Dentre as
literaturas latino-americanas, aprecio consideravelmente a da Argentina, em
especial aquela produzida pelos contemporâneos. Para além de Jorge Luis Borges
e Júlio Cortázar - autores que dispensam comentários -, gosto muito de Alan
Pauls e Cesar Aira (já escrevi sobre eles neste Caiçara). São escritores muito
diferentes, no entanto bastante comprometidos com uma linguagem sofisticada e
enredos bem elaborados, bem como fieis a um projeto literário muito criativo e
singular. Gosto também de Martin Kohan, mas não tanto. Seus temas são bons,
porém suas narrativas e o trato com a linguagem (pelo menos dos livros que li) em
geral ficam devendo. Gosto é gosto, não se discute. Encantam-me as obras de Leónidas
Lamborghini, de seu irmão Osvaldo Lamborghini e de Rodolfo Fogwill, autores
ainda pouco conhecidos no Brasil. Aprecio o neobarroco Néstor Perlongher, que
chegou a morar no nosso país durante alguns anos. Tenho lido com muito
interesse os livros de Daniel Link, escritor que tive o prazer de conhecer e
reencontrar em alguns eventos literários no Brasil e na Argentina. Recentemente,
descobri a poesia de Ricardo Daniel Piña, poeta que tive também o prazer de
conhecer de uma maneira bem inusitada. Vou contar.
Certa vez,
passeando pela Calle Corrientes, no centro de Buenos Aires, parei para observar
jornais em um dos tradicionais “kioscos”, aquelas bancas de revista que estão
situadas no meio das calçadas em qualquer grande cidade. Em muitos “kioscos” de
Buenos Aires, podem ser encontrados exemplares das famosas cartoneras, livros
confeccionados de forma artesanal e com baixo custo por uma editora chamada
Eloísa Cartonera. Os livros possuem capa de papelão e este é comprado de uma
cooperativa de catadores (cartoneros), daí o nome da publicação. Curiosamente,
a aparente simplicidade da cartonera contrasta com a qualidade dos autores
editados por ela. A Eloísa seleciona muito bem os livros que edita, geralmente
escritos por grandes nomes da literatura argentina (alguns brasileiros já foram
editados por ela). Há um outro elemento curioso na confecção das cartoneras: a
reprodutibilidade mecânica dos textos (geralmente fotocopiados), de forma
bastante comum, contrasta com o caráter irreprodutível das capas, pintadas uma
a uma de forma artesanal e diferentes umas das outras, o que lhe dá um caráter
verdadeiramente artístico. Cada exemplar é único e irrepetível. O fenômeno das
cartoneras nasceu com a Eloísa num período de grave crise econômica da
Argentina, e se espalhou por toda a América Latina. No Brasil, já existem
muitas dessas editoras: a Dulcinéia Catadora, em São Paulo, a Katarina
Cartonera, em Florianópolis, a Severina Catadora, em Pernambuco, só para citar
algumas. Em 2013, aqui em União da Vitória, tive o prazer de criar, com acadêmicos
do curso de Letras da UNESPAR, a Therezinha Cartonera, cujo nome é inspirado na
querida amiga e poeta local, Therezinha Thiel Moreira. De lá para cá, pudemos
lançar algumas edições inéditas sempre promovendo a obra de autores locais. Os
livros eram distribuídos gratuitamente na cidade, em uma tentativa de promoção
do ato de ler. Quem sabe no futuro possam nascer outras edições. Mas voltemos
ao “kiosco” e a Ricardo Daniel Piña.
Depois de
escolher algumas cartoneras (cada uma custando um valor quase irrisório) em um
“kiosco” da Calle Corrientes - esquina com a Paraná -, dirigi-me ao dono da
banca para pagar. Qual a minha surpresa ao descobrir que o proprietário do
“kiosco” era poeta e, ainda mais, um dos autores editados pela Eloísa
Cartonera. Um dos livros artesanais que eu escolhera, “La Bicicleta”, tinha
sido escrito justamente por ele. Demos boas risadas e Piña ainda autografou o
livro para mim. Ele me falou de sua amizade com poetas brasileiros, alguns dos
quais sou fiel leitor. Perguntou-me de Douglas Diegues, Joselly Vianna Baptista
e Haroldo de Campos. Saí da banca imaginando qual seria a chance de encontrar
no caixa de uma livraria ou de uma banca de jornais e revistas o autor do livro
comprado. Coisas da Argentina. Se o leitor passar pela esquina da Corrientes
com Paraná, em Buenos Aires, leve a Ricardo o meu abraço.
Ricardo Daniel Piña
Outro fato que
me chamou a atenção em Buenos Aires foi a quantidade de livrarias na cidade,
bem como o interesse que os livreiros têm de falar sobre os livros que vendem
com um conhecimento particular de quem lê. Aí concluí que não se pode vender um
livro como se vende um sapato ou um guarda-chuva. É preciso amar minimamente
aquilo que se vende. O que se ama se vende melhor, o que se ama se dá para além
do vender. Vislumbrei com alegria muitas pessoas na rua com livros na mão e
fiquei surpreso ao ouvir, no congresso de literatura, vários jovens
pesquisadores falarem com entusiasmo e propriedade sobre a obra de Clarice
Lispector. Aí fiquei preocupado pensando se Clarice não estaria hoje sendo mais
lida por jovens argentinos do que brasileiros. Tomara que não. Tudo bem que uma
escritura como a de Clarice seja pós-nacionalista, para muito além da pátria -
Clarice é cósmica -, mas seria um desperdício perder para “los hermanos” neste
campo tão poético quanto o futebol.
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 08 de junho de 2019
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