terça-feira, 6 de outubro de 2020

Praça Alvir Riesemberg


 



Na Praça Alvir Riesemberg, o busto de Getúlio recebe flores, ano após ano, religiosamente, no fatídico 24 de agosto. No local, tudo envelhece menos o presidente, fundido em metal perene, e a célebre dúvida: foi assassinato ou suicídio? No começo de setembro, ainda é possível vislumbrar a homenagem posta ali por algum fiel correligionário do PDT. Mas dia após dia o buquê vai decompondo como a história do Brasil, contrastando com o monumento a simbolizar outra decadência, a de um país petrificado pela mão do homem e pelo olhar da Medusa. A estátua solitária faz lembrar o sujeito parado na esquina do Boulevard du Temple na foto de Daguerre. Em repouso, a personagem lustra os sapatos e tem por isso sua imagem gravada pelo daguerreótipo. Os que passam pela rua não são registrados na foto porque estão em movimento. O filósofo Giorgio Agamben enxergou nessa foto, e na fotografia em geral, a imagem adequada do Juízo Universal: “A multidão dos humanos – aliás, a humanidade inteira – está presente, mas não se vê, pois o juízo refere-se a uma só pessoa, a uma só vida: exatamente àquela, e não a outra”. Assim como o homem que lustra os sapatos e o busto do presidente, uma foto e um poema existem para serem vistos ou lidos, mas também para nos lerem ou verem lá de onde estiverem. No fim, não seremos nós as imagens deles? Dependendo da posição em que estou é a estátua que me olha. No Dia do Juízo, todos serão julgados: o homem que lustra os sapatos, o presidente, a mulher do presidente, o juiz, o ministro, as fotos, os poemas, nós mesmos, e os assassinos que num dos prédios defronte à praça esquartejaram o corpo de um homem que saiu da vida para entrar para a história. Como os crimes não são perfeitos, os rastros sempre aparecem com o tempo ou com luminol. Nas fotos, estátuas, textos e autos policiais, os finados estão sempre lá a nos perscrutarem da iníqua profundeza da morte, dispostos a contar o que de fato aconteceu. Mas a verdade nem sempre vem à tona porque os mortos não falam e o silêncio dá margem para muitas interpretações.

c.moreira

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória - PR (03/10-2020)

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