Para o Vô Moacir,
Pela passagem
de seus 85 anos
Aquela história da índia tapuia que se casou com um português de
sobrenome Moreira, contada pela minha árvore genealógica, teria sido fruto de
amor ou de estupro? Desse caso ficou dois ou três porcento no registro de meu
DNA, o que pude certificar com um eficiente teste de ancestralidade genética.
Devo dizer agora que sou o carrasco e a vítima de minha própria história? Ou
que pelo menos guardo em mim os vestígios de uma luta? Restou disso tudo um
certo traço, um olhar guarani ou quem sabe pataxó, com um quê oblíquo e bonito
no rosto de meu avô paterno, ou mesmo em seu gosto pelo mato, por subir em
árvores, pela caça agora proibida, pela pesca, por passarinhos, ou mesmo por
sumir de casa durante uns dias vez e outra quando inventa com os amigos um
acampamento mesmo depois de ter completado mais de oitenta anos. Seu gosto por
taxidermia parece sugerir um talento em preservar na selva urbana o mundo
natural da floresta. Insisto no olhar de meu avô: nele há um ar de índio que se
intensifica quando sorri e o olho vai de um jeito faceiro afinando quase num
tom andino, ou oriental, o que à ciência serve para confirmar a teoria de que
as tribos americanas são mesmo descendentes daqueles que viveram na China há
mais de quarenta mil anos. É o mesmo tom que reconheço no olhar de meu pai e de
minha filha mais nova, quando o rosto em Aurora se abre para a alegria,
sugerindo assim lembrar o que ela, meu pai e meu avô não viveram - só os
antepassados -, mas que vive neles, em nós, como uma lembrança perdida, mas
reencontrada, uma voz sussurrando que tudo pervive além de tudo, como o
vestígio fóssil de uma vida antiga sedimentada na terra, no gelo ou no âmbar.
Penso nesse traço que sou deles e no dos outros que serão em mim. Que trago o
passado um pouco comigo e que eu, meu pai e meu avô ficaremos um pouco em tudo,
em todos os nossos, mesmo daqui a alguns séculos. É a certeza de que meu avô
vive em mim, na minha filha, no meu pai e nos nossos ancestrais, assim como
eles ou nós, com amor, vivemos nele. Só para deixar registrado, meu avô se
chama Moacir. É o mesmo nome do filho de Iracema, romance de José de Alencar
cujo título pode ser lido como um anagrama da palavra América. Filho de branco
e de índia, da Europa e das Matas, da civilização indígena e da barbárie
europeia, Moacir significa o "filho da dor". Meu avô, no entanto, em
graça transforma o sofrimento quando cultiva seu quintal e lembra de que colher
é uma forma feliz de viver e acertar as contas com tudo aquilo que plantamos.
Caio Ricardo Bona Moreira
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