segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Uma macumba para começar bem o ano: Reflexões sobre “Fogo no Mato”, de Luiz Rufino e Luiz Antonio Simas




Acostumados com as obras tradicionais de filosofia, na certa os leitores se espantariam com as páginas de “Fogo no Mato: A ciência encantada das macumbas” (2018, Mórula Editorial), do pedagogo Luiz Rufino, que é doutor em Educação, e do Luiz Antonio Simas, professor de História e cronista de mão cheia. Repletas de alegria e pensamento, de provocação e sábio engenho, as páginas deste curioso livro nos convidam a um passeio por um mundo ainda pouco decifrado e reconhecido pela academia. Isso porque estamos diante de um conjunto de saberes ancestrais e sagrados que alimentam uma rica e complexa teia de cultura popular que só aos poucos vai sendo assimilada pelo nosso mundo secular. Trata-se, aqui, de um Brasil compreendido como terreiro, no qual os encantados, os atabaques, as benzeduras, os juremeiros, Santos e Orixás, fazem a sua morada.  

Mãe Terezinha Bulhões na Cidade de Maria do Acaes. 2008. Foto de Mariana Lima.

As veredas pelas quais passeiam os autores do livro são repletas de encruzilhadas e feitiços capazes de desnortear os leitores que não estiverem dispostos a entrar no jogo de seus encantos. Em uma época na qual a pluralidade de perspectivas é abolida em favor de um sentido único, e as históricas intolerâncias vão se adaptando ao mundo moderno, o estudo de Simas e Rufino reinsere a lógica do cruzamento e o caminho da pluralidade como fonte de excelência para o pensamento. Ao mesmo tempo que afirma sua potência filosófica - apontando outros caminhos para o pensar -, o livro investe em um olhar antropológico que apresenta a nossa cultura popular religiosa, de matriz afro, como detentora de saberes capazes não só de enriquecer o nosso conhecimento, mas também de devolver potência para zonas não domesticadas do nosso corpo e do nosso espírito, alargando nosso olhar para outras concepções de mundo. Essa é uma questão tanto poética quanto política, tanto filosófica quanto antropológica: “(...)há que se ler o encanto para se entender a ciência”.


Os escritores observam que o Atlântico é uma gigantesca encruzilhada: “Por ela atravessaram sabedorias de outras terras que vieram imantadas nos corpos, suportes de memórias e de experiências múltiplas que lançadas na via do não retorno, da desterritorialização e do despedaçamento cognitivo e identitário, reconstruíram-se no próprio curso, no transe, reinventando a si e ao mundo”. Há em “Fogo no Mato” um perspectivismo voltado para a cultura africana que parece dialogar com o perspectivismo ameríndio desenvolvido pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro.
 Rufino e Simas partem do pressuposto de que o colonialismo se construiu em detrimento daquilo que foi produzido como sendo o seu outro, gerando uma descredibilidade de “inúmeras formas de existência e de saber”. Trata-se de uma dominação que produziu a morte física, por meio do extermínio, bem como simbólica, através do que os autores chamam de “desvio existencial”.


Desviando desse caminho colonialista, o livro aponta para a valorização de uma perspectiva da ancestralidade, segundo a qual a morte só existe como sinônimo de esquecimento. Aponta também para a perspectiva do encantamento, ao mergulhar no complexo epistemológico das macumbas. Estamos, aqui, diante de uma “pedagogia da encruza” e de uma “arte de cruzamento”. Aliás, a obra traz uma bela nota introdutória na qual ressignifica o termo “macumbeiro”: “definição de caráter brilhante e político, que subverte sentidos preconceituosos atribuídos de todos os lados ao termo repudiado e admite as impurezas, contradições e rasuras como fundantes de uma maneira encantada de se encarar e ler o mundo no alargamento das gramáticas. O macumbeiro reconhece a plenitude da beleza, da sofisticação e da alteridade entre as gentes”. A nota recupera a etimologia da palavra macumbeiro, que vem provavelmente do quicongo “kumba”, que quer dizer feiticeiro. Kumba também designaria os encantadores das palavras, ou seja, os poetas: “Macumba seria, então, a terra dos poetas do feitiço; os encantadores de corpos e palavras que podem fustigar e atazanar a razão intransigente e propor maneiras plurais de reexistência pela radicalidade do encanto, em meio às doenças geradas pela retidão castradora do mundo como experiência singular de morte”. Lindo, não?  


O livro recupera uma certa dimensão mágica da vida ao valorizar elementos que são tradicionalmente tratados como escória, isso por uma questão histórica e política. Refiro-me às culturas periféricas que por serem legadas pelo lado mais fraco (e, no entanto, fortes sempre foram) acabaram por ser completamente desvalorizadas. A cultura que imperou como dominante no Brasil foi a europeia-branca-ocidental, ficando à margem a dos negros e índios. Mas como o jogo ainda não terminou, não nos cabe falar em vencedores ou perdedores. Aos poucos, os que foram vencidos até agora vão se afirmando e conquistando o direito à voz que nunca lhes deveria ter sido tolhido.
A figura em torno da qual gira a filosofia-poética no livro de Rufino e Simas é Exu, o Senhor dos Caminhos, que é o Orixá que faz a ponte entre o céu e a terra, o Orum e o Aiê. Sua figura é controversa, complexa e ambivalente, difícil de ser compreendida, ainda mais do ponto de vista ocidental. Sua cultura se distribui pelo livro como uma forma alternativa de pensamento. Só lendo o livro para perceber sua riqueza. Reza a lenda que Exu é o Orixá que deve ser saudado antes dos outros. É mote para macumba, no primeiro artigo do ano, para que tudo comece bem. Feliz 2019 a todos! Saravá! 


 Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), no dia 25 de janeiro de 2019.

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