sábado, 28 de outubro de 2017

21 de outubro de 1967, a noite que não terminou




Há cinquenta anos, na noite de 21 de outubro de 1967, no auge do governo militar, o Brasil assistia pela televisão à final do 3° Festival da Música Popular Brasileira que, lotando o Teatro Paramount, no Rio de Janeiro, reuniu finalistas como Roberto Carlos, Sérgio Ricardo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e Edu Lobo. Os efeitos musicais daquela noite reverberam até hoje na cultura de nosso país, pois daquela disputa e encontro históricos saíram os grandes nomes de nossa MPB, bem como se delinearam os futuros caminhos de nossa música. Logo depois do Festival, Caetano e Gil implantariam sua revolução tropicalista, Chico Buarque mergulharia em uma empreitada crítica à ditadura militar com suas canções de protesto e Roberto Carlos – que já vinha se projetando nacionalmente com a Jovem Guarda – se consolidaria definitivamente como nosso grande cantor popular. Digo que o Festival reverbera até hoje também, porque todos os artistas citados continuam produzindo significativamente. Chico Buarque acaba de lançar “Caravanas”, com nove faixas, sendo delas sete inéditas, demonstrando, assim, seu permanente vigor como compositor e intérprete. Caetano está realizando com seus filhos – desde o dia 14 de outubro - a turnê “Caetano Moreno Zeca Tom Veloso” que será registrada em disco. Gilberto Gil está com álbum gravado - prestes a ser lançado - no qual aborda temas familiares e seu recente tratamento de saúde. Paralelamente a esse projeto, o cantor/compositor tem comemorado os 40 anos do clássico “Refavela” e formado com Nando Reis e Gal Costa uma “Trinca de Ases”, em uma série de shows. Roberto Carlos segue firme naquele ritmo já conhecido que vai desde sua turnê em cruzeiros, passando pelos especiais da Globo com direito a tema na novela das nove, sereia etc e tal. Aquele Festival de 67 realmente ainda não terminou.
Na noite do Festival, Sérgio Ricardo promoveu um dos episódios mais curiosos de nossa história musical, sendo duramente criticado e desclassificado depois de se recusar a cantar devido às intensas vaias e de quebrar o violão no palco para depois jogá-lo sobre a plateia. Em um depoimento que integra o documentário “Uma noite em 67”, dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, o compositor diz não se arrepender do fato - fruto dos ânimos exaltados da época -, mas afirma que hoje não faria o mesmo. O quinto lugar ficou para Roberto Carlos, que cantou “Maria, Carnaval e Cinzas”, de autoria de Luiz Carlos Paraná. A música é linda e foi bem interpretada, no entanto ficou ofuscada pelas demais concorrentes, que se tornaram clássicas desde aquela noite. Caetano participou com “Alegria, Alegria”, que inovava não só no arranjo que tinha como base as guitarras elétricas dos Beat Boys, mas também com uma letra inusitada para a época ao fazer, por meio de uma colagem poética cubista, referências à Coca-Cola, ao jornal alternativo “O Sol”, à Claudia Cardinale, entre outros elementos típicos da cultura contemporânea. A canção ficou em quarto lugar. A terceira colocada, “Roda Viva”, de Chico Buarque, com acompanhamento do grupo MPB4, encantou o público com seus jogos vocais e posicionamento crítico em relação à realidade da época. O samba-canção de Chico integraria no final do mesmo ano a peça teatral que teria o mesmo nome da música. O segundo ficou para Gilberto Gil que, ao lado dos Mutantes, interpretou “Domingo no Parque”, contando com arranjo orquestral de Rogério Duprat. A música, de estrutura circular, que narra uma tragédia envolvendo paixão, ciúme e assassinato, é muito rica na sua construção estética e mereceria um artigo à parte. A canção campeã foi “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinam, interpretada por, além de Edu, Marília Medalha e dos grupos Momento Quatro e Quarteto Novo. O primeiro lugar consagrava naquele ano uma linhagem mais tradicional da Música Popular Brasileira que de certa forma se colocava em franca oposição às novidades tropicalistas da guitarra elétrica e à onda do Iê-iê-iê da Jovem Guarda. De um lado Edu Lobo, Chico Buarque, Elis Regina, Jair Rodrigues, de outro, Gil, Caetano, Mutantes, Tom Zé etc. Todos filhos da Bossa Nova e desse Brasil musicalmente colorido e plural. Não seria fortuito lembrar que no mesmo ano, alguns meses antes do Festival, ocorrera a famosa “Passeata contra a Guitarra Elétrica”, na qual defensores e integrantes de uma linhagem mais tradicional da MPB se voltavam contra as fortes influências do rock and roll na música brasileira. Foi um período muito fértil de nossa história que sobrevive até os nossos dias. Lembrando de Guimarães Rosa, poderíamos dizer que aquela noite não morreu, ficou encantada.

Publicado originalmente no jornal Caiçara, 
de União da Vitória, em 28 de outubro de 2017

sábado, 21 de outubro de 2017

Aqui jazz Clarice


 

Na terça-feira (10), o curso de Letras da UNESPAR, campus de União da Vitória, promoveu um encontro literário em homenagem à Clarice Lispector, enfocando não só o aspecto filosófico e jornalístico de sua obra, mas também musical, traço ainda pouco explorado na leitura de seus textos. O evento, intitulado “Aqui jazz Clarice”, contou com uma mesa-redonda formada pelas professoras Angela Farah e Renata Noyama, bem como com apresentações musicais do grupo 6 Assis e participação de acadêmicos lendo fragmentos de livros da escritora.
É perceptível a prática de um diálogo profundo entre a escritura de Clarice Lispector e o universo de outras artes, como a pintura, a escultura e a música. Em Paixão segundo G.H., publicado em 1964, a narradora é uma escultora que se debate sobre questões existenciais, imprimindo em suas páginas uma complexa e rica reflexão sobre a condição humana. Em Água Viva, ficção que Cazuza afirmava ser seu livro de cabeceira (ele confessou ter lido a obra mais de uma centena de vezes), a narradora é uma pintora que troca pinceis e tintas por palavras, deparando-se com a impossibilidade de substituir uma experiência por outra. Em sua vã tentativa de captar o que ela chama de o “instante-já”, o “é da coisa”, ou “it”, a narradora nos apresenta intensas páginas de uma magia que está para além da literatura. Certa vez, Guimarães Rosa afirmou que lia Clarice não para a literatura, mas para a vida. Sim, a obra de Clarice ultrapassa o próprio conceito de literatura, situando-se como um corpo estranho no modernismo brasileiro, e colocando-se no patamar da bruxaria. Aliás, nos anos 70, a escritora chegou a participar de um congresso de bruxaria na cidade de Bogotá, na Colômbia.
Magia, alquimia ou bruxaria são palavras que talvez definam melhor o universo artístico de Clarice. E tal experiência é impossível de ser interpretada objetivamente. Ao longo dos anos, lendo com meus alunos e alunas a sua obra, assisto nas aulas aos efeitos dos mais variados que vão desde o descaso de quem leu e não “sentiu” até aqueles que revelam profundo encantamento, medo, paixão, e a ativação ou transformação de sensibilidades. Fazendo parte daqueles escritores de quem se diz “ame-o ou deixe-o”, Clarice me convida para a leitura em momentos específicos da minha vida. Às vezes, fico meses sem ler uma linha sua sequer, em outros, avidamente, procuro suas pegadas, suas palavras, ou por elas me deixo encontrar. Eis o mistério da palavra poética. Ultimamente, ando de novo encantado com essa ucraniana que se fez brasileira e que afirmou certa vez ter feito da língua portuguesa “sua língua interior”. Tenho pensado muito na música que se depreende de sua escritura, como tema ou ritmo, sugerindo que essa arte também faz da parte da sua.
Em Perto do Coração Selvagem, o pensamento é música se criando. Nele, Clarice escreveu: “A música era da categoria do pensamento, ambos vibravam no mesmo movimento e espécie. Da mesma qualidade do pensamento tão íntimo que ao ouvi-la, este se revelava.” A aproximação da música à escrita ou ao pensamento é recorrente em sua obra. Numa das passagens do já citado Água Viva, Clarice compara a escrita automática de seu texto ao jazz, gênero musical pautado pelo movimento e improvisação: “Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. Mas que mal tem isso? improviso como no jazz improvisam música, jazz em fúria, improviso diante da plateia”. Em Um sopro de vida, escreveu, ou melhor, cantou: “Estou ouvindo música. (...) Meu vocabulário é triste e às vezes wagneriano-polifônico-paranoico. Escrevo muito simples e muito nu. Por isso fere. Sou uma paisagem cinzenta e azul. Elevo-me na fonte seca e na luz fria”. 
Interpretar é uma palavra bastante usada nas aulas de literatura, bem como no universo da música e do teatro. Interpreta-se um texto, assim como interpreta-se uma peça musical ou teatral. Não aprecio a palavra no sentido usado nas aulas. Textos literários não foram escritos para serem interpretados, como quem “descobre o que o autor quis dizer” ou como quem decifra um segredo para, então, ele deixar de existir. O enigma sempre perdurará. A não ser que o leitor interprete o texto como quem toca uma música à medida que lê, não para decifrar, mas apenas para pôr em movimento seus sons, proliferando seus mistérios. Ler Clarice em voz alta, aliás, é uma delícia. Desconfio que uma linda passagem do início de Água Viva nos ajude a (in)definir melhor essa ideia: “Não se compreende música: ouve-se. Ouve-me então com teu corpo inteiro”. Assim como a música, não se compreende Clarice, mas lendo-a e ouvindo-a, sentimos sua escritura com nosso corpo inteiro.


Doutor em Teoria Literária, professor da UNESPAR
publicado originalmente em O Caiçara, 
de União da Vitória, no dia 21/10/2017

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

A arte em tempos de cólera


“Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva”, de Fernando Baril (1996)

Nas últimas semanas, assistimos a um longo frisson causado pela exposição “Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, do Santander Cultural, de Porto Alegre. Depois de várias manifestações negativas que consideraram a mostra pornográfica, imoral e com apologias à pedofilia, a empresa promotora optou pelo fechamento da exposição. A curadoria lamentou e a decisão se manteve apesar do Ministério Público Federal, depois de analisar o conteúdo, recomendar a sua reabertura, defendendo a liberdade de expressão e entendendo que as obras apresentadas não faziam qualquer apologia ou incentivo à pedofilia. O fechamento acontece no mesmo período em que a arte, no Brasil, vem sofrendo uma repressão intensa que assinala cada vez mais um descompasso entre a realidade do moralmente aceitável, do “politicamente correto”, e o anarquicamente intolerável que a arte nos apresenta. Naturalmente, não levaríamos crianças para visitar essa exposição e o que nos inquieta não é a opinião daqueles que consideram a mostra uma afronta - já que a liberdade de opinião pressupõe justamente esse embate -, mas a forma como, muitas vezes, uma ação oficial, e por vezes jurídica, decide controlar o que pode ou não ser visto, produzindo a censura, essa velha conhecida. Tomemos como exemplo o quadro de uma exposição do Museu de Arte Contemporânea de Campo Grande apreendido na mesma semana pela polícia, depois de três deputados registrarem um boletim de ocorrência, considerando que a obra agredia a “família, a moral e os bons costumes”. Um dia depois, uma peça teatral foi cancelada, por decisão judicial, em Jundiaí, (SP), ao recriar a história de Jesus como uma transexual. Desde a semana passada, o MAM (Museu de Arte Moderna de São Paulo) vem sendo alvo de ataques pela performance “La Bête”, de Wagner Schwartz.
Depois de tomar conhecimento dos fatos acima narrados, lembrei-me das lúcidas e intensas reflexões sobre arte do professor e ensaísta Raúl Antelo. Em uma entrevista concedida para o VII ENAPOL (Encontro Americano de Psicanálise da Orientação Lacaniana), que aconteceu em São Paulo, em setembro de 2015, Antelo discorreu sobre o império das imagens no mundo contemporâneo, refletindo principalmente sobre o atual estado da arte. Creio que suas observações nos ajudam a pensar no fechamento da exposição como sintoma de um tempo no qual impera uma concepção de arte bastante rasa, moralizante e discutível. O que de certa forma sempre aconteceu em momentos específicos e obscuros de nossa história. 
Lembremos da maneira como críticos do século XVIII e XIX consideraram o barroco uma degeneração da arte clássica. Monteiro Lobato fulminou Anita Malfatti, na famigerada exposição de 1917, ao considerar sua arte anormal e teratológica, fruto de uma paranoia ou mistificação. Hitler mandou confiscar e destruir inúmeras obras de arte de vanguarda ao considerá-las degeneradas, e por aí vai. Preocupa-me o senso comum, a falta de disposição para uma discussão mais profunda e fundamentada sobre o conceito que se debate, o "achismo" com ares de certeza, a censura como forma de eliminação daquilo que nos perturba, o juízo de valor inquisitorial, apontando para o que seria arte e o que não seria arte.
Antelo nos lembra do caráter inoperante da arte, como forma de sabotagem aos sistemas, observando que Giorgio Agamben, a partir de Guy Debord - no bojo de uma sociedade do espetáculo entronizada, dominando nossas vidas -, propõe "uma lógica claramente anarquista", que é a lógica do "inoperar", que é o que faziam os primeiros anarquistas. Raúl lembra que eles lançavam um tamanco na polia da máquina para que o motor parasse: "Tamanco se diz 'sabot', daí a 'sabotagem'. Ou seja, uma das maneiras da fruição seria sabotar". Em oposição ao gozo administrado, previsto para todos na sociedade do espetáculo, a arte visa a provocar um curto-circuito: "Provavelmente o espectador vai receber uma carga de 220w e provavelmente sua reação será dizer que isso não é arte, ou que isto é um nojo, ou como permitem isso no museu?, na galeria?, na rua?, onde for. Mas justamente essa é a função, apresentar aquilo que o olhar não segura".
O quadro “Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva”, de Fernando Baril (1996), por exemplo, foi considerado ofensivo ao cristianismo. Nele, aparece a figura de Cristo com vários braços. Suas mãos carregam objetos da cultura ocidental. Imagino que ao invés de lermos nele o desrespeito a uma crença religiosa, poderíamos refletir sobre a forma como o capitalismo tem se devotado a transformar em objeto de culto - quase sagrado - seus bens de consumo.

A proposta da exposição parece ter cumprido parte de seu papel. Suas narrativas parecem afetar o corpo e perturbar, inquietando o olhar. Oscar Wilde escreveu que “a arte não é moral nem imoral, mas amoral”. O assunto ainda vai dar pano para manga. Espero que não se voltem contra os murais eróticos das ruínas de Pompeia ou contra a imagem de Adão nu, na Capela Sistina. Seria uma perda para a humanidade tapá-los ou destruí-los em nome dos bons costumes.

Publicado no jornal Caiçara, 
em União da Vitória, no dia 08/10/2017

domingo, 8 de outubro de 2017

às 15h30, numa tarde outubro de 2013, na praça Coronel Amazonas


inspirado em G. Perec, em Tentative d'épuisement d'un lieu parisien




Na praça, ao lado de um poste, cuja copa tridente faz lembrar a lança furiosa de um Júpiter, Zeus ou Jove, uma senhora, nada furiosa, de tênis com cadarço vermelho, pita um Palermo, ou será um Marlboro, Charme ou Hilton, ou Free Azul ou Cinza? Talvez esteja pensando que é hora de parar ou apenas planejando o jantar de hoje, almôndegas ao molho, depois sobremesa com o marido, ou apenas novela das oito. Não muito longe, um casal jovem se aproxima, senta-se na grama, conversa. Ele segura um celular vermelho, tão vermelho quanto o cadarço da senhora que fuma um Palermo, ou Marlboro, Charme ou Hilton, Free Azul ou Cinza. Ele segura o celular vermelho, mira na moça, tira uma foto. Mostra para ela a imagem. A moça sorri. Ela veste uma calça branca florida, camiseta cor de rosa, como a da senhora que fumava e que agora não está mais ao lado do poste. A moça mexe na bolsa, também cor de rosa, sem tirar o olho do celular, ou melhor, da imagem, que é também a sua. Teria a máquina captado a luz desta tarde de sol e passarinho? Há alguns passos atrás do casal, dois senhores tagarelam, sem perder a pose de aposentados honestos e honrados. Quais serão os seus pecados? O menos velho, de bigode e boné azul, cruza os braços e ri. De quê, meu Deus? Que falam? Governo, bandido, família, paixão? Enquanto isso, estudantes, ou seja, pombos elétricos, vão se movendo pela praça, desenhando um contorno invisível e não menos febril. Passa um homem rápido, de bicicleta. Falta-me o tempo suficiente para capturá-lo com eficácia na lembrança do lápis e papel. O tempo é sempre a alma do negócio. Lembro apenas do chapéu e do cigarro na mão esquerda. Na mão esquerda como a da senhora de cadarços vermelhos e camiseta rosa. Uma dama loira de blusa azul, azul como o boné do senhor do bigode de braços cruzados que ri, lê em um banco mais distante. Que livro será? Miro melhor. Ou escreve em um caderno também azul? Minha miopia impede de saber. No prédio da antiga Prefeitura decifro o mistério de tanto rosa por aí. Como pude esquecer, estamos em outubro. Pergunto-me o que aproxima tantas pessoas além do rosa e do azul que nos cobre e envolve nesta tarde de sol e passarinho, por sobre o boné azul do senhor do bigode, de braços cruzados que ri, ou do rosa da camiseta de senhora de cadarços vermelhos, que fuma um Palermo, ou Marlboro, Charme ou Hilton, Free Azul ou Cinza. Talvez o movimento. É isso, pessoas na praça são cores em movimento

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Deus e suas artes! Um breve passeio pela exposição Religiosidade, de Salete Strobino




Na noite da última sexta-feira (22), foi inaugurada na Galeria de Arte Erich Herbert Will, em União da Vitória, a exposição “Religiosidade”, da artista plástica Salete Strobino, que reúne uma série de quadros cuja temática perpassa o universo sagrado das religiões. Em um mundo no qual impera cada vez mais a falta de amistosidade entre crenças diferentes, bem como a falta de disposição para aceitar a fé alheia com o decoro que lhe é necessário e devido, um evento como este não apenas nos oferece uma oportunidade de deleite – o que a boa arte sempre faz -, mas também nos convida a uma reflexão sobre o momento crítico que atravessamos, no que se refere ao preconceito contra variadas práticas religiosas e a consequente falta de liberdade de cultos. Digo que essa reflexão é cada vez mais fundamental num mundo cada vez mais fundamentalista.
No discurso de abertura da exposição, em meio a um clima místico e de profundo encantamento, a pintora falou com beleza sobre a importância da fé sem preconceito, da tolerância como motor do bem viver, da religião como forma de religação do homem com o divino, o que está sugerido na própria etimologia da palavra. Tais observações não apenas orientavam os presentes para uma compreensão mais apurada das obras - favorecendo assim a leitura de cada um dos quadros -, mas também criavam pelo axé que mora nas palavras de luz e pelo diálogo com as pinturas uma força capaz de iluminar não apenas a exposição, mas também a consciência dos espectadores.
De um lindo e inusitado Jesus Cristo, pintado com inspiração na linguagem de 8bits, a um retrato de Omulu, orixá africano que é o senhor das doenças e da cura (e que é bastante cultuado no Candomblé), as obras nos apresentam uma pluralidade de estilos, de temas e de perspectivas religiosas que dificilmente encontraríamos em outro lugar a não ser na exposição. Uma bela representação de Nossa Senhora Czestochowa pode ser apreciada na mesma sala que abriga uma exuberante e colorida cabocla da Umbanda. Anjos, Budas, Deuses egípcios, Yabás africanas, Ganesha, São Jorge, entre outros, fazem a festa de um Deus que ama a todos e que a todos abraça. Esse Deus é arquiteto de muitas artes. Nesse sentido, a exposição parece realizar um feito impossível (ou quase) no nosso mundo, que é o de reunir e fazer conviver, respeitadas em suas diferenças, culturas religiosas distintas. Não se trata de exigir que todas as religiões cultuem todos os santos ou deuses, mas de apontar para a necessidade do respeito à crença alheia, lançando-nos a sempre pertinente pergunta: “Como eu trato o meu irmão e a sua fé?”
A constituição garante a liberdade de culto, mas na prática assistimos ao apedrejamento de candomblecistas e umbandistas, à destruição de terreiros, ao desconhecimento que gera violência. É sempre bom conhecer antes de julgar, diz a máxima. Há alguns dias, foram colados em postes de uma cidade catarinense cartazes em que a imagem ameaçadora de um sujeito encapuzado da Ku Klux Klan era acompanhada das seguintes palavras: “Negro, comunista, antifa e macumbeiro, estamos de olho em você”. Algo está muito errado! Estamos de olho também em movimentos como este. Destruir, aniquilar, silenciar o que “não faz parte do meu mundo e da minha ideologia” não é fenômeno novo, mas parece ganhar nova força na contemporaneidade. A exposição de Salete Strobino reflete com presteza também sobre isso.
O evento, promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de União da Vitória em parceria com a Associação de Artistas Plásticos do Vale do Iguaçu, ficará aberto para visitação até sábado (30) na Galeria de Arte Erich Herbert Will, na Estação.

Caio Ricardo Bona Moreira

publicado originalmente no dia 30 de setembro de 2017 
no jornal O Caiçara, de União da Vitória