Deve acontecer com outros leitores também, comprar vez e outra um livro pela capa. Alguém deve ter descoberto em algum momento um grande autor, quase ao acaso, depois de adquirir uma obra e lê-la apenas porque a capa era bonita. Já me aconteceu algumas vezes. Foi assim com o romance “14” (2014, Ed. 34), de Jean Echenoz. Isso que não há nada de muito especial na capa. Apenas o fragmento de uma fotografia que se estende para a contracapa e para as orelhas. Nela, vemos um soldado sentado sobre uma calçada tendo a seu lado uma bicicleta, mas para vislumbrá-la é preciso abrir a orelha de trás. Pequenos detalhes quase passam despercebidos, um cantil e uma pequena panela de campanha. O homem, de vasto bigode, veste um capacete de ferro, daqueles da Primeira Grande Guerra, usa um uniforme azul, botas de cano alto, tem um curativo na mão direita e usa um anel no dedo mindinho. O livro informa que a imagem é um autocromo de Paul Castelnau, de abril de 1917. O título da foto: “Déjeuner de poilu: soldat en bleu horizon avec au fond une librairie endommagée place Royale”. Sim, vendo agora a legenda é que percebo no fundo da imagem a placa de uma livraria, provavelmente destruída em algum ataque de guerra. Na capa, temos apenas um close na personagem e o nome do autor e do livro em tamanho significativo. Capa trágica e bonita. Comprei o livro e li.
Jean Echenoz não é um
escritor muito conhecido no Brasil. “14” é uma das poucas edições de sua obra
publicadas por aqui. Certa vez, Enrique Vila-Matas escreveu que as novelas de
Echenoz são “grandes máquinas ativas”, “máquinas de prazer”. Diz ainda que sua
narração é uma espécie de “ave migratória”. Isso porque há um movimento
narrativo que produz constantemente uma troca de perspectivas, como se um
movimento de câmeras em seu ritmo cinematográfico regesse literariamente a sua
montagem. Por exemplo, em uma das cenas do livro: “O mosquito surge às treze
horas no céu perfeitamente azul de um fim de verão no Marne. Projetemo-nos rumo
a esse inseto: à medida que nos aproximamos, ele vai crescendo até se
transformar num pequeno avião biplano de dois lugares (...)”. Ele vai sofrer um ataque e vai se espatifar no chão. Estamos com os pilotos dentro da cabine. Eles vão morrer. Estamos dentro do filme. É uma cena e tanto.
Mas falemos brevemente do
“14”. Cinco homens vão à guerra, uma jovem grávida espera a volta de um deles
(ou dois). Não sabemos se eles voltarão vivos. Alguns morrem, outros voltam
feridos, gravemente aleijados ou cegos. Segundo Vila-Matas, “14” contém uma
breve, porém densa meditação “sobre o destino das gerações”. O livro faz esse
trágico inventário em apenas quinze capítulos, concisos, mas profundos. O
relato de um campo de operações na Primeira Guerra faz lembrar alguns dos
melhores filmes norte-americanos sobre o assunto. E o combate, no livro, vai se
apoderando de nós, como sugeriu Vila-Matas, a ponto de o leitor desejar fugir
do terror e “viajar a terras felizes”. Mas o que mais impressiona no enredo é
um conflito interior que percorre a vida das personagens e que é mais intuído no
momento de leitura do que explicitamente constatado. Os soldados são títeres de
um aparelho monstruoso de guerra e seus dramas acabam sendo silenciados por
bombas e morteiros. Há uma sutileza na construção das personagens – pouco
sabemos sobre elas - que faz do livro um misterioso relato sobre uma guerra
mais sutil que percorre a vida dos homens. Todos estamos sempre lutando com a
vida. Há um triângulo amoroso implícito que acompanha a trama, o amor de dois
irmãos pela mesma mulher. De quem será o filho dela? O triângulo nem sequer é
objetivamente apontado. São sutilezas de uma história cuja guerra transforma
seus destinos.
O leitor pode não gostar do livro de Echenoz, mas não sairá o mesmo depois da leitura. A construção de seu relato no teatro de operações impressiona pela crueza. Depois de um ataque inimigo a lembrar certas cenas de “Apocalypse Now”, de Coppola, ou de “Destacamento Blood”, de Spike Lee: “Os sobreviventes reergueram-se, mais ou menos constelados de fragmentos de carne militar, de farrapos sujos de terra que os ratos já tratavam de arrancar e disputar em meio aos destroços de corpos espalhados aqui e acolá – uma cabeça sem mandíbula inferior, uma mão com aliança, um pé sem bota, um olho”. Para Echenoz, a guerra é uma ópera sórdida e fétida. E em meio às bombas, na voz das personagens, reina o silêncio. Pouco falam as personagens. Como que a lembrar de Walter Benjamin, depois da Primeira Grande Guerra, escrevendo sobre a pobreza da experiência que nascia nos campos de batalha. Os homens estavam voltando da Guerra pobres em experiências, incapazes de contar o que viram. A literatura talvez nos ajude não só a imaginar o horror, a contá-lo, mas também a tencionar a pobreza da experiência, fazendo do relato uma máquina de prazer (inerente às tragédias bem escritas), mas também uma máquina de fazer pensar.
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em março de 2021
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