terça-feira, 2 de maio de 2017

Fernando Pessoa e a despersonalização como princípio constitutivo do poetar moderno português



Fernando Pessoa tem sido considerado pela crítica o principal poeta português cuja experiência poética é, mais do que em qualquer outro, oriunda e central da modernidade. 

Há algumas semanas, postei um texto no qual discutia o conceito de Modernidade tomando como base as reflexões de Baudelaire. Relembremos. Em 1859, depois de visitar uma exposição do pintor Constantin Guys, Charles Baudelaire escreveu uma coletânea de artigos de crítica de arte intitulada “O pintor da vida moderna”. Nesses textos, o autor das Flores do Mal, que por sinal foi lido por Fernando Pessoa, desenvolve algumas das primeiras reflexões sobre aquilo que se convencionou chamar de modernidade. Para Baudelaire, a arte possui duas metades. A primeira refere-se ao contingente, ao efêmero, ao transitório, ou seja, a modernidade, e a segunda refere-se ao infinito e ao eterno que ela pode presentificar. A missão do poeta moderno estaria em extrair do eterno o transitório. A principal característica dessa modernidade é a despersonalização como fundamento da poesia. A lírica já não nasce da unidade entre poesia e pessoa (Fernando Pessoa soube disso), como pretenderam os românticos.  A poesia não quer mais ser medida em base ao que comumente se chama de realidade. Ela prescinde da humanidade, no sentido tradicional, da experiência vivida, evitando o “eu” pessoal do artista. 

Antes da modernidade, a poesia era entendida como linguagem em estado de ânimo, da alma pessoal. A partir do final do século XIX e início do século XX, o “eu” poético torna-se um “eu” cindido, um “eu” desterritorializado e o poeta passa a ser agora um operador da língua.  Rimbaud defendia que o eu é sempre um outro e Fernando Pessoa escreveu que o poeta é um fingidor (palavra que torna problemática qualquer tentativa de tradução para o francês ou para o inglês tendo em vista que o fingidor não é necessariamente um mentiroso, mas aquele que não escreve com o coração e sim com o intelecto). 



Nesse sentido, Fernando Pessoa dá forma ao grande problema da lírica moderna, já que o poetar moderno nasce sob o signo do artifício, da despersonalização. Ele é o primeiro poeta português a fazer isso e talvez aquele que no mundo inteiro personificou essa questão de maneira mais contundente. Pessoa era leitor de Edgar Alan Poe, escritor que primeiro percebeu a necessidade de separara lírica do coração. Para Poe, a poesia era trabalho, construção sistemática de uma arquitetura e não a embriaguez do coração. O poeta português tinha consciência do que estava fazendo, apesar de que chegou a pensar que os seus heterônimos eram originários de um problema patológico. Ele estudou a psicanálise, conforme informou em carta ao amigo Adolfo Casais Monteiro, mas a criticou por imaginar que os problemas psicanalíticos tinham origem sempre na sexualidade. 

F. Pessoa em seu Flagrante de Litro

Fernando Pessoa nasceu em Lisboa em 1888. Aos cinco anos, perde o pai, vítima de tuberculose. Um ano depois, cria o seu primeiro heterônimo, Chavalier de Pas. Em 1895, sua mãe se casa com um cônsul português e a família vai morar em Durban, na África do Sul. Lá, Pessoa recebe uma sólida instrução escolar inglesa. Em 1901, volta para Portugal em férias. Nessa época a maioria dos poemas que escreve são em língua inglesa. O poeta só voltaria definitivamente para Lisboa em 1905. Época em que cria o segundo heterônimo, Alexander Search, uma espécie de gênese das personagens que virão. É nesse período que Pessoa se reconcilia com a língua portuguesa e começa a se interessar pela poesia simbolista de Antero de Quental e Antonio Nobre, além do clássico Camões. Em 1907 abandona a faculdade e se dedica exclusivamente à literatura. Um ano depois começa a trabalhar como correspondente de línguas estrangeiras, ou seja, encarrega-se da correspondência comercial em inglês e francês em um escritório de importações e exportações de Lisboa. Começa a escrever Fausto, uma tragédia em que irá trabalhar durante toda a vida e que nunca terminará. Em 1912, dá-se a sua estréia oficial no âmbito cultural com a publicação de um ensaio sobre literatura, publicado na revista Águia, de Álvaro Pinto. É nesse ano também que conhece o poeta Mário de Sá-Carneiro, futuro colaborador de Orpheu, com quem estabelece grande amizade.



Em 1914, numa espécie de transe criador concebe o poeta Alberto Caeiro. É o que ele chamou posteriormente de “O dia triunfal”.  Reza a lenda, aliás, alimentada pelo próprio poeta, que escreveu mais de trinta poemas em apenas uma noite. Poemas que integrariam o livro Guardador de Rebanhos. Ainda em 1914 aparecem as primeiras odes de Ricardo Reis. Um ano depois saem os dois únicos números da revista Orpheu, cujo principal motivador foi Fernando Pessoa. A revista seria considerada o marco oficial do modernismo português e contou com a colaboração de figuras como Almada Negreiros, Santa Rita, Sá-Carneiro, Montalvor, o brasileiro Eduardo Guimarães, entre outros. Em 1916, o amigo Sá-Carneiro comete suicídio em Paris, acontecimento que vai influenciar toda a produção posterior de Pessoa. Até o ano de sua morte, em 1935, milhares de páginas foram escritas, não só de poemas, mas de prosas (é o caso de o Livro do Desassossego, que começou a escrever em 1908 e que nunca concluiu), artigos, ensaios, traduções, manifestos e cartas de amor à Ofélia, sua grande paixão. Informações que podem ser encontradas na biografia Estranho Estrangeiro, de Robert Bréchon, que li com bastante interesse há alguns anos. 

Entre os poemas de Pessoa, destaca-se o livro Mensagem, única obra em português concluída em lançada em vida. As outras três que chegou a publicar são em inglês: 35 sonetos, Antinous e Epithalamium. O livro Mensagem é um caso especial. Para entendê-lo é preciso conhecer a concepção mística que envolve as teorias poéticas e políticas de Fernando Pessoa. O poeta acreditava, na esteira do pensamento de Padre Vieira (considerado por Pessoa como o imperador da língua portuguesa), no mito sebastianista, que interpretava o reino de Portugal como o Quinto Império. Um mito que já era pregado na Idade Média pelo sapateiro Bandarra e que se consolidaria depois da morte do rei D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir (Marrocos), em 1578. Em Mensagem, Pessoa recorre, à maneira de Os Lusíadas, de Camões (aliás, com Mensagem, Pessoa quis rivalizar com Camões), aos grandes heróis portugueses, inclusive D. Sebastião, para defender a nação portuguesa como a pátria do futuro.




Não seria fortuito observar que essas mesmas concepções místicas e poéticas em Pessoa estarão de certa forma presentes em seus heterônimos. Fernando Pessoa estudou profundamente o ocultismo (o que atestam os manuscritos que deixou), chegando a estabelecer amizade com Audous Huxley. Admirava as sociedades teosóficas e esotéricas, como a Rosa-Cruz e a maçonaria. Era uma forma que o poeta encontrou de estabelecer um vínculo com o divino que transcendesse o cristianismo católico. Alberto Caeiro e Ricardo Reis, por exemplo, eram poetas afeitos ao paganismo. Álvaro de Campos é um dos meus prediletos, mas tenho lido com interesse e cada vez mais Alberto Caeiro. Cumpre lembrar que, curiosamente, mais de setenta heterônimos já foram catalogados no espólio de Fernando Pessoa, sem contar um semi-heterônimo como Bernardo Soares. Segue abaixo uma lista aproximada:

01. Dr. Pancracio - jornalista de A PALAVRA e de O PALRADOR, contista, poeta e charadista. 
02. Luís António Congo - colaborador de O PALRADOR, cronista e apresentador de Eduardo Lança. 
03. Eduardo Lança - colaborador de o PALRADOR, poeta luso-brasileiro. 
04. A. Francisco de Paula Angard - colaborador de o PALRADOR, autor de «textos scientificos». 
05. Pedro da Silva Salles (Pad Zé) - colaborador de o PALRADOR, autor e director da secção de anedotas. 
06. José Rodrigues do Valle (Scicio), - colaborador de o PALRADOR, charadista e dito «director literário». 
07. Pip - colaborador de o PALRADOR, poeta humorístico, autor de anedotas e charadas, predecessor neste domínio do Dr. Pancracio. 
08. Dr. Caloiro - colaborador de o PALRADOR, jornalista-repórter de «A pesca das pérolas». 
09. Morris & Theodor - colaborador de o PALRADOR, charadista. 
10. Diabo Azul - colaborador de o PALRADOR, charadista. 
11. Parry - colaborador de o PALRADOR, charadista. 
12. Gallião Pequeno - colaborador de o PALRADOR, charadista. 
13. Accursio Urbano - colaborador de o PALRADOR, charadista 
14. Cecília - colaborador de o PALRADOR, charadista. 
15. José Rasteiro - colaborador de o PALRADOR, autor de provérbios e adivinhas. 
16. Tagus - colaborador no NATAL MERCURY (Durban). 
17. Adolph Moscow - colaborador de o PALRADOR, romancista, autor de «Os Rapazes de Barrowby». 
18. Marvell Kisch autor de um romance anunciado em O PALRADOR, («A Riqueza de um Doido»). 
19. Gabriel Keene - autor de um romance anunciado em O PALRADOR, («Em Dias de Perigo»). 
20. Sableton-Kay - autor de um romance anunciado em O PALRADOR, («A Lucta Aerea»). 
21.Dr. Gaudêncio Nabos - director de O PALRADOR (3.ª série), jornalista e humorista anglo-português). 
22. Nympha Negra - colaborador de O PALRADOR, charadista. 
23. Professor Trochee - autor de um ensaio humorístico de conselhos aos jovens poetas. 
24. David Merrick - poeta, contista e dramaturgo. 
25. Lucas Merrick - contista (irmão de David?). 
26. Willyam Links Esk - personagem de ficção que assina uma carta num inglês defeituoso (13/4/1905). 
27. Charles Robert Anon - poeta, filósofo e contista. 
28. Horace James Faber - ensaísta e contista. 
29. Navas - tradutor de Horace J. Faber. 
30. Alexander Search - poeta e contista. 
31. Charles James Search - tradutor e ensaísta (irmão de Alexander). 
32. Herr Prosit - tradutor de O Estudante de Salamanca de Espronceda. 
33. Jean Seul de Méluret - poeta e ensaísta em francês. 
34. Pantaleão - poeta e prosador. 
35. Torquato Mendes Fonseca da Cunha Rey - autor (falecido) de um escrito sem título que Pantaleão decide publicar. 
36. Gomes Pipa - anunciado como colaborador de O PHOSPHORO e da Empresa Íbis como autor de «Contos políticos». 
37. Íbis - personagem da infância que acompanha Pessoa até ao fim da vida nas relações com os seus íntimos que sobretudo se exprimiu de viva voz, mas também assinou poemas. 
38. Joaquim Moura Costa - poeta satírico, militante republicano, colaborador de O PHOSPHORO. 
39. Faustino Antunes (A. Moreira) - psicólogo, autor de um «Ensaio sobre a Intuição»). 
40. António Gomes - «licenciado em philosophia pela Universidade dos Inúteis», autor da «Historia Cómica do Çapateiro Affonso». 
41. Vicente Guedes - tradutor, poeta, contista da Íbis, autor de um diário. 
42. Gervásio Guedes - (irmão de Vicente?) autor de um texto anunciado, «A Coroação de Jorge Quinto», em tempos de O PHOSPHORO e da Empresa Íbis. 
43. Carlos Otto - poeta e autor do «Tratado de Lucta Livre». 
44. Miguel Otto - irmão provável de Carlos a quem teria sido passada a incumbência da tradução do «Tratado de Lucta Livre». 
45. Frederick Wyatt - poeta e prosador em inglês. 
46. Rev. Walter Wyatt - irmão clérigo de Frederick? 
47. Alfred Wyatt - mais um irmão Wyatt, residente em Paris. 
48. Bernardo Soares - poeta e prosador. 
49. António Mora - filósofo e sociólogo, teórico do Neopaganismo. 
50. Sher Henay - compilador e prefaciador de uma antologia sensacionalista em inglês. 
51. Ricardo Reis - HETERÓNIMO. 
52. Alberto Caeiro - HETERÓNIMO. 
53. Álvaro de Campos - HETERÓNIMO. 
54. Barão de Teive - prosador, autor de «Educação do Stoico» e «Daphnis e Chloe». 
55. Maria José - escreve e assina «A Carta da Corcunda para o Serralheiro». 
56. Abílio Quaresma - personagem de Pêro Botelho e autor de contos policiais. 
57. Pero Botelho - contista e autor de cartas. 
58. Efbeedee Pasha - autor de «Stories» humorísticas. 
59. Thomas Crosse - inglês de pendor épico-ocultista, divulgador da cultura portuguesa. 
60. I.I. Crosse - coadjuvante do irmão Thomas na divulgação de Campos e Caeiro. 
61. A.A. Crosse - charadista e cruzadista. 
62. António de Seabra - crítico literário do sensacionismo. 
63. Frederico Reis - ensaísta, irmão (ou primo?) de Ricardo Reis sobre quem escreve. 
64. Diniz da Silva - autor do poema «Loucura» e colaborador de EUROPA. 
65. Coelho Pacheco - poeta in ORPHEU III e na revista projectada EUROPA. 
66. Raphael Baldaya - astrólogo e autor de «Tratado da Negação» e «Princípios de Metaphysica Esotérica». 
67. Claude Pasteur - francês, tradutor de CADERNOS DE RECONSTRUÇÃO PAGÃ dirigidos por A. Mora. 
68. João Craveiro - jornalista sidonista. 
69. Henry More - autor em prosa de comunicações mediúnicas - «romances do inconsciente» como Pessoa lhes chama. 
70. Wardour - poeta revelado em comunicações mediúnicas. 
71. J. M. Hyslop - poeta revelado em comunicação mediúnica. 
72. Vadooisf [?] - poeta revelado em comunicação mediúnica.”   

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