões postas acima, uma leitura do romance "Império Caboclo", de Donaldo Schüler, romance experimental que tem me chamado a atenção há alguns anos e sobre o qual já escrevi anteriormente.

terça-feira, 29 de março de 2016

Crítica, elogio do objeto ausente


Giorgio Agamben

Giorgio Agamben, no prefácio de Estâncias chama a atenção para o fato de que se a crítica se identifica hoje com a obra de arte, “isso não acontece por ela também ser criativa, mas sim por ela ser também negatividade” (2007, p. 10). Nesse sentido, mais do que reencontrar o objeto, dissecá-lo, como fizeram os estruturalistas, na expectativa de explicar o funcionamento de um aparelho, de uma máquina, de um corpo, a crítica deveria garantir “as condições da inacessibilidade desse objeto”. Ainda no prefácio, o filósofo italiano, tocado pelas questões da negatividade, lembra de uma cisão que se produziu desde a origem de nossa cultura e que se costuma aceitar como realidade natural. Agamben se refere à cisão entre a filosofia e a literatura, que se solidificou a partir de Platão. Resultado: A poesia acabou gozando do objeto sem o conhecer. E a filosofia, por sua vez, conhecendo o objeto sem o possuir.
O que Agamben está querendo mostrar é que essa cisão merece ser interrogada já que a poesia pode se voltar para o conhecimento, assim como a filosofia pode se voltar para o gozo, para a alegria.  E aqui, abrindo um parêntese em nossa reflexão, não poderíamos nos furtar de perceber o interesse que um filósofo como Agamben vem nutrindo pela literatura, como uma possibilidade para o próprio filosofar, assim como uma série de críticos literários vêm se interessando cada vez mais pela filosofia como uma forma de refletir sobre a literatura. As colocações de Agamben sobre a cisão incitam a uma reflexão sobre a crítica, que “não representa nem conhece, mas conhece a representação” (AGAMBEN, 2007, p. 13). Essa operação nos convida a “buscar o gozo daquilo que não pode ser possuído”, bem como “a posse daquilo que não pode ser gozado” (2007, idem). O que nos leva a questionar o significado da crítica, problematizando-a a parir da etimologia da palavra, que vem do grego Krinein que quer dizer “julgar”. Tristão de Ataíde referiu-se ao tríplice movimento em que se processa a crítica: “O da submissão à obra, o da dissecação da obra e o da recomposição da obra através das impressões recebidas” (ATAÍDE apud COUTINHO, 1975, p. 155). Mas hoje, pergunto, que sentido tem para um crítico perguntar simplesmente se determinada obra é boa ou má, em um momento em que as certezas, os julgamentos de valor, são cada vez mais abaladas? 

Alceu Amoroso Lima, vulgo Tristão de Ataíde

A pesquisadora Leyla Perrone-Moisés observa que “no mal-estar de um julgamento cada vez mais desprovido de critérios estáveis, a crítica, modesta, contentou-se em explicar os textos ou, “científica”, pôs-se a analisar” (1998, p. 9). Depois de uma obra como o “Urinol”, de Duchamp, como julgar todas as outras? Tocamos nessas questões apenas para pontilhar os impasses com os quais convive a tarefa do crítico. Se a sua tarefa é garantir as condições da inacessibilidade de um objeto, parece cair por terra o binômio bom/mal que encerra um julgamento de valor e a figura do crítico como um juiz do Tribunal da Santa Inquisição. Bastaria lembrar das colocações de Walter Benjamin sobre a fissura criada pelos românticos na tradicional concepção de crítica:

Apenas com os românticos se estabelece de uma vez por todas a expressão “crítico de arte” em oposição à expressão mais antiga “juiz da arte”. Evitava-se a representação de um tribunal constituído diante da obra de arte, de um veredito fixado de antemão como lei escrita ou não escrita (...) (BENJAMIN, 2002, p.58).

 Tradicionalmente, o crítico é aquela figura autorizada que, antes de dar o veredito, decifra os mistérios da obra, como se o livro se constituísse como um manancial de segredos merecedores ora de um “sim”, ora de um “não”. Mas ao invés de falar em segredos, prefiro pensar em enigmas. Para Mallarmé, na poesia deve sempre haver enigma, ele é o objetivo da literatura. O mesmo enigma - o indizível - que Agamben (2006) apontaria no poema “Eleuzis”, de Hegel, dedicado a Hölderlin. Advém daí uma concepção de poesia enigmática, em que tudo o que é sagrado e quer permanecer sagrado se envolve em mistério, como diria o poeta de “Um lance de dados”, no artigo “L´Art pour le tous” (PEYRE, 1983, p. 37). Se o enigma é o objetivo da literatura, porque não o seria também da crítica? 

Mallarmé

Um dos filósofos que se dedicou ao estudo do enigma foi Walter Benjamin. Em uma das passagens de seu ensaio Las afinidades electivas de Goethe, Benjamin contrapõe o comentador ao crítico, descrevendo aquele como uma espécie de químico e este como um alquimista.  Pensemos numa fogueira em chamas: enquanto que para o químico só interessa como objeto de análise madeiras e cinzas, para o alquimista só a chama mesma conserva um enigma: o da vida (BENJAMIN, 2000, p. 14).   Reflexões semelhantes aparecem na tese de Benjamin sobre o barroco. Nela, Benjamin pressupõe a crítica como mortificação das obras, “não um despertar da consciência nas que estão vivas, mas uma instalação do saber nas que estão mortas” (1984, p. 203-204). Manter o objeto inacessível é manter o enigma e não eliminá-lo, devolvendo potência a ele, fazendo sua força entrar em contato com outras forças. É também, para usar uma terminologia do crítico argentino Raul Antelo, lendo Murilo Mendes, entender o texto como “museu imaginário”, um museu que “acena para as virtualidades de texto muito mais de que para as realizações de texto, para suas falhas muito mais do que para suas falas” (2001, p.111). 

quinta-feira, 24 de março de 2016

Filósofos atores

Talvez fosse interessante Refletir sobre a tímida - no entanto, curiosa - participação de filósofos ou críticos em filmes, como Agamben, no filme de Pasolini (O Evangelho segundo São Mateus), como o apóstolo Filipe, e Alexandre Eulálio, no filme de Joaquim Pedro de Andrade (O Homem do Pau Brasil), como o Livreiro Chardenar, cujo roteiro Eulálio também assinou. De filósofo a estrela (o cinema por vezes equipara o verbo estrear com estrelar), o crítico encenando na obra faz-se crítico-ator, esteta-estrela, filósofo-artista. Talvez isso gere curiosas implicações para a convidativa reflexão sobre a fértil e constelar relação entre filosofia-arte, crítica-poesia.

Alexandre Eulálio em uma das cenas de O Homem Pau Brasil, de Joaquim Pedro de Andrade

Giorgio Agamben, em uma das cenas do Evangelho segundo São Mateus, de Pasolini 

segunda-feira, 21 de março de 2016

Laocoonte



Inspirado nas conferências radiofônicas de Walter Benjamin para crianças, Georges Didi-Huberman proferiu a palestra intitulada "Que Emoção", para jovens com mais de 10 anos. Depois de sua fala, ao ser questionado por uma criança sobre uma passagem da conferência, aquela que falava sobre a história de Laocoonte, e o motivo dos inocentes filhos deste personagem de Tróia serem, além do pai, sufocados por serpentes enviadas pelos deuses, o palestrante respondeu: "A mitologia grega é muito cruel. (...) É muito cruel. Por que é que é assim tão radical? Por que é que se matam civis nas guerras? Por que é que hoje em dia quando se faz a guerra não se matam apenas militares, mas também as mulheres, as crianças, os velhos? É terrível, mas é assim. Farei uma associação de ideias entre a tua questão - por que são os deuses tão cruéis - e o momento em que inventaram o gás, durante a Primeira Grande Guerra: tudo o que vem do céu não faz distinção. Tudo o que mata a partir do céu é feito para matar toda a gente".

quinta-feira, 17 de março de 2016

O negro e a arte, o negro na arte (racismo e outros poréns): Apontamentos

Um dos primeiros poetas brasileiros que escreveu sobre o negro foi o baiano Gregório de Mattos, considerado por José Veríssimo, de uma forma pouco carinhosa, como um "malcriado rabugento". O Gregório é uma figura curiosa. Apesar de louvar a beleza da negra e da mulata, nutria uma particular ojeriza por negros e mulatos, os quais chamava de "cães". Isso no século XVII.


 No mesmo século, o Padre Vieira - que era português, mas passou boa parte da vida no Brasil -, dedica-se incansavelmente a defender os índios, os judeus e os negros, mas, por questões estratégicas, questões políticas também, defende a escravidão. Ele sabia da importância da escravidão no processo de consolidação da economia portuguesa. Ele vê o negro como uma figura valorosa, mas destinada por Deus ao serviço dos outros. E ele, como é comum nos seus sermões, fundamenta sua posição com passagens bíblicas.  No Sermão Décimo Quarto, que é um sermão que ele pregou para escravos e senhores, ele defende que os negros são filhos de Maria e de Deus, e deveriam aceitar a vida que lhes era imposta não como desterro, cativeiro e desgraça, mas como milagre, já que o fato de serem trazidos para o Brasil era uma forma de se tornarem cristãos abandonando a vida “sem cultura” e “sem religião”, entenda-se, aqui, sem uma religião cristã, o que para o Padre Vieira representava a perdição. Sob o ponto de vista dele, Infelizes seriam aqueles que permaneciam na África, adorando falsos deuses e sem a possibilidade da salvação. Vieira compara o sofrimento dos escravos aos de Cristo, na santa Cruz, como se isso justificasse o seus sofrimentos. E chega a observar que os negros deveriam ser felizes e agradecidos aos donos que lhes propiciavam a possibilidade de alcançar a vida eterna. Eu não quero aqui diminuir a obra daquele que considero um dos maiores prosadores da literatura brasileira, o imperador da língua portuguesa como diria Fernando Pessoa. Quero apenas apontar para o fato de um discurso da época ser materializado nesse sermão. Um discurso que, fundamentado na religião da época, ao mesmo tempo que humanizava o negro, intentava legitimar a escravidão.


Ainda no século XVII, encontramos a pintura intitulada "Mulher Negra", de Albert Eckhout, um holandês que veio para o Brasil com a frota de Nassau, nas Invasões holandesas. O quadro é um dos primeiros documentos etnográficos da sobrevivência dos valores africanos por meio da imponência corporal e das vestimentas. É um retrato um tanto quanto ficcional, mas que já constrói um lugar social hierarquicamente inferior para a mulher negra ao configurar sua imagem dividida entre o animal e a coisa, como uma espécie de objeto inclusive sexual para o homem branco.


No século XIX, encontramos uma litografia do alemão Johann Moritz Rugendas, que veio para o Brasil em 1821, com a Expedição do barão Langsdorff, ou seja, alguns anos depois de Debret que veio na Missão Artística Francesa, em 1916. O quadro, intitulado “Mercado de negros” apresenta com uma luz branda uma cena do cotidiano da escravidão: humanos tratados como coisas, exibidos e postos à venda como mercadorias. Apesar de ter como pano de fundo uma bela paisagem, a cena é triste. No segundo plano vemos uma igreja católica e a natureza. No primeiro plano, vemos um comerciante e um freguês, provavelmente discutindo um negócio. Aparecem vários cativos. Em torno do fogo se reúnem mulheres, alguns homens estão sentados sobre esteiras, um trio de pé conversa com uma vendedora negra, outro fica observando a paisagem, debruçado na mureta. Mas o que me chama a atenção nesse quadro é um pequeno detalhe, que faz toda a diferença. Há um negro na extrema esquerda que está desenhando sobre a parede, um pouco alheio ao que se passa no ambiente. Outros estão observando. Perceberam? A cena pode ser inverossímil, mas é altamente informativa. O Rugendas parece sugerir a preservação da humanidade em meio a uma situação hostil, além de revelar a cultura artística como uma prática entre os negros escravizados. Ou seja, durante a escravidão, quando a expressão dos negros era restrita, um escravo se vale das artes como meio de autorrepresentação. O quadro é analisado pelo Roberto Conduru no livro "Arte Afro-Brasileira".


Há um quadro que aprecio bastante, de 1895, do pintor Modesto Brocos, intitulado “A redenção de Cã”. Apesar de ser um quadro bastante realista, criado com base nos moldes acadêmicos do final do século XIX, é alegórico. Nele vemos uma avó que agradece a Deus pelo progressivo branqueamento da sua família. Esse tipo de representação está intimamente ligado com preconceito racial do final do século e o desejo de purificação da raça. Ou seja, está muito próximo das correntes cientificistas da época que, como bem analisou a Lilia M. Schwarcz, no livro Espetáculo das Raças, criou um paradigma que era defendido por médicos, intelectuais, escritores, cientistas, de que o negro era inferior e que a mestiçagem era um fator de degeneração das raças e por extensão da própria nação. Um paradigma que vai ser problematizado por Gilberto Freire em Casa Grande & Senzala, que, assim como o cubano José Vasconcellos, via na mestiçagem um fator positivo e não negativo para a nação. Na Europa, já sabemos o resultado desse pensamento racial purista: Medidas biopolíticas: Campo de Concentração!


Na literatura brasileira do final do século XIX e início do século XX é muito comum encontrarmos esse paradigma cientificista, que produz um racismo exacerbado, ou que pelo menos o representa: Canaã, de Graça Aranha, O mulato, do Aluísio Azevedo, O Bom Crioulo, do Adolfo Caminha, que aliás é o primeiro romance homossexual da nossa literatura. O Monteiro Lobato, para vocês terem uma ideia, chegou a defender em uma carta dirigida ao seu amigo Godofredo Rangel, que o Brasil só seria uma nação bem desenvolvida quando possuísse uma Ku Klux Klan. São várias as cartas em que ele se refere de forma pejorativa aos negros. Na sua prosa também. O fato vem rendendo uma discussão nacional, se algumas de seus textos devem ser retirados de livros didáticos, o que acho lamentável, porque ele escrevem numa sociedade cujo paradigma científico era extremamente violento em relação aos negros. Sem contar o fato de que apresentar esses textos aos nossos alunos é uma forma de discutir a questão também. Mas o Governo tomou uma posição que acho importante que é a de não censurar os textos, mas de contextualizá-los, propiciando assim a discussão. Há um livro interessantíssimo do Monteiro Lobato, intitulado “O presidente negro”, que ele publica em 1926. No livro, ele prevê a eleição de um presidente negro nos Estados Unidos para 2256. A profecia se fez bem antes do previsto, mas é importante lembrar que o escritor vê nessa eleição algo muito negativo para a nação norte-americana, justamente porque se tratava de um negro.


Enfim, analisássemos com mais atenção, encontraríamos muitas obras que poderiam ser chamadas de racistas. Mas o discurso do racismo, apesar de ser dominante - porque esteve ligado à classe dominante, ao longo de nossa história -, não é o único. Nem tudo assim é escuridão, como diria a poeta Hilda Hilst. Há também o discurso oposto, produzido pelos negros, que afirma a sua dignidade, talento e capacidade. Não seria fortuito lembrar que dois dos nossos maiores escritores do final do século XIX são afro-descendentes: Na prosa, Machado de Assis; na poesia, Cruz e Sousa. O que já basta para desconstruir o paradigma cientificista da época. Há um inconformado, chamado Lima Barreto, que em Clara dos Anjos, expõe de forma visceral o problema do preconceito enfrentado pelos negros, encerrando o romance de maneira bastante pessimista. 





Há a obra de Aleijadinho, que ao misturar o barroco europeu com a expressão da negritude, produziu aquilo que o escritor cubano José Lezama Lima chamou de arte da contra-conquista. Para Lezama, o nosso barroco não era a arte da contra-reforma, mas sim a arte da contra-conquista: o mestiço, pela capacidade de assimilar a cultura do colonizador, mesclando-a com a sua, daria uma resposta não só estética, mas política ao europeu, provando que é tão capaz quanto ele de produzir arte. Nesse sentido poderíamos chamar a arte de Aleijadinho de pré-antropofágica, pensando em Oswald de Andrade. 


O que o Aleijadinho fez no Brasil ao esculpir anjos barrocos com a feição do mestiço, o Índio Kondori, fez na portada da Igreja de San Lorenzo de Potosí, na Bolívia, ao mesclar os anjos europeus com figuras da mitologia inca. Esse gesto parece ser mais radical do que aquele que vemos no cubismo de Picasso, em que podemos perceber a sobrevivência da cultura africana por meio das máscaras e esculturas. Por exemplo no quadro: Les demoiselles d'Avignon.


Para finalizar gostaria de lembrar de mais dois exemplos. Primeiro, o mais recente romance de Chico Buarque, Leite Derramado, que apresenta de forma sutil e muito inteligente o problema do preconceito no nosso país. O narrador do romance, Eulálio D´Assumpção, que representa a fidalguia decadente, apesar de se apaixonar por uma mulata, a Matilde, e aceitar a mistura de raças na sociedade, decepciona-se ao ouvir a namorada de seu bisneto o chamá-lo, de momento do amor, “de negão”, por representar no corpo os traços raciais da bisavó. O Chico, como um legítimo Buarque de Holanda, seguindo os passos do pai, o Sérgio Buarque de Holanda, tem levado essa discussão sociológica para o âmbito da literatura e da música também. É o caso da música Sinhá, que integra o mais recente disco lançado pelo compositor, há uns dois meses. Na música, encontramos a história de um escravo que é capturado próximo ao açude onde se banhava nua a mulher do senhor. O senhor, acreditando que o negro estava espiando sinhá, decida castigar o negro, que é o narrador de toda a canção, com exceção da última estrofe em que o narrador, é o próprio Chico que se diz descendente tanto do negro quanto do senhor. Nesse sentido a música é belíssima por materializar a própria estória do Brasil. Peço licença a vocês para ler na integra a letra, chamando a atenção para os dois narradores da música e para o fato de Chico usar de 3 formas diferentes um mesmo pronome de tratamento: vosmecê, vosmincê, vassuncê. A palavra vai se transformando ao longo da música, como se sofresse a cada chibatada. Por outro lado, a transformação indica a própria mudança de tempo, como se a música, como disse, fosse um retrato da própria história de nosso país.


terça-feira, 15 de março de 2016

Heterotopias Urbanas e as Intervenções Poéticas





Michel Foucault, no ensaio "Outros Espaços", que integra a coleção Ditos & Escritos, desenvolve o conceito de heterotopia. Segundo o filósofo, vivemos em um tempo que privilegia o espaço e suas relações. O seu ponto de vista é o de que estamos na época do simultâneo, da justaposição, do disperso, momento em que o mundo se experimenta "menos como uma grande via que se desenvolveria através dos tempos do que como uma rede que religa pontos e que entrecruza sua trama" (2001, p. 411). A valorização do espaço não seria uma inovação, mas a maneira como nos relacionamos com ele é típica de nossa época. Na Idade Média a noção predominante de espaço era de "localização", uma concepção que entende o espaço como um conjunto hierarquizado de lugares, profanos e sagrados, protegidos e sem defesa, urbanos e rurais, celestes e terrestres, por exemplo. A partir de Galileu, o espaço passa a ser entendido como infinito e infinitamente aberto. O lugar de uma coisa passa a ser não mais do que um ponto em seu movimento, ou seja, a partir do século XVII, a extensão toma o lugar da localização.


Para Foucault, atualmente, o posicionamento substitui a extensão, que substituía por sua vez a localização: "O posicionamento é definido pelas relações de vizinhança entre pontos ou elementos; formalmente, podem-se descrevê-las como séries, organogramas, grades" (2001, p. 412). Nesse contexto, não se trata mais de pensarmos se haverá lugar para o homem no mundo, mas de saber que relações de vizinhança podem ser estabelecidas. Ou seja, estaríamos em uma época na qual o espaço se ofereceria para nós sob a forma de "relações de posicionamentos". As utopias e heterotopias, segundo Foucault, são dois tipos de espaço, que têm a "curiosa propriedade de estar em relação com todos os outros posicionamentos, mas de um tal modo que eles suspendem, neutralizam ou invertem o conjunto das relações que se encontram por eles designadas, refletidas ou pensadas" (2001, p. 414). Enquanto as utopias são posicionamentos sem lugar real, as heterotopias - utopias efetivamente realizadas - são espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora sejam efetivamente localizáveis.
Penso se o ensaio de Foucault não nos ajudaria a pensar nas intervenções poéticas urbanas como espaços heterotópicos. Trata-se de refletir sobre a espacialidade da poesia tendo como elemento norteador uma ação intervencionista da arte. O lugar da poesia deixa de ser o livro ao migrar para a praça. Em outras palavras, pensar na poesia como ato e vivência, como ato e potência simultaneamente. O espaço da intervenção poética é um espaço de art action. E essa é uma atitude fundamentalmente política. É para usar uma expressão de Renato Rezende - quando este discute o movimento CEP 20.000[1] -, de uma "política no sentido mais originário do termo, ao pregar uma nova forma de relacionamento, criação e fruição artística entre cidadãos da cidade, da pólis" (2010, p. 20).

Chacal e o CEP 20.000

Octavio Paz, em O arco e a lira, escreve sobre o renascimento da poesia entendida como algo que deve ser vivido por todos, nesse sentido como arte coletiva da festa. Para o ensaísta, em certos momentos e lugares, isso de fato é possível: "a arte da festa espera a sua ressurreição. A festa antiga era baseada na concentração ou encarnação do tempo mítico num espaço fechado que de repente se torna o centro do universo pela descida da divindade".  Uma festa moderna obedeceria a um princípio contrário: "a dispersão da palavra em diferentes espaços, e seu ir e vir de um ao outro, sua perpétua metamorfose, suas bifurcações e multiplicações, sua reunião final num único espaço e numa única frase" (PAZ, 2012, p.287-288). Não seria esse o caso de uma intervenção poética urbana? A produção de uma heterotopia, ou seja, a criação de um lugar fora do lugar comum, do cotidiano, e ao mesmo tempo a dispersão da palavra, por meio da festa, em diferentes espaços, em perpétuo movimento e ação?
Na relação "poesia" e "intervenção" podemos encontrar aquilo que Octavio Paz encontrou na aproximação entre os novos meios de comunicação e a poesia, que sinalizam para o retorno da poesia oral, a volta da poesia como festa, cerimônia, jogo e ato coletivo:

Em sua origem, a poesia era palavra falada e ouvida por uma coletividade. Pouco a pouco o signo escrito substituiu a voz humana, e o leitor individual, o grupo: a poesia se transformou numa experiência solitária. Agora voltamos à palavra falada e nos reunimos para escutar os poetas; cada vez mais, em vez de ler poemas, nós os ouvimos - e o fazemos reunidos em grupo (PAZ, 2012, p. 324).

Reunir poetas e declamar poemas em uma intervenção poética, abalando o cotidiano da rua, não seria exatamente a fomentação desse reencontro com a palavra falada? A espacialização da poesia, a corporalização da palavra, - ressignificando a própria relação entre natureza e cultura -, na encarnação do poema dito e ouvido com o corpo, com voz e ouvidos, seria, dessa forma um reencontro com nosso destino ancestral voltado para a palavra poética, uma cultura que não separada a palavra da natureza. Para Paz, não é menos revelador o fato de que hoje a recepção de poemas tente a tornar-se um ato coletivo: "à substituição do livro pelos outros meios de comunicação e do signo escrito pela voz correspondem a corporalização da palavra e sua encarnação coletiva" (2012, p. 325).
Renato Rezende, ao ler a obra do poeta Guilherme Zarvos, observa que nada seria mais urgente do que a destruição e a superação da estética - tal como ela se delineou na cultura ocidental a partir de Kant - e o resgate da arte em sua função originária (no sentido da poiesis grega, arte como produção: dar presença a algo; ou "modo de verdade compreendida como desvelamento) para desviarmos de um destino niilista" (2010, p. 38). Nesse sentido, recuperar a função originária da poesia significaria para a arte recuperar a capacidade de transmitir e compartilhar uma experiência. Tal gesto, sem sombra de dúvidas, é hoje de resistência e paixão. Em um primeiro momento a figura do poeta que intervém, que interfere no espaço urbano com sua poesia é a figura de um marginal. Essa marginalidade, no entanto, não é de todo ruim. É ela que confere ao poeta a capacidade de ler o mundo com olhos atentos, já que da margem melhor se olha o centro e o sentido das coisas. Paulo Leminski, em um dos poemas de Distraídos Venceremos, prefigurou:

Marginal é quem escreve à margem
deixando branca a página
para que a paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem.

marginal, escrever na entrelinha,
sem nunca saber direito
quem veio primeiro,
o ovo ou a galinha
(LEMINSKI, 2002, p. 70)

  É também essa marginalidade que confere ao poeta um "privilegiado lugar de liberdade" que, segundo Renato Rezende, pode propor de forma autêntica - engajada politicamente de maneira independente e crítica - uma "nova partilha do sensível" (REZENDE, 2010, p. 34). In-significante ou in-ofensivo para os desatentos, o poeta, cujo discurso e postura muitas vezes é a do louco, tem o poder de falar o que muitos não têm a coragem ou a possibilidade de dizer. Essa nova partilha do sensível a que se refere Rezende, inspirada em Rancière, redimensiona as relações entre arte e sociedade, chegando a redimensionar as relações entre arte e vida. Na contemporaneidade, a distância entre a experiência, o conteúdo da arte bem como o ato de sua transmissão, no limiar de uma nova partilha do sensível, é superada[2]. É o que pode se materializar com frequência em uma intervenção poética, já que ali se dá um outro tipo de contato, ou partilha, com a obra de arte, muito diferente de como ela é tradicionalmente (com)partilhada.  
Nas intervenções, o papel do público é muito importante. Não necessariamente porque o público é fundamental para que o evento aconteça, mas porque na intervenção o público não é entendido apenas como espectador. Assim como o público é levado a subverter o seu passeio tradicional - já que a intervenção é uma espécie de abalo sísmico no cotidiano da rua, uma subversão à vida tradicional -, o público é convocado também a ser "vivenciador" da poesia, ou seja não passivo ou mero figurante. Vivenciar a poesia significa aqui não apenas ouvir os poemas que são declamados na praça, mas declamar também. É comum nas intervenções que os próprios passantes, estimulados pelo ambiente poético, peguem o megafone e declamem versos de seus gostos.
Imaginada para ser um espaço transitório de poesia, um lugar de passagem, a intervenção poética parece recuperar também a utopia da cidade situacionista, poética por excelência:

Se multiplicarão, digamos, os objetos e os sujeitos poéticos, desgraçadamente tão raros atualmente que os poucos que existem assumem uma importância afetiva exagerada; e se organizarão jogos destes sujeitos poéticos com aqueles objetos poéticos. Este é o nosso programa, essencialmente transitório. Nossas situações não buscarão acomodação, serão lugares de passagem (DEBORD, 2007, p. 57).

Em um certo sentido, a cidade e mais especificamente a praça, nesse contexto, passam a ser vistas como obras de arte, ou melhor lugares-obras onde ser produz e compartilha arte. Talvez por isso Guy Debord tenha escrito em um de seus textos situacionistas que "mudar nossa maneira de ver as ruas é mais importante que mudar nossa maneira de ver uma pintura" (2007, p. 61). Trata-se de um novo modo de vida. E ao inverter o ritmo da cidade uma intervenção tem o poder de imaginar um novo modo de vida.

Guy Debord, The Naked City, 1957

Para o situacionista Constant, um ambiente amortecido e estéril é o resultado de nosso tempo. A circulação de carros e o conforto das habitações são as "miseráveis expressões de felicidade burguesa". Para ele, toda a preocupação lúdica está ausente: "Diante da necessidade de construir rapidamente cidades inteiras, nos dispomos a construir cemitérios de concreto armado, em que grande parte da população está condenada a morrer de tédio (2007, p. 81). Falta, assim, imaginação. E para combater a falta dela, Constant reivindica a aventura. E para isso, no caminho da utopia - ou melhor da heterotopia - o situacionista, propõe a criação de situações novas, que possam romper as leis que impedem o desenvolvimento de atividades eficazes na vida e na cultura. Trata-se de um pensamento consciente de que nos encontramos na autora de uma nova era, onde é possível esboçar a imagem de uma vida mais feliz e de um urbanismo voltado para o prazer. Não seria a intervenção poética uma atividade voltada não só para a ocupação cultural de espaços urbanos, mas para a prática efetiva de criação e compartilhamento de uma arte do porvir, capaz de convidar a cidade para novas relações urbanas e afetivas/poéticas entre os sujeitos? Ou seja, novas relações entre as pessoas, a arte e a cidade? Trata-se de pensar a praça como habitat da poesia expandida, o poema "urbano" - na vida "urbana" - como morada do homem "urbano", ou mesmo o espaço "urbano" como poema, e não apenas como sua estância concreta.
O poeta catarinense Lindolf Bell, que foi um dos idealizadores do movimento Catequese Poética, costumava dizer que acreditou sempre em um destino oral no poema, porque "é na palavra que está o destino". Para ele, quando se diz um poema, um poema bem dito, "acorda-se nas pessoas um destino arcaico" (2010, p. 33). Assim como no poema há um destino oral, no homem, há um destino poético. No dizer de Bell, esse destino é comum e se faz por meio da palavra, que por sua vez tem um destino oral.

Lindolf Bell e a Catequese Poética

O movimento da Catequese Poética foi fundado em São Paulo em 1964. De lá se espraiou para vários lugares do Brasil, congregando muitos poetas e simpatizantes. Segundo Péricles Prade, a finalidade do movimento era catequizar, como sugeria o seu batismo, "levar a poesia ao conhecimento do grande público por meio de leitura de poemas em lugares previsíveis e imprevisíveis, como o Viaduto do Chá, em São Paulo, estádios de futebol, teatros, boates, feiras, clubes, escolas e eventos de toda natureza" (in BELL, 2009, p. 10). Como em nosso país as pessoas leem pouco, foi a forma que o movimento encontrou de disseminar poesia e conduzir a arte ao povo, democratizando-a. O poeta costumava dizer que o lugar do poema é "onde possa desorganizar" (BELL, 1974, p. XXIII). Tanto a Catequese Poética, quanto outras atividades culturais de Bell, como a confecção de camisetas e a inscrição de poemas em praças públicas, são exemplos de intervenções poéticas que fizeram de Bell além de poeta um mediador cultural.
Uma intervenção poética urbana pode funcionar como um elemento catalizador deste destino poético que nos irmana uns aos outros, assim como perpetua o destino oral do poema vivenciado nas declamações e responsável pelo resgate do sentido da própria poesia, poiésis, ação. 
Percebe-se, hoje, mais do que em qualquer outro momento uma proliferação de coletivos artísticos, movimentos de intervenção poética urbana, arte de performance, entre outros movimentos de a(r)tivismo cultural que, inseridos no universo das art actions, têm revolucionado o modo de se fazer e compartilhar arte nos espaços urbanos do presente.
Em Brasília, por exemplo, o Coletivo Transverso espalha poesia pela cidade. Na sua página virtual, lê-se a seguinte definição do grupo: "ARTE URBANA E POESIA. Encontre o seu lugar. Particularize. Faça parte. Deixe cicatrizes contemporâneas. Pinturas Rupestres. Tatuagens Efêmeras. Seja solidário. Transcreva, transmute. Abra espaço para que as borboletas possam voar sobre o concreto".


 Coletivo Transverso

Coletivo Transverso e o poeta Nicolas Behr

O poeta, no universo de sua marginalidade e invisibilidade encontra formas de deixar marcas na cidade, ou como sugere a chamada do grupo "cicatrizes contemporâneas", lançando ao espaço e sobre o concreto o voo poético de borboletas. Em todos os casos impera a revalorização da arte em espaços urbanos, bem como o incentivo à poesia, essa atividade tão frágil nos dias de hoje, mas ainda muito capaz de lançar luz sobre nossas misérias e barbáries. 
Michèle Petit, em seu livro A arte de ler, apresenta muitos casos de pessoas para quem a leitura da literatura foi um remédio para a vida em tempos de terror ou intensa dor. Primo Levi, por exemplo, recitava Dante a seu amigo Pikolo, em Auschwitz. Brodsky, condenado a trabalhos forçados em um lugar próximo ao círculo polar, lia Auden, "de onde tirava forças para sobreviver e enfrentar os carcereiros" (2009, p. 16). São apenas dois exemplos de resistência da vida por meio da arte. A leitura, com suas "forças de regeneração", permite ao homem entrar em contato com aquilo que Todorov chamou de "palavras que ajudam a viver melhor" (2009, p. 94). Petit pergunta se a leitura pode garantir essas forças de vida. O que podemos esperar dela em lugares onde a crise é particularmente intensa, "seja em contextos de guerra ou de repetidas violências, de deslocamentos de populações mais ou menos forçados, ou de vertiginosas recessões econômicas?":

Em tais contextos, crianças, adolescentes e adultos poderiam redescobrir o papel dessa atividade na reconstrução de si mesmos e, além disso, a contribuição única da literatura e da arte para a atividade psíquica. Para a vida em suma. A hipótese parecerá paradoxal em uma época de mutações tecnológicas na qual é a eventual diminuição da prática de leitura o que preocupa (2009, p. 22).

 Se a leitura do texto literário tem um papel fundamental na construção ou reconstrução de si mesmo, diante da crise da leitura, da literatura - fato que levou o já citado Todorov a escrever o livro A Literatura em Perigo - é urgente pensarmos em estratégias de ações de disseminação que possam minimamente devolver à literatura um espaço - mesmo que pequeno - que lhe foi usurpado pela própria história. Não se trata de alimentarmos um discurso ressentido a choramingar um espaço que provavelmente a literatura nem deseja reconquistar. Se no século XVIII ou XIX, ou mesmo XX, o texto literário gozou de uma "importância" que hoje para a maioria das pessoas é nula, é porque o mundo mudou, e com ele as práticas culturais, suas condições de produção, circulação e recepção. Portanto, não se trata de lamentar o estado atual da leitura da literatura, mas de imaginar situações que possam promover um reencontro, atividade que tem sido cada vez mais vista como possível por meio das mediações culturais, desenvolvidas na escola ou fora dela. Petit discute as atividades de fomentação da leitura em espaços não-escolares, principalmente desenvolvidas por projetos sociais, como um trabalho efetivo de divulgação da literatura. Os mediadores culturais são responsáveis por promover, dessa forma, "incríveis experiências literárias compartilhadas" (2009, p. 25).
Petit nos apresenta vários exemplos de projetos de mediação cultural que proporcionam, de fato, experiências de intersubjetividade por meio de um incentivo à leitura. Em espaços de crise, como em comunidades carentes, esse trabalho é mais importante ainda. Na Colômbia, Luís Soriano, no projeto Alfa e Beto, viaja até os leitores entregando livros que são transportados em jumentos. No Chile, mediadores culturais levam livros ilustrados em barcos até as ilhas do sul. O grupo vaga-lume, no Brasil, atravessa Amazônia para levar a leitura até as pessoas. O programa Paraderos Paralibros Paraparques, implantados por Fundalectura, dispõe em jardins públicos livros que podem ser levados para casa. A Cor da Letra desenvolve desde 1998 projetos centrados na leitura e na literatura em várias regiões do Brasil: "Esse centro de estudos trabalha com instituições que se dedicam a cuidar de crianças e jovens em situação de risco, ONGs, escolas públicas e privadas, hospitais, bibliotecas, centros sociais e culturais, em especial nos bairros urbanos pobres e no interior"(2009, p. 38). Em União da Vitória, no Paraná, Brasil, o projeto Memórias Poéticas do Vale do Iguaçu, distribui livros pela cidade em intervenções poéticas urbanas. Os livros são confeccionados de forma artesanal no formato cartonera. Daí a Coleção Terezinha Caronera, inspirada nas editoras de livros artesanais da América do Sul, como Eloísa Cartonera, que produz livros à baixo custo.

 Paraderos Paralibros Paraparque


Alfa e Beto, de Luis Soriano


Referências: 

BELL, Lindolf. Incorporação: doze anos de poesia: 1962 a 1973. São Paulo: Quiron, 1974.
_____. Melhores Poemas (seleção de Péricles Prade). São Paulo: Global, 2009.
_____. O Ser Humano e o Destino Poético (Conferência). In: SANTOS, Jovani Antonio dos. O Ser Humano e o Destino Poético. Chapecó: Edição do Organizador, 2010.
COLETIVO TRANSVERSO. Disponível em: < http://coletivotransverso.blogspot.com.br/> Acesso em 10 de dezembro 2015.
CONSTANT. Outra cidade para outra vida. In : Internacional Situacionista: Deriva, psicogeografia e urbanismo unitário. Porto Alegro: Deriva, 2007.
DEBORD, Guy. Por uma internacional situacionista. In : Internacional Situacionista: Deriva, psicogeografia e urbanismo unitário. Porto Alegro: Deriva, 2007.
FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
LEMINSKI, Paulo. Distraídos Venceremos. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 2002.
MAPA DE CULTURA. Disponível em:  Acesso em 10 de desembro 2015.
PAZ, Octavio. O arco e a Lira. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
PETIT, Michèle. A arte de ler: ou como resistir à adversidade. São Paulo: Ed. 34, 2009.
REZENDE, Renato. Guilherme Zarvos, por Renato Rezende. Rio de Janeiro: Eduerj, 2010.
TODOROV, Tzvetan. A Literatura em Perigo. Rio de Janeiro, Difel, 2009.



[1] O site da Secretaria de Estado da Cultura, do Rio de Janeiro, que mapeia sua atividade cultural, traz a seguinte definição e informações sobre o CEP 20.000: 

Tradicionalíssimo encontro de poetas e artistas das mais variadas vertentes, comemorou 20 anos em 2010. Abreviação para "Centro de Experimentação Poética", é capitaneado pelo veterano e incansável poeta Chacal, juntamente com o colega e co-idealizador Guilherme Zarvos. Brindando à loucura e à experimentação sem preconceitos, o encontro reuniu em suas mais de duas décadas de existência grande nomes do cenário artístico e cultural carioca, como Waly Salomão, Michel Melamed, Deborah Colker, Dado Vila-Lobos, José Damasceno, entre outros. 
Visando a descoberta de novos talentos, o CEP também permite que artistas desconhecidos ou que estão começando suas carreiras subam ao palco para mostrar seus trabalhos. Essa troca intensa de experiências dos mais variados estilos coloca o CEP 20.000 como um dos grandes palcos vanguardistas da cidade, com apresentações de música, poesia performática, declamações literárias, entre outras atrações.  Mas de nada adiantam as explicações. Como o próprio Chacal disse em seu poema intitulado "CEP", para saber o que é o CEP 20.000 "só indo / só vendo / ouvindo / vivendo" (SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA, 2015)

[2] Segundo Agamben, "a arte contemporânea é mais efetiva quanto mais logra desmascarar suas próprias estruturas, deixar a nu os fundamentos do edifício estético e apontar para suas falhas e fissuras, transcendendo a dimensão do juízo estético e superando a distância entre a coisa a ser transmitida (a experiência, o conteúdo) e o ato de transmissão" (apud REZENDE, 2010, p. 38).