Acabo de publicar no mais recente número da revista argentina "Jardín de los Poetas" um artigo sobre o filme Yndio do Brasil, de Sylvio Back, que reúne uma série de fragmentos de obras cinematográficas brasileiras e estrangeiras que
abordaram o índio ao longo do século XX. A partir da leitura de Georges Didi-Huberman,
proponho uma reflexão sobre a potência poética e política do filme, que desmonta os
sentidos tradicionais das obras abordadas, explorando a montagem como procedimento
formal e como método de conhecimento. Ao mergulhar no que poderíamos chamar de
poética ameríndia, Sylvio Back faz do cinema um veículo de arte e resistência.
sábado, 29 de dezembro de 2018
sexta-feira, 21 de dezembro de 2018
O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA: reflexões sobre o tempo
No final do ano passado, fiz aqui neste
espaço um balanço de 2017 no que se refere às leituras literárias que realizei
naquele período. Todo final de ano é tempo de refletir sobre o que passou na expectativa
de criar um horizonte de possibilidades para o tempo que virá.
Em 2018, para além das obras que
apresentei nesta coluna, gastei o meu tempo com outras leituras não menos
inestimáveis. É uma pena não ter tempo para comentar sobre elas. Certa vez, César
Aira escreveu que ler, como todas as demais atividades, “é um modo de ocupar o
tempo”. Poderíamos substituir o verbo ocupar pelo perder, a título de
brincadeira. Brinquemos rapidamente com o tempo (aliás, brincar é uma das formas
mais interessantes de gastá-lo, e vem daí o sentido de sua inutilidade
demasiado prazerosa).
Suponhamos que eu gaste aproximadamente
três minutos para ler a página de um livro e ele tenha duzentas e cinquenta
páginas (alguns podem ter mais ou menos, tire-se uma média). Isso significa que
eu gastaria setecentos e cinquenta minutos para lê-lo, ou seja, umas doze horas
e meia. Conto aqui o tempo bruto, sem pausas para descanso ou outras
atividades. Se eu ler uma média de 60 livros no ano (um por semana, mais ou
menos), já são setecentas e cinquenta horas de leitura, ou seja, algo em torno
de trinta e um dias, o que equivale a um mês de leitura ininterrupta. O cálculo
é apenas hipotético, portanto sem precisão, mas revela já um dado assustador, o
valor que damos aos grifos que chamamos de textos.
Dobrando o tempo dessa atividade ao
considerar a leitura de jornais, revistas e outros veículos que contemplam a
literatura, poderíamos aumentar a dose para dois meses de pura leitura. Isso
sem considerar o tempo que gastamos lendo ensaios acadêmicos, textos de alunos
a serem avaliados ou revisados, provas a serem corrigidas, placas de trânsito,
bulas de remédio, legendas de filmes, e-mails, mensagens de celular, manuais de
instrução, outdoors, cardápios, extratos bancários, horóscopo, etc etc etc. Isso
sem considerar o tempo que se gasta para se escrever uma página, bem maior do
que aquele que gastamos para lê-la (o tempo seria multiplicado ainda mais). São
vários textos escritos para o jornal durante o ano, alguns artigos científicos,
uma série de relatórios da Universidade, etc etc etc. São coisas do ofício.
Concentremo-nos apenas na leitura gratuita. Quantas outras coisas poderíamos
fazer ou inventar com esse precioso tempo? Mas talvez resida nesse dispêndio a
altivez de nossa vida, fora de qualquer ideia capitalista de acúmulo econômico
do tempo. Georges Bataille chegou a escrever sobre o Potlatch, uma cerimônia
religiosa de tribos indígenas norte-americanas na qual, depois de um longo
período de acúmulo de bens (como alimentos, por exemplo), gastava-se tudo em
apenas uma festa, valorizando-se assim o puro gasto. Penso que a leitura
desinteressada seria uma espécie de Potlatch. Ler é uma festa.
Talvez precisemos ler menos para viver
mais, no entanto quem garante que ao abandonarmos os livros seremos mais
felizes, melhores pais, cônjuges, filhos, amigos, cidadãos? Imagino que quem
joga e assiste ao futebol toda semana, investe o seu tempo em algo que lhe dá
prazer de forma não muito diferente. E a importância do que lemos e escrevemos
pode não ser maior do que a beleza e o prazer que podemos encontrar em uma
partida esportiva. São formas de brincar e de gastar o tempo. Um jogo pode ser
mais trágico, belo, ou filosófico que uma peça teatral, por exemplo. Nelson
Rodrigues sabia disso. Rimbaud abandonou a literatura para viver a vida ao se
transformar em um viajante e traficante de armas na Etiópia. Não teria sido
essa aventura sua obra mais poética? Se o tempo do Natal é tempo de reflexão,
fica, então, lançada a questão.
Vinícius de Moraes, um
poeta que tenho descoberto e redescoberto com alegria imensa e curiosidade
renovada desde há alguns anos, ao escrever um poema sobre o Natal, em 1946,
deixou de lado os aspectos folclóricos e religiosos da data para refletir sobre
o motivo da vida, ou seja, sobre aquilo para o que fomos feitos, tudo isso
pensando no tempo. No texto, o escritor (libriano como eu) se inspira no Natal
para tecer um olhar não apenas sobre o nascimento (assunto indissoluvelmente
ligado a essa festividade), mas também sobre o andar da carruagem da vida e
sobre a morte. Segundo Vinícius, fomos feitos para “lembrar e ser lembrados”,
para “chorar e fazer chorar”, e para “enterrar os nossos mortos”. Na última
estrofe, ele observa que fomos feitos para a “esperança no milagre”, para a
“participação da poesia”, e para “ver a face da morte”. E finaliza escrevendo:
“(...) de repente nunca mais esperaremos... / hoje a noite é jovem; da morte,
apenas / nascemos imensamente”. Retirar a morte dessa aura de horror e vê-la
principalmente como uma fonte de vida, ou melhor de renovação, é mais do que
uma ideia para Vinícius, mas parte de uma maneira singular e religiosa de ver a
vida. Nada acaba, tudo se transforma. A expectação do nascimento de Cristo, que
se repete por meio do rito, aponta de certa forma para a expectação de um novo
período, um novo ano, que nasce como Cristo, e nos convida a renascer com ele.
Vinícius chegou a escrever outros poemas sobre o Natal. Um deles integra a
famosa série da “Arca de Noé”, pensada para as crianças, e outro acompanha uma
crônica de 1953, que se encerra com a seguinte estrofe: “Muito tempo faz... /
mas ninguém olvida / que é um dia de paz... / porque fez-se a vida!”.
Na imaginação de Mario
Quintana, lá bem no alto de um décimo andar do Ano, vive uma louca chamada
Esperança: “E ela pensa que quando todas as sirenas / todas as buzinas; todos
os reco-recos tocarem / atira-se / e / - Ó delicioso voo / ela será encontrada
miraculosamente incólume na calçada / outra vez criança (...)”. E tudo
recomeçará. Mario devolve sentido para o famoso dito de que a esperança é a
última que morre. Que possamos nos encontrar sempre lá, vivos na calçada de
2019, e tendo ao nosso lado incólume – meninazinha de olhos verdes – a louca
Esperança: “Ela lhes dirá bem devagarinho, para que
não esqueçam: — O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...”. Gastemos todo o nosso tempo para
gestá-la se inexistente, para lapidá-la se pedra, para encontrá-la se perdida,
para regá-la se planta, ou alimentá-la se pequena e frágil. Feliz Natal a
todos! Que venha o próximo tempo! E que ele esteja repleto de boas leituras, porque
elas sempre honram o precioso tempo que gastamos com elas.
Obs:
Agradeço ao jornal Caiçara por gastar seu importante espaço com minhas palavras,
permitindo-me nele gastar o meu tempo, brincando com aquilo que amo, com essas
palavras que me dizem tanto a respeito de quase tudo.
sábado, 15 de dezembro de 2018
Maria Bethânia: voz encorpada que (en)canta
Maria Bethânia é
para mim mais do que uma intérprete. Tal como o vento, é difícil explicá-la.
Até porque, feito uma ventania, Bethânia não carece de explicação. Como um
vendaval, pode-se não gostar dela, mas nenhum abrigo é cem por cento seguro (a
céu aberto é impossível fugir de uma tempestade). E uma hora ou outra é
possível que ela nos encontre os ouvidos e corações abertos. Bethânia não
carece também de entendimento. Apenas é. E se fosse preciso ir além do verbo
ser – na possibilidade de uma caracterização - eu arriscaria dizer que para mim
Bethânia é uma espécie de entidade, dessas que não usam sapatos e flutuam. Não
desejo dessa forma mitificá-la (romancear ao exagero uma pessoa como eu ou você,
de carne e osso), pois isso seria mascarar a realidade e Bethânia é pura
realidade. E pulsa como um texto de Clarice Lispector. Sua voz me soa mágica e
cheia de mistérios, e a impressão que tive ao ouvi-la em Porto Alegre, em 28 de
novembro, no Auditório Araújo Vianna, é de que seu canto preenche os espaços,
ocupa o vazio, aumenta o que nos rodeia. É o que eu disse para a Géssica -
esposa/musa que me acompanhava -, na saída do show. Durante duas horas, ao lado
de Zeca Pagodinho, a voz da cantora – com sua presença imponente e majestosa -
aumentou os espaços, ampliou os sentidos, veludosamente.
Com uma banda
que reunia músicos que trabalham com ambos, os dois artistas entraram juntos no
palco cantando um lindo samba composto por Caetano Veloso, especialmente para a
turnê “De Santo Amaro a Xerém”. A canção, repleta de jogos de palavras, com
seus gingados peculiares, une o universo de ambos os artistas, evocando as suas
comunidades, a saber, Santo Amaro, na Bahia (Bethânia) e Xerém, no Rio de
Janeiro (Zeca Pagodinho): “No alto brilho / um risco raro / que passa do mal ao
bem / por cima formando um aro por baixo / um trilho de trem / de Guadalupe ao
Amparo / de Xerém a Santo Amaro / de Santo Amaro a Xerém (...)”. Na sequência,
“Sonho Meu”, de dona Ivone Lara, embalou o público, assim como a linda “Reconvexo”,
de Caetano, algumas pérolas de Gonzaguinha, “Negue”, de Adelino Moreira e Enzo de Almeida Pessoa, que foi imortalizada por
Ataulfo Alves, entre outras pérolas bem brasileiras que vieram depois. A
plateia delirou. De fato, o show iluminou aquela rio-grandense noite de
quarta-feira.
Leitor, leia a
prosa poética de “Água Viva”, de Clarice Lispector, e lá encontrará a seguinte
frase que talvez ajude a explicar o inexplicável de Bethânia: “Esta é a vida
vista pela vida. Posso não ter sentido mas é a mesma falta de sentido que tem a
veia que pulsa”. Para além de qualquer entendimento, a arte de Bethânia não se
explica porque é corpo e voz postos em movimento (performance), em ação
integradora com os ventos e com a terra. Bethânia é ventania, incontestável.
Eparrei!
Caetano Veloso
observou certa vez que ler Clarice Lispector era como estar diante de uma
pessoa. Penso algo semelhante sobre a célebre filha de Dona Canô e irmã de
Caetano. Ouvir Bethânia é como estar diante de uma pessoa. O que não significa
que essa experiência não tenha um q de sobrenatural. Aliás, Bethânia conta um
episódio curioso sobre seu primeiro encontro com Clarice. No final de um show,
a cantora sai do camarim e se depara com a escritora falando sobre as faíscas
que enxergava em volta dela. Algum tempo depois, ao conhecer a Mãe Menininha do
Gantois, em Salvador, e de reverenciar a Mãe de Santo mais conhecida da Bahia,
Bethânia diz que a célebre matriarca religiosa afirmou ter visto nela as mesmas
faíscas.
Há
um texto no livro “Algo Infiel: Corpo, performance e tradução” (Cultura &
Barbárie, 2017), de Guilherme Gontijo Flores e Rodrigo Tadeu Gonçalves que
trata de um show de Maria Bethânia. No ensaio, um dos autores (Guilherme ou
Rodrigo, não se sabe) escreve que, ao assistir à intérprete cantando os versos
ingênuos de “É o Amor”, com uma potência inesperada, entrou em transe: “Do
transe muito material que a voz de alguém que canta pode produzir em qualquer
um, do transe corpóreo de toda performance”. A canção de Zezé di Camargo &
Luciano, extremamente gasta pela recorrência com que foi veiculada pelas
mídias, numa obsessão sertaneja desenfreada, ganhou outros contornos na voz de
Bethânia. O que prova que a canção é “a abertura por onde o corpo e a voz se
fazem sentido, é o espaço em que a forma se completa sempre a caminho – como na
etimologia de performance – uma
canção só é uma canção quando está num corpo”. E Bethânia canta com o corpo
todo. Nesse sentido, sua voz encorpada (en)canta. Segundo o autor do texto, a
longa carreira de Bethânia, “capaz de transitar entre a suposta elite cultural
e os hits da AM, no decorrer de cinco décadas, é um exemplar precioso da
poética do corpo e da poética no corpo”. Celebremos isso tudo.
Texto publicado inicialmente no jornal Caiçara, de União da Vitória, em 15 de dezembro de 2018.
sexta-feira, 7 de dezembro de 2018
Para ler ao som de Black Sheep Boy, de Tim Hardin: Apontamentos sobre “Só Garotos”, de Patti Smith
Em 2018, a
Companhia das Letras reimprimiu as memórias afetivas da escritora, cantora,
compositora, desenhista e fotógrafa Patti Smith, um ícone da contracultura
norte-americana, que se popularizou durante o movimento punk. O livro
intitulado “Só Garotos” – lançado inicialmente em 2010 e traduzido para o
português por Alexandre Barbosa de Souza -, é um retrato da curiosa vida da artista
na Nova York dos anos 60 e 70, quando ela conviveu com o fotógrafo Robert
Mapplethorpe, um de seus grandes incentivadores e para quem ela prometeu
escrever o livro um pouco antes dele morrer. Na capa da edição brasileira, a
autora aparece em Coney Island, ao lado do companheiro de aventuras amorosas e
estéticas, ambos dignamente trajados à moda dos anos 60, meio hippies e beatniks.
Patti Smith e Robert Mapplethorpe, em Coney Island
A obra se inicia
com a infância de Patricia Lee Smith e se encerra com a morte de Robert. Entre
os dois episódios, as memórias da escritora vão sendo evocadas e tecidas,
poética e delicadamente. Depois de uma gravidez indesejada na adolescência –
fato que a levou a entregar seu filho para adoção -, Patti parte para Nova York
com a intenção de se tornar uma artista. Ao longo das páginas que se seguem a
esse momento de ruptura, os capítulos vão apresentando as suas aventuras na
metrópole com ênfase em seu gradativo contato com artistas nova-iorquinos dos
mais variados. Do emprego que consegue na cantina Joey´s, na Times Square,
passando por um trabalho na livraria Scribner´s, até a sua projeção artística,
a autora vai relatando suas descobertas musicais e literárias que vão de
Vanilla Fudge, Tim Burkley, Tim Hardim até William Blake, Allen Ginsberg, Dylan
Thomas, Bob Dylan, Jim Morrison, Jimi Hendrix, Janis Joplin etc. Tudo tendo
como pano de fundo sua hospedagem em apartamentos baratos, divididos com o companheiro
Robert até uma fértil estada no Hotel Chelsea, que serviu de moradia para
muitas personalidades e seres curiosos.
No Hotel Chelsea
Patti Smith
frequenta com assiduidade a cena cultural underground da cidade – com direito a
paradas obrigatórias em bares e casas noturnas que movimentam a cidade mais
populosa dos Estados Unidos -, e aos poucos, as portas do mundo da arte vão se
abrindo. Mas ela não está buscando se tornar uma celebridade, pois faz parte
daquela linhagem de artistas meio misantrópicos que criam seu próprio universo
e que só desejam expressar aquela verdade artística que brota do coração e que
só é encontrada em sujeitos que nasceram destinados a povoar o mundo com suas
belezas particulares. Aliás, em uma das passagens do livro, a escritora
apresenta sua concepção de arte. Para ela, “o artista é aquele ser que busca
entrar em contato com sua noção intuitiva dos deuses, mas, para criar seu
trabalho, não pode permanecer nesse domínio sedutor e incorpóreo. Ele deve
voltar ao mundo material para fazer sua obra”. A responsabilidade do artista,
nesse sentido, é “equilibrar a comunhão mística com o trabalho criativo”.
Nota-se a dimensão sagrada que Patti Smith dá para a arte, sendo o artista esse
ser que, independente dos seus mistérios, não abre mão da terra e de
transformar essa comunhão na prática efetiva de uma criação, o que não diminui
em nada a dimensão mágica de seu afazer.
O livro não
relata somente sua vida no interior e em Nova York, mas também uma viagem até a
França, quando Patti visita Charleville, cidade natal do poeta simbolista
Rimbaud, seu ídolo. Em Paris, visita a sepultura de outro ícone, Jim Morrison,
e confessa sentir naquele lugar uma leveza no peito, nada triste: “Senti que
ele poderia a qualquer momento sair do meio da neblina e tocar o meu ombro”.
Na sepultura de Jim Morrisson
Em um dos
momentos mais comoventes do livro, é descrita a morte de Robert, vítima da
AIDS. Personagem tão importante quanto a própria autora, o fotógrafo percorre
as páginas de “Só Garotos”, como que a escrever o livro com ela: “Meu amor por
ele não podia salvá-lo. Seu amor pela vida não podia salvá-lo. Foi a primeira
vez que entendi de verdade que ele ia morrer. (...) A luz entrava pelas janelas
sobre suas fotografias e o poema de nós dois juntos pela última vez. Robert
morrendo: criando silêncio. Eu, destinada a viver, ouvindo atentamente um
silêncio que demoraria uma vida para expressar”. A passagem concentra toda a
energia que levou Patti Smith a escrever esse livro.
Com Robert Mapplethorpe
Uma das
lembranças marcantes registradas na autobiografia diz respeito ao momento em que
Bob Dylan foi assisti-la pela primeira vez em seu show: “Ele estava lá.
Subitamente entendi a origem da eletricidade no ar. Bob Dylan tinha entrado no
clube. Saber disso teve um estranho efeito sobre mim. Em vez de abatida, senti
o poder, talvez dele; mas senti também meu próprio valor e o valor de minha
banda”. Há dois anos, Patti Smith apareceu cantando na entrega do prêmio Nobel
de Literatura concedido a Bob Dylan. Ela representou o artista que não
compareceu. Na sua inesquecível performance, a artista cantou “A hard rain´ a-gonna
fall” (1962), composta pelo agraciado e, visivelmente emocionada, atrapalhou-se
na letra, desculpando-se pelo fato e tendo que reiniciar a apresentação,
emocionando também o público. Foi um fato digno de sua espontaneidade,
singularidade, humildade e brilhantismo.
Na entrega do Nobel a Bob Dylan
Texto publicado no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 01 de dezembro de 2018
domingo, 25 de novembro de 2018
Ondjaki e a poesia como laboratório da língua
Há alguns anos, em uma entrevista concedida à revista
literária Etcétera, de Curitiba, o poeta Ademir Assunção observou que a
linguagem constrói mundos e quando um autor desautomatiza a linguagem,
dependendo do grau de sucesso nisso, “desautomatiza também a percepção do mundo
dos leitores e modifica a percepção da realidade, ou das realidades”. Gosto
desse argumento porque ele traz à tona uma das grandes questões que envolve a
vocação da poesia, que é a de ser um laboratório da língua, lugar onde ela (a
língua) se experimenta na sua máxima potencialidade. Pensamos condicionados
pelas regras de nossa língua e a poesia, ao desautomatizar a linguagem, tirando-a
de seu lugar comum, da zona de conforto do idioma, é nesse sentido uma fonte
proteica não só de toda e qualquer língua, mas também do próprio pensamento. A
poesia é essa máquina de produzir imagens tal qual caleidoscópio. Giramos,
lemos, e assim novos desenhos estão destinados a brotarem do risco (friso aqui
o duplo sentido) de todo e qualquer poeta. Poderíamos dizer também,
redesenhando os traços de Ademir Assunção, que a poesia, ao desmontar a
linguagem, desmonta também a nossa forma de ver o mundo. Desmontagem e
desautomatização são essenciais no jogo da atividade poética. Gire mais o
caleidoscópio e verá uma sempre nova paisagem de formas e cores. Desmontar
a linguagem tem a ver nesse sentido com o ato de brincar. O jogo está sempre
presente na lógica de uma brincadeira. E isso dá prazer. O poeta brinca com as
palavras, como a criança faz seus jogos na moral de seu brinquedo.
Ademir Assunção
Escrevo tudo isso apenas para saudar a poesia de
Ondjaki, escritor nascido em 1977 na cidade de Luanda. Premiado na Angola, seu
país de origem, na Europa, e também no Brasil, Ondjaki é autor de romances,
contos e poesia, tendo sido traduzido já para o francês, espanhol, italiano,
alemão, inglês, sérvio e sueco. Basta abrir seu livro de poemas “Há prendisajens
com o xão (o segredo húmido da lesma & outras descoisas” (Pallas, 2011),
para percebermos a desautomatização da linguagem de que nos fala Ademir
Assunção, gerada em grande parte pela desmontagem da língua portuguesa, a
começar pelo próprio título da obra. Essa experiência, que faz lembrar a todo
instante do mestre brasileiro Manoel de Barros - aliás fartamente incensado no
livro -, faz de Ondjaki uma das vozes renovadoras da literatura de língua
portuguesa.
Ondjaki
A todo instante os poemas do angolano, ao desmontarem
a linguagem tradicional - produzindo aquele estranhamento que faz da poesia o
que a poesia é, na emergência de sua literariedade – embaralham as ideias e os
sentidos do leitor apontando para novos sentidos fecundados por sua
sensibilidade lírica, bem como por suas experiências frasais (fractais) capazes
de alimentarem não apenas sua língua poética, mas principalmente a imaginação
do leitor, uma imaginação que é também conhecimento profundo sobre as coisas.
Ondjaki olha para o chão a todo instante como a colher estrelas, bem como
observa com afinco o céu para nele semear o alimento de sua escrita. Seguindo o
preceito de Manoel de Barros, para quem é preciso “chegar a traste para ter
grandezas”, o poeta Ondjaki escreve no poema “Chão”, que abre o livro:
apetece-me des-ser-me; / reatribuir-me a átomo. / cuspir castanhos grãos / mas
gargantadentro; / isto seja: engolir-me para mim / poucochinho a cada vez. / um
por mais um: areios. / assim esculpir-me a barro / e re-ser chão. Muito chão. /
apetece-me chãonhe-ser-me”. Seus jogos verbais vão estabelecendo uma sintaxe
muito peculiar que me faz lembrar daquilo que escreveu Vilém Flusser sobre a
poesia, entendida como uma espécie de língua nova.
Para ele, a característica do verso é a sua originalidade e a poesia produz a língua, porque “articula o inarticulado”. Flusser conclui que a poesia é nesse sentido a “fonte da verdade”. Eis a filosofia do poema. Seu alimento está, naturalmente, na imaginação e na capacidade de ler o mundo com outros olhos: “o pirilampo é a lanterna do poeta”, escreve Ondjaki em um de seus versos. De outros poemas, podem ser pinçados lances poéticos como: “A folha é parede verde / para o sol chegar”; “A despalavreação / pode acrescer de uma vida”; “Encarar o universo com / demasiada intimidade / - a modos que quintal”; “Para ser grilo / há que ter desnoções”.
Vilém Flusser
Para ele, a característica do verso é a sua originalidade e a poesia produz a língua, porque “articula o inarticulado”. Flusser conclui que a poesia é nesse sentido a “fonte da verdade”. Eis a filosofia do poema. Seu alimento está, naturalmente, na imaginação e na capacidade de ler o mundo com outros olhos: “o pirilampo é a lanterna do poeta”, escreve Ondjaki em um de seus versos. De outros poemas, podem ser pinçados lances poéticos como: “A folha é parede verde / para o sol chegar”; “A despalavreação / pode acrescer de uma vida”; “Encarar o universo com / demasiada intimidade / - a modos que quintal”; “Para ser grilo / há que ter desnoções”.
Nos versos de Ondjaki, um galho pode gentificar uma
arve (árvore), um só olhar pode ser uma “voz não dita”, a linha da água pode
ser um espelho para o céu “narcisar-se”; a terra experimenta alturas, e o poeta
pode ter o céu sob seus pés, até porque “nunca é impossível / pisar um chão de
estrelas”; a lágrima é “sensação que escorrega”. Em seu dicionário poético, que
encerra o livro, o autor define a palavra “despalavreação”: “é um ensinamento,
uma desaprendizagem. Um desmomento. E tem outros nomes: guimarães prosa, manoel
de barro, luuandino vieira, mia conto, ou qualquer ser humano que sorria no
gigantesco significado das coisas insignificantes”. Estão aí suas influências,
ou melhor suas afluências, já que tratamos da poetização de seu mundo natural,
ou da naturalização de seu mundo poético.
Para finalizar, uma confissão: não consegui explicar a
poesia de Ondjaki. Nem mesmo entendê-la. Natural. Causo que ela não carece de
explicação ou entendimento. Como dizia Manoel de Barros, mallarmaicamente, ao
comentar em carta os poemas do “camarada angolano”, a “palavra poética não
serve para expressar ideias – serve para cantar, celebrar”. Ou como dizia Cacaso,
“Poesia / Eu não te escrevo / eu te / Vivo / E viva nós”.
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória, em 24 de novembro de 2018.
quarta-feira, 24 de outubro de 2018
Dissonâncias de Foucault e de Daniel de Oliveira Gomes: Apontamentos para uma filosofia-poético-musical
Caio Ricardo Bona Moreira
Ao som de Glenn
Gould
"Em um tempo no qual o senso harmonicamente comum, bem como a ausência de um saber potente parece reger e conduzir a vida, muito aquém das multiplicidades rizomáticas - avessas a qualquer tipo de fundamentalismo -, valorizar a dissonância é uma forma não só de resistência, mas mesmo de sobrevivência do pensar. Fugir da consonância é, assim, um ato de coragem e lucidez"
Gostaria
de saudar o professor Daniel de Oliveira Gomes e sua pesquisa, evocando
amorosamente o livro Perto do Coração
Selvagem, de Clarice Lispector, no qual o pensamento é pensado como música
se criando: “A música era da categoria do pensamento, ambos vibravam no mesmo
movimento e espécie. Da mesma qualidade do pensamento tão íntimo que ao
ouvi-la, este se revelava” (1997, p.54). Evoco também a prosa de Água Viva, na qual Clarice compara a
escrita automática de seu texto ao jazz, gênero musical pautado pelo momento e
pela improvisação: “Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. Mas que
mal tem isso? improviso como no jazz improvisam música, jazz em fúria,
improviso diante da plateia” (1980, p. 23). Por fim, de Clarice também,
evoco Um sopro de vida, no qual
ela escreveu, ou melhor, cantou: “Estou ouvindo música. (...) Meu vocabulário é
triste e às vezes wagneriano-polifônico-paranoico. Escrevo muito simples e
muito nu. Por isso fere. Sou uma paisagem cinzenta e azul. Elevo-me na fonte
seca e na luz fria” (1999, p.15-16). Poderíamos passear bem mais pelo
universo lispectoriano apreciando a música que se depreende de suas palavras,
tudo isso para musicar seu pensamento, ou mesmo pensar altissonantemente seus acordes verbais. Aliás, em 1973, a autora
recebeu uma carta do amigo e jornalista Alberto Dines na qual ele observa sobre
a ficção Água Viva: “Você venceu o
enredo (...) A gente vai encontrando a todo instante situações-pensamento.
(...) É menos um livro-carta e, muito mais, um livro-música. Acho que você
escreveu uma sinfonia” (DINES apud GOTLIB, 2004, p. 33). Tais imagens, a
de um “livro-música” bem como a de “situações-pensamento” parecem aqui ilustrar
com presteza a experiência que vivencio ao ler os textos de Daniel que se
constituem para mim como uma espécie de filosofia-poético-musical.
Glenn Gold
Clarice Lispector
Relembro o belo prefácio de Durval Muniz de Albuquerque Júnior escrito para o livro Dissonâncias de Foucault, de Daniel.
Nele, Albuquerque Júnior observa que ao abrirmos o livro, estamos acionando um
“objeto sonoro” (in GOMES, 2012, p.
11). Ao lermos suas dissonâncias percebemos quanta música há em seu pensamento.
Se, como nos sugere o prefaciador, há uma música em cada maneira de pensar, bem
como uma musicalidade em cada prática filosófica, isso significa que diante dos
textos de Daniel, para além do livro, estamos sempre diante de dissonâncias. O
texto introdutório observa ainda que o livro merece ser escutado mais do que
lido e se o pensamento tem uma musicalidade é porque ele é do campos da
estética. E se o professor/pesquisador está voltado para a dissonância, isso
acontece porque ele está buscando a meu ver uma sonoridade que destoe do senso
comum, o que representa um exercício ideal no que se refere ao estudo de um
filósofo como Michel Foucault. As dissonâncias do pensador francês permitem a
Daniel, nessa sinfonia, produzir, ou melhor criar e tocar, as suas próprias
dissonâncias. E não fortuitamente elas podem ser ouvidas também no texto que
agora se apresenta, “Nódulos de Foucault (das possibilidades rizomáticas de
ainda ouvi-lo)”. Em uma passagem dele, Daniel aponta para a necessidade de
Foucault ser hoje “legitimamente ouvido, em sua lição de dissonância”, isso
porque carecemos de “filosofia viva e dissonante” (GOMES, 2018, p.22).
Michel Foucault
O primeiro texto, ou melhor a primeira performance
filosófica-poético-musical, de Daniel que conheci e que me cativou de imediato
pela sua inventividade foi uma conferência sobre a leitura poética da música de
Tom Jobim (abramos um parêntese: curiosamente a poesia, que é a arte da
palavra, surge em boa parte das tradições, como canto, como música. Tomem-se
como exemplo o lirismo musical dos gregos ou aquele presente nos hinos Rig Veda,
ou mais próximas de nós, as cantigas que brotam junto com a língua portuguesa
na Península Ibérica nos séculos XII e XIII). A palestra foi proferida na UNESPAR, campus de União da Vitória, há alguns anos.
Pensando ainda na música, imagino o quanto o
pensamento-musical de Daniel contribui para fazer repercutir (e o verbo aqui
assimila todos os seus sentidos) o pensamento de Michel Foucault.
Desde que conheci Daniel, chamou-me a atenção, mais do que o
texto por ele elaborado, ou mesmo seus conteúdos e referências, a forma como
sua escrita/pensamento se dobrava e desdobrava, produzindo, por meio da fricção
de objetos muitas vezes disparatados, uma faísca capaz de devolver potência aos
objetos contemplados. Em outras palavras, como o seu texto tocava e dançava em
mim. Ou seja, para usar uma nomenclatura de Michel Foucault, encantava-me
assistir aos movimentos que se dirigiam mais para a sua ficção do que para a
sua fábula[1]
(FOUCAULT, 2001). Como não lembrar aqui do escritor argentino César Aira, que
observou no ensaio “A nova escritura” (AIRA, 2007), a característica principal
dos grandes artistas do século XX que seria a capacidade não necessariamente de
criar obras, mas de criar procedimentos para que as obras se fizessem sozinhas
ou não se fizessem. Pois bem, Daniel parece criar procedimentos de leitura para
que sua crítica se faça sozinha. Como a peça “Music of Changes”, de John Cage,
evocado por Aira no ensaio citado, a filosofia-poético-musical de Daniel se
dobra e desdobra dissonantemente como uma forma ainda possível de se emitir um
lance de dados em prol da arte e do pensamento. Poderíamos pensar no texto de
Daniel como a peça de um músico de jazz que a partir de uma linha melódica
improvisa inventando. O improviso aqui não é sinal de desleixo ou amadorismo,
pelo contrário, desdobrar com eficiência o pensamento musical a partir de um
fio condutor exige técnica e talento, esforço e sensibilidade. Nasce daí sua
forma de ensaio (musical, poético e filosófico). Lembre-se que Adorno aproximou
o gênero ensaio da lógica musical em suas Notas
de Literatura (2003). Aliás, no texto “Nódulos de Foucault”, Daniel observa
que Maria Cristina Franco Ferraz aponta para o relançamento do gesto do ensaio
em Foucault.
John Cage
Pedro de Souza, ao apresentar “Dissonâncias de Foucault”,
chamou a atenção para o fato de que para que existir a dissonância “é preciso
que haja uma linha melódica dentro e fora da qual alguém destoa” (in GOMES, 2012, p. 07). Não é à toa que
no texto de hoje, em questão, Daniel escreve que Foucault precisaria ser
legitimamente ouvido, em sua “lição da dissonância”. Daniel, assim, segue o
conselho de Pedro de Souza, para quem é preciso continuar a ouvir Foucault. O
professor/pesquisador lê assim com-Foucault
na medida também em que o trai, como veremos adiante. Em um tempo no qual o
senso harmonicamente comum, bem como a ausência de um saber potente parece
reger e conduzir a vida, muito aquém das multiplicidades rizomáticas - avessas
a qualquer tipo de fundamentalismo -, valorizar a dissonância é uma forma não
só de resistência, mas mesmo de sobrevivência do pensar[2].
Fugir da consonância é, assim, um ato de coragem e lucidez. É ainda Pedro de
Souza que chama a atenção em Daniel para uma “forma livre de ler um pensador”,
“não no conteúdo que pensa, mas no ato de pensar” (in GOMES, 2012, p. 07). É possível que essa forma seja muito
pertinente para se pensar com o filósofo, pois como escreveu Oliveira Gomes:
Se queremos absorver a profunda intimidade de Foucault temos que encarar o Fora, desde esta escrita, e isto significa manter também com ele uma certa infidelidade, como poria Alfredo Veiga-Neto, em um ensaio. Significa perceber ainda a adesão íntima de Foucault com Nietzsche; evadir do modelo de identidade representativa que o fixaria num lugar excepcional; aceitar o rizoma contemporizado em Foucault para o presente (GOMES, 2018, p. 20).
Se queremos absorver a profunda intimidade de Foucault temos que encarar o Fora, desde esta escrita, e isto significa manter também com ele uma certa infidelidade, como poria Alfredo Veiga-Neto, em um ensaio. Significa perceber ainda a adesão íntima de Foucault com Nietzsche; evadir do modelo de identidade representativa que o fixaria num lugar excepcional; aceitar o rizoma contemporizado em Foucault para o presente (GOMES, 2018, p. 20).
Manter uma relação de infidelidade não significa virar
ex-foucaultiano, porque Daniel não tem medo de conviver com a ausência de mira,
ou de viajar em um barco à deriva. O que Daniel faz é trabalhar com o saber
numa zona de perigo – aliás, lugar destinado a Foucault, como sugeriu Blanchot
(apud GOMES, 2018), assumindo o desafio
de um labirinto sem mapas e sem fins, para desenvolver assim uma perspectiva de
audição, propondo a releitura (audição), de um Foucault artista, de um Foucault
selvagem.
Maurice Blanchot
Se parte da inventividade e da competência analítica e
poética da crítica de Daniel se encontra no ato de manter com o seu objeto uma
relação também de infidelidade, isso significa que o prolongamento do
pensamento desse mesmo objeto está diretamente ligado à capacidade de
multiplicar as ideias, colocando-se a serviço da invenção. Nesse processo, a
relação entre o pesquisador/leitor e o autor/filósofo se (in)diferencia. Talvez
a metáfora da ligação orgânica entre a máquina e o operador não seja aqui
adequada, posto que o universo da produção capitalista é a todo momento
problematizado por Daniel. Seria interessante pensar com ele nos fios da
marionete que “vistos em rizoma, não remetem ao sujeito que opera o objeto, mas
sim que continua prolongando-se na forma das fibras e nervos dos braços do
operador até o indiferenciado” (idem,
p. 21). Porque a esfera do rizoma, seja em Deleuze e Guattari, ou mesmo em
Foucault, está na esfera no descentramento puro, da pura desterritorialização.
O cerne em todos os lugares e o centro em lugar nenhum.
Como não lembrar aqui de um livro seu que muito aprecio,
refiro-me ao “Saber é Poder”, publicado em 2015. Sobre esta obra, Miguel
Sanches Neto aponta para sua estrutura desmontável, como um livro que pode ser
lido aos pedaços, “embora tenha uma estrutura geral” (in GOMES, 2015, p. 09). Cada capítulo seria uma espécie de janela
que se abre “para outras paisagens intelectuais”. O trabalho de montagem – num
certo sentido rizomática - que parece pautar a confecção do livro, variando a
todo momento seus olhares e suas paisagens, mas sem perder a coerência do todo,
demonstra novamente uma espécie de trabalho musical de composição que
encontramos por exemplo no jazz, na sua vocação para a associação inventiva
entre as partes que o compõe. Tendo sempre em vista o fio condutor de uma
reflexão sobre o poder e o saber, bem como o exercício de uma ethopoiética, a partir de um
conhecimento profundo do pensamento de Foucault, Daniel passeia pelo
capitalismo norte-americano que se expande pelo mundo com seus códigos e
condutas, pela língua como fonte de poder e saber, pelas relações entre o poder
e a ciência, a política, o mercado, a educação, etc. Com o filósofo francês,
descentralizando a noção de poder, Daniel nos mostra que o poder está em toda a
parte, inclusive no saber. E na ethopoiética de Daniel, a poesia merece um lugar
de destaque. Em um dos ensaios, intitulado “Ciência ou Culto”, o autor, lendo
Edgar Morin, aponta para a necessidade de fazermos valer “cada vez mais um
diálogo entre a poesia e a ciência”, já que “a poesia, por ser um discurso que
essencialmente não se submete a uma organização política ou interesses do 'ir
adiante', apresenta-se como uma possibilidade mais revolucionária de nos
envolvermos no mundo” (GOMES, 2015, p. 166). Por ser uma reflexão que integra o
último ensaio do livro, antes das considerações finais, percebe-se o lugar
destinado por Daniel à poesia em nosso mundo contemporâneo, bem como uma das
possíveis conclusões da obra, destinada a estudantes egressos do Ensino Médio e
ingressantes no Ensino Superior.
Edgar Morin
Daniel, no texto que hoje se examina, relembra de Glenn
Glould a executar o barroco ao piano, alongando passagens, e criando uma
multiplicidade de execução e não mera interpretação de Bach. Essa imagem parece
traduzir muito melhor a relação do pesquisador ideal com o seu Foucault, talvez
Virgilio a guiar o pesquisador na selva escura da contemporaneidade. Essa ideia
está para além da mera influência, pois trata-se de um jogo que não se dá sem
conflitos e naturalmente seguir Virgilio/Foucault é também e paradoxalmente
trair o seu guia - afastado da mera idolatria -, para lê-lo com mais clareza.
Como escreveu Padre Vieira: “há de estar apartado dos olhos para se poder ver” (1993,
p. 228).
Édipo, sem o distanciamento necessário não enxergava o que o destino lhe
reservara. E quando pode enfim ver, por meio também das palavras de Tirésias,
que aliás era cego, cegou-se, começando, tragicamente, a ver melhor ou ver
mais. Édipo aqui não é o sintoma do homem vacilante, lido a contrapelo com
Foucault por Daniel, nas suas Dissonâncias,
mas apenas uma imagem suscitada por ambos que nos convida a pensar um pouco
mais na relação entre o saber do poder e no poder do saber. Talvez agora, um
pouco mais distante de nós, o pensamento de Foucault seja tão necessário e
importante, e apartado de nosso olhar, talvez possamos vê-lo melhor, ou
ouvi-lo, como sugere Daniel. Observe-se que o se questiona no texto que se
examina é o status atual da recepção da obra de Foucault, analisando faltas e
excessos para encontrar a justeza do nódulo, para além da recusa, do abandono,
ou da museificação do pensador. Contra o achatamento do pensamento chato, Daniel
lamenta o assassinato de Foucault em terras
brasillis por parte de um neoconservadorismo que reina em nosso país.
Trata-se, naturalmente, de uma (re)politização da leitura de Foucault a partir
do rizoma.
Gilles Deleuze
Gostaria
de destacar uma coerência que percorre a obra crítica de Daniel. Dos ensaios
que compõe “Saber é Poder”, passando pelos textos de “Dissonâncias de
Foucault”, uma tendência ao pensamento das multiplicidades, uma vocação para o
rizomático, para a resistência, um pendão para o estabelecimento de pontes,
relações associativas, entre sistemas culturais dos mais variados, do cinema à
pintura, da música à política. Trata-se a meu ver de ampliar as potências do
pensamento ao operar procedimentos críticos/criativos que lhe vêm certamente
também de Foucault, esse baluarte do poder/saber/inquieto, mas também de uma
matemática musical que lhe aguça uma sensibilidade diferenciada, como vimos apontando
desde o início.
A
imagem do rizoma que percorre o texto de Daniel de certa maneira parece ser a
progressão contínua e ininterrupta do rizoma que é o próprio pensamento de
Foucault. Ela parece se constituir crítica e poeticamente para tratar não apenas
das elucubrações do filósofo francês, mas também da forma como Daniel se
relaciona com seu pensamento. Esse é o ponto que insisto. Se as dissonâncias de
Foucault são sugestivas ao pensamento de Daniel é porque o seu
pensamento-música devolve potência a uma zona não domesticada da filosofia, da
história e da arte.
O
saber inquieto de Daniel, naturalmente, demonstra uma preocupação recorrente
com as questões docentes que estão diretamente integradas à atuação científica
do professor/crítico/pesquisador, cujo trabalho se volta contra uma visão
funcionalista atrelada à formação de professores acríticos transformados
inevitavelmente em peças dóceis do sistema em que se encontram inseridos.
Destaco duas passagens:
Não formamos profissionais para o mercado, ele não dita ou não deveria ditar as regras de uma universidade pública, o mercado que só pensa na perfeição superficial deve absorver a densidade humana que formamos, com ética, com potencial crítico, com deformidades inclusive. Profissionais éticos são mais relevantes que aqueles que encenam a "moral" do negócio (GOMES, 2018, p. 19).
Devíamos formar profissionais pra eles mesmos, profissionais éticos, pessoal e socialmente competentes, interessados em filosofar, em pensar, em desobedientemente tornar complexo, em antiestetizar, em rizomatizar, estereostopicamente, contraproduzir, em questionar seus próprios status e lugares de dizer, e não profissionais individualmente competentes para o mercado, para o oponente potencial das áreas de humanidades, para o inimigo de uma dada tradição da universidade pública, gratuita e de qualidade (potencializadora de perigos para o mercado) (GOMES, 2018, p. 19).
Não formamos profissionais para o mercado, ele não dita ou não deveria ditar as regras de uma universidade pública, o mercado que só pensa na perfeição superficial deve absorver a densidade humana que formamos, com ética, com potencial crítico, com deformidades inclusive. Profissionais éticos são mais relevantes que aqueles que encenam a "moral" do negócio (GOMES, 2018, p. 19).
Devíamos formar profissionais pra eles mesmos, profissionais éticos, pessoal e socialmente competentes, interessados em filosofar, em pensar, em desobedientemente tornar complexo, em antiestetizar, em rizomatizar, estereostopicamente, contraproduzir, em questionar seus próprios status e lugares de dizer, e não profissionais individualmente competentes para o mercado, para o oponente potencial das áreas de humanidades, para o inimigo de uma dada tradição da universidade pública, gratuita e de qualidade (potencializadora de perigos para o mercado) (GOMES, 2018, p. 19).
Finalizo
saudando o pensamento musical que se depreende do trabalho de Daniel de
Oliveira Gomes, lembrando não só do interesse de Foucault pela música, mas
também de Daniel, músico exemplar que faz dessa arte uma atividade de
pensamento, ao passo que faz de seu pensamento, assim como intentou Foucault,
uma arte musical que, em outras palavras, significa, acima de tudo, a
poetização da existência.
REFERÊNCIAS:
ADORNO, T. Notas de Literatura. São Paulo: Duas
Cidades; Ed. 34, 2003.
AIRA, C. Pequeno Manual de Procedimentos.
Curitiba: Arte & Letra, 2007.
FOUCAULT, M. Estética: literatura e pintura, música e cinema.
Organização e seleção de textos: Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2001.
GOMES, D. de O. Dissonâncias de Foucault. São Paulo:
Lumme Editor, 2012.
____. Nódulos de Foucault (das possibilidades
rizomáticas de ainda ouvi-lo). Artigo submetido à banca para ascensão de
nível. Ponta Grossa, 2018.
____. de O. Saber é poder. Jundiaí: Paco Editorial,
2015.
GOTLIB, N. B. A
descoberta do mundo. In: Cadernos de
Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2004.
LISPECTOR, C. Água Viva. 5 ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1980.
____. Perto do Coração Selvagem. Rio de
Janeiro: Rocco, 1997.
____. Um sopro de vida (Pulsações). Rio de
janeiro: Rocco, 1999.
VIEIRA, A. Sermões
Texto apresentado na Banca para Professor Titular na UEPG, em Ponta Grossa (PR), em julho de 2018, na qual o professor Daniel de Oliveira Gomes ascendeu de nível, a quem agradeço pela oportunidade e parabenizo pela trajetória acadêmica
[1] Relembremos do prefácio de Albuquerque Júnior para as
Dissonâncias de Foucault/Daniel. Para ele, um texto de Michel Foucault causa
impacto “não apenas pelas coisas que diz, mas pela forma de dizer”. O filósofo
é um pensador que impressiona, “não apenas pelo que diz, mas pela forma como o
diz”. O que lemos nesse livro, segundo o prefaciador não é o pensamento de
Foucault, “são e não são suas ideias retornadas através da voz, da escritura,
da sonoridade produzida pelos ensaios de Daniel de Oliveira Gomes” (in GOMES, 2012, p. 11-19).
[2] Lembremos que, em um diálogo
entre Foucault e P. Boulez intitulado “A música contemporânea e o público”,
publicado na C.N.A.C. Magazine em 1983, Foucault falou sobre a complexidade da
música erudita contemporânea e sua relação com os ouvintes em uma época regida
meramente pelas leis do mercado. Para ele, não é preciso dar acesso à música
rara, mas dar “uma convivência com ela menos determinada pelos hábitos e
familiaridades” (2001, p. 394). O filósofo chama a atenção para o fato da
evolução da música a partir de Debussy ou Stravinski apresentar correlações
notáveis com a da pintura. Observou também que os problemas teóricos que a
música colocou para si mesma decorrem de uma interrogação que atravessa todo o
século XX: “interrogação sobre a forma, aquela de Cézanne ou dos cubistas, a de
Schönberg, e também a dos formalistas russos ou a da Escola de Praga” (2001, p.
391). Penso que a
preocupação com uma música de pensamento em Foucault parece se expandir também
para o pensamento musical de Daniel.
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