quarta-feira, 21 de abril de 2021

Moacir




Para o Vô Moacir,
Pela passagem
de seus 85 anos


Aquela história da índia tapuia que se casou com um português de sobrenome Moreira, contada pela minha árvore genealógica, teria sido fruto de amor ou de estupro? Desse caso ficou dois ou três porcento no registro de meu DNA, o que pude certificar com um eficiente teste de ancestralidade genética. Devo dizer agora que sou o carrasco e a vítima de minha própria história? Ou que pelo menos guardo em mim os vestígios de uma luta? Restou disso tudo um certo traço, um olhar guarani ou quem sabe pataxó, com um quê oblíquo e bonito no rosto de meu avô paterno, ou mesmo em seu gosto pelo mato, por subir em árvores, pela caça agora proibida, pela pesca, por passarinhos, ou mesmo por sumir de casa durante uns dias vez e outra quando inventa com os amigos um acampamento mesmo depois de ter completado mais de oitenta anos. Seu gosto por taxidermia parece sugerir um talento em preservar na selva urbana o mundo natural da floresta. Insisto no olhar de meu avô: nele há um ar de índio que se intensifica quando sorri e o olho vai de um jeito faceiro afinando quase num tom andino, ou oriental, o que à ciência serve para confirmar a teoria de que as tribos americanas são mesmo descendentes daqueles que viveram na China há mais de quarenta mil anos. É o mesmo tom que reconheço no olhar de meu pai e de minha filha mais nova, quando o rosto em Aurora se abre para a alegria, sugerindo assim lembrar o que ela, meu pai e meu avô não viveram - só os antepassados -, mas que vive neles, em nós, como uma lembrança perdida, mas reencontrada, uma voz sussurrando que tudo pervive além de tudo, como o vestígio fóssil de uma vida antiga sedimentada na terra, no gelo ou no âmbar. Penso nesse traço que sou deles e no dos outros que serão em mim. Que trago o passado um pouco comigo e que eu, meu pai e meu avô ficaremos um pouco em tudo, em todos os nossos, mesmo daqui a alguns séculos. É a certeza de que meu avô vive em mim, na minha filha, no meu pai e nos nossos ancestrais, assim como eles ou nós, com amor, vivemos nele. Só para deixar registrado, meu avô se chama Moacir. É o mesmo nome do filho de Iracema, romance de José de Alencar cujo título pode ser lido como um anagrama da palavra América. Filho de branco e de índia, da Europa e das Matas, da civilização indígena e da barbárie europeia, Moacir significa o "filho da dor". Meu avô, no entanto, em graça transforma o sofrimento quando cultiva seu quintal e lembra de que colher é uma forma feliz de viver e acertar as contas com tudo aquilo que plantamos.

Caio Ricardo Bona Moreira

(O poema integra a "Quinta Maldita", n. 95, idealizada por Demétrio Panarotto, indo ao ar no dia 15 de Abril de 2021, no canal do youtube https://www.youtube.com/watch?v=GNpK1Ll_lLs&t=789s )

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