quinta-feira, 15 de março de 2018

Crimes à moda antiga: os contos verdade de Valêncio Xavier




Em março de 2018, o escritor Valêncio Xavier estaria fazendo 85 anos. Ao invés de lamentarmos os exatos dez anos de sua morte, celebremos a vida de uma das mentes mais criativas da literatura brasileira contemporânea, que escreveu, por exemplo, “Curitiba, de Nós” (1975), “O Mez da Grippe” (1981), Maciste no Inferno (1983), “O Minotauro” (1985), “A Propósito de Figurinhas” (1986), “Minha Mãe Morrendo e o Menino Mentindo” (2001), “Remembranças da Menina Morta de Rua e Outros Livros”, etc.
Valêncio Xavier, paulistano radicado na capital paranaense, explorou com maestria um diálogo entre a literatura, o cinema, o jornalismo e a fotografia. Seus livros se constituem quase sempre como montagens criativas nas quais a relação entre textos e imagens (compostas por fotogramas cinematográficos, fotografias, rótulos, manchetes, colagens em geral) é o princípio constitutivo de uma experiência artística bastante singular. As imagens em sua obra não apenas ilustram os textos, mas são também por eles iluminadas. E a “fricção” entre ambos faz surgir um novo signo literário. Sua literatura é, nesse sentido, intersemiótica.

Valêncio Xavier

Com suas montagens o escritor contou histórias que tiveram como pano de fundo o universo da memória, do erotismo, da tragédia, da morte e do mal. Em boa parte de seus livros, a abjeção aparece como sintoma de uma literatura interessada em retratar a degradação humana, a baixeza do mundo. Tomemos como exemplo seu penúltimo livro, “Crimes à moda antiga” (2004), no qual podemos perceber a violência como eixo temático a nortear os enredos apresentados. A publicação é composta por uma série de “contos verdade”, que partiram de assassinatos praticados no Brasil no início do século XX. A obra, editada pela Publifolha, contou com ilustrações do próprio autor, bem como de Sérgio Niculitcheff. Valêncio pesquisou amplamente cada um dos crimes e os transformou em matéria literária, sem alterar, no entanto, a veracidade dos fatos.

No conto “Os Estranguladores da Fé em Deus”, o autor relembra o caso dos irmãos Paulino e Carlo Fuoco. Os jovens, que trabalhavam na joalheria do tio, foram barbaramente assassinados em outubro de 1906, no Rio de Janeiro, por Eugênio Rocca e Carletto. Em outro conto, “A noiva não manchada de sangue”, Valêncio reconstitui o assassinato de Arthur Malheiros no quarto de um hotel situado na Galeria Cristal, no centro de São Paulo, pelas mãos de sua ex-namorada Albertina Barbosa Bonilha, em conluio com seu marido Elisário Bonilha, nos idos de 1909. As motivações do crime nunca foram completamente esclarecidas. “A Morte do Tenente Galinha” apresenta o fim inglório de um famoso caçador de bandidos na cidade de São Paulo, em 1913, que teve como estopim um adultério. O famoso crime de Cravinhos, no qual uma rica fazendeira - a rainha do café - encomenda a morte de seu genro, também é registrado no livro. São apresentados também dois contos sobre os chocantes crimes da mala - em que os corpos das vítimas são brutalmente esquartejados -, como é o caso da morte de Maria Féa pelo italiano José Pistone, e de Elias Farhat por seu empregado Miguel Trad, um imigrante sírio. O último texto da obra revisita o assassinato, nos anos 30, de dois curitibanos e de dois gaúchos cometido por uma mesma dupla de assaltantes facínoras.

Febrônio

O conto baseado em um crime mais clássico talvez seja aquele que reconstitui a vida do bandido Febrônio e as crueldades por ele praticadas no Rio de Janeiro nos anos 20. Este é um dois bandidos mais famosos do século XX, tendo morrido em um manicômio em 1984. A sua história envolve crimes sexuais, homicídios e misticismo religioso. O personagem é tema de um ensaio de Raúl Antelo (Suplemento Literário, 2009, n.1321), que analisa a monstruosidade de Febrônio à luz de reflexões sobre o mal na obra, por exemplo, de Georges Bataille.

Giuseppe Pistone e Maria Féa a bordo do navio Conte Biacamano

O baú de madeira com o corpo de Maria Féa chegou a embarcar no navio Massilia, mas chamou a atenção pelo cheiro fétido

Para Bataille, o mal e a literatura são inseparáveis. A literatura não nos permite “viver sem ver a natureza separada dos aspectos existenciais mais violentos”. Ela nos possibilita “perceber o pior e aprender como confrontá-lo, como superá-lo”. Talvez se justifique aí a importância da arte ao materializar ou representar o mal, fazendo dele tema de tantos textos cruéis. Não é fortuito que Valêncio Xavier tenha escrito um conto como “No meio do mato matou a mulher índia e depois comeu”, publicado no jornal Nicolau (ano 1, n. 3). No conto, o assassino depois de esfaquear a vítima, corta seu corpo e retira dele os órgãos para comê-los: “Mordeu e enfiou pela boca adentro úmidos pedaços de algum órgão, fígado ou rins, não sei”. Os detalhes da cena são cruéis e minuciosamente descritos. O conto traz a fotografia de uma índia semelhante à vítima, o desenho de um corpo dissecado, algumas inscrições verbais e a representação de uma onça, que aparece no conto se alimentando também da jovem. Há uma dimensão erótica em todo o conto, e a questão sexual motiva o crime. Em todos os elementos que constituem o seu enredo percebe-se a presença do Mal, descrito por Bataille e tematizado tantas vezes por Valêncio. É a monstruosidade do mundo gritando na literatura. Ela nos perturba ao passo que nos convida a confrontá-la.

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória - PR, em 10 de março de 2018.             

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