sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Para ler ao som de Black Sheep Boy, de Tim Hardin: Apontamentos sobre “Só Garotos”, de Patti Smith






Em 2018, a Companhia das Letras reimprimiu as memórias afetivas da escritora, cantora, compositora, desenhista e fotógrafa Patti Smith, um ícone da contracultura norte-americana, que se popularizou durante o movimento punk. O livro intitulado “Só Garotos” – lançado inicialmente em 2010 e traduzido para o português por Alexandre Barbosa de Souza -, é um retrato da curiosa vida da artista na Nova York dos anos 60 e 70, quando ela conviveu com o fotógrafo Robert Mapplethorpe, um de seus grandes incentivadores e para quem ela prometeu escrever o livro um pouco antes dele morrer. Na capa da edição brasileira, a autora aparece em Coney Island, ao lado do companheiro de aventuras amorosas e estéticas, ambos dignamente trajados à moda dos anos 60, meio hippies e beatniks.

Patti Smith e Robert Mapplethorpe, em Coney Island

A obra se inicia com a infância de Patricia Lee Smith e se encerra com a morte de Robert. Entre os dois episódios, as memórias da escritora vão sendo evocadas e tecidas, poética e delicadamente. Depois de uma gravidez indesejada na adolescência – fato que a levou a entregar seu filho para adoção -, Patti parte para Nova York com a intenção de se tornar uma artista. Ao longo das páginas que se seguem a esse momento de ruptura, os capítulos vão apresentando as suas aventuras na metrópole com ênfase em seu gradativo contato com artistas nova-iorquinos dos mais variados. Do emprego que consegue na cantina Joey´s, na Times Square, passando por um trabalho na livraria Scribner´s, até a sua projeção artística, a autora vai relatando suas descobertas musicais e literárias que vão de Vanilla Fudge, Tim Burkley, Tim Hardim até William Blake, Allen Ginsberg, Dylan Thomas, Bob Dylan, Jim Morrison, Jimi Hendrix, Janis Joplin etc. Tudo tendo como pano de fundo sua hospedagem em apartamentos baratos, divididos com o companheiro Robert até uma fértil estada no Hotel Chelsea, que serviu de moradia para muitas personalidades e seres curiosos.

No Hotel Chelsea

Patti Smith frequenta com assiduidade a cena cultural underground da cidade – com direito a paradas obrigatórias em bares e casas noturnas que movimentam a cidade mais populosa dos Estados Unidos -, e aos poucos, as portas do mundo da arte vão se abrindo. Mas ela não está buscando se tornar uma celebridade, pois faz parte daquela linhagem de artistas meio misantrópicos que criam seu próprio universo e que só desejam expressar aquela verdade artística que brota do coração e que só é encontrada em sujeitos que nasceram destinados a povoar o mundo com suas belezas particulares. Aliás, em uma das passagens do livro, a escritora apresenta sua concepção de arte. Para ela, “o artista é aquele ser que busca entrar em contato com sua noção intuitiva dos deuses, mas, para criar seu trabalho, não pode permanecer nesse domínio sedutor e incorpóreo. Ele deve voltar ao mundo material para fazer sua obra”. A responsabilidade do artista, nesse sentido, é “equilibrar a comunhão mística com o trabalho criativo”. Nota-se a dimensão sagrada que Patti Smith dá para a arte, sendo o artista esse ser que, independente dos seus mistérios, não abre mão da terra e de transformar essa comunhão na prática efetiva de uma criação, o que não diminui em nada a dimensão mágica de seu afazer.
O livro não relata somente sua vida no interior e em Nova York, mas também uma viagem até a França, quando Patti visita Charleville, cidade natal do poeta simbolista Rimbaud, seu ídolo. Em Paris, visita a sepultura de outro ícone, Jim Morrison, e confessa sentir naquele lugar uma leveza no peito, nada triste: “Senti que ele poderia a qualquer momento sair do meio da neblina e tocar o meu ombro”.

Na sepultura de Jim Morrisson

Em um dos momentos mais comoventes do livro, é descrita a morte de Robert, vítima da AIDS. Personagem tão importante quanto a própria autora, o fotógrafo percorre as páginas de “Só Garotos”, como que a escrever o livro com ela: “Meu amor por ele não podia salvá-lo. Seu amor pela vida não podia salvá-lo. Foi a primeira vez que entendi de verdade que ele ia morrer. (...) A luz entrava pelas janelas sobre suas fotografias e o poema de nós dois juntos pela última vez. Robert morrendo: criando silêncio. Eu, destinada a viver, ouvindo atentamente um silêncio que demoraria uma vida para expressar”. A passagem concentra toda a energia que levou Patti Smith a escrever esse livro.

Com Robert Mapplethorpe

Uma das lembranças marcantes registradas na autobiografia diz respeito ao momento em que Bob Dylan foi assisti-la pela primeira vez em seu show: “Ele estava lá. Subitamente entendi a origem da eletricidade no ar. Bob Dylan tinha entrado no clube. Saber disso teve um estranho efeito sobre mim. Em vez de abatida, senti o poder, talvez dele; mas senti também meu próprio valor e o valor de minha banda”. Há dois anos, Patti Smith apareceu cantando na entrega do prêmio Nobel de Literatura concedido a Bob Dylan. Ela representou o artista que não compareceu. Na sua inesquecível performance, a artista cantou “A hard rain´ a-gonna fall” (1962), composta pelo agraciado e, visivelmente emocionada, atrapalhou-se na letra, desculpando-se pelo fato e tendo que reiniciar a apresentação, emocionando também o público. Foi um fato digno de sua espontaneidade, singularidade, humildade e brilhantismo. 

Na entrega do Nobel a Bob Dylan



Texto publicado no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 01 de dezembro de 2018

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