quinta-feira, 6 de maio de 2021

Cinco canções pra afastar a peste

  

Os filósofos gregos já nos falavam dos poderes medicinais da música. Em muitas culturas ameríndias, xamãs cantam para espantar maus espíritos, curando doentes e afastando a morte. Em um de seus namoros com a medicina, Mário de Andrade escreveu que Tamísides aconselhava a música contra pestes e as feridas. Demócrates, em especial, utilizava a flauta para curar pestes. Nas matrizes religiosas afro-brasileiras, canta-se para chamar os deuses. Sugiro que ouçamos e cantemos juntos, caros leitores, as cinco canções abaixo, para chamar os santos e espantar a pandemia que já ceifou só no Brasil mais de 400 mil vidas...   

 


Tempo de Amor - O encontro de Baden e Vinícius, do violão e da voz, da potência de Powell e da pena do poeta. Aquele encontro religioso e musical de dois bruxos na encruza do afro-samba. Pra quem faz de seu instrumento um berimbau, não há mandinga que não possa ser dedilhada e cifrada nos acordes de uma canção. E assim o som vai quebrando todos os quebrantos. "Tempo de amor" é tempo de dor, ensina a faixa de um dos discos mais emblemáticos da MPB. Sofrer e amar, para Vinícius, são sinônimos inalienáveis. São coisas do coração. Na versão dessa música, registrada por Pierre Barouh, no Filme Saravah, Baden fuma e dedilha alucinadamente ao mesmo tempo, como se tocando em estado de transe. Chamo a atenção para essa cena. Em Afro-sambas, dá-se o encontro do Brasil com a África por meio de um oceano chamado música. São águas profundas. Saravá, Baden e Vinícius!

 


Por uma cabeza - Uma volta por Chacarita, seguindo os rastros do cantor, ou en la Boca, bairro boêmio de compadritos, nos arredores de Buenos Aires, ou mirar um velho casal milonogueiro na feira de San Telmo, ou ouvir o bandoneón convidando a cantar Por una Cabeza, na confeitaria Tortoni, talvez nos bailes domingueiros de La Ideal, depois uma pizza en el Cuartito, ao som de Gardel e seus bons ares em todos os cantos da cidade. Chorar todos os mortos ilustres na Recoleta ou espairecer en la Plaza San Martin, depois no Parque Lezama, depois mirar Lola Mora, en la Fuente de las Nereidas, lendo ao mesmo tempo um poema de Douglas Diegues. Tudo além da fronteira. Quem sabe trocar uma canção por essa cidade, ou uma cidade por essa canção. Salve a malandragem porteña! E a música segue tocando.

 


Sinhá – Sinhá, de Chico Buarque e João Bosco, é uma canção que conta a história do Brasil. O primeiro narrador é um negro da senzala que é acusado de ter espiado uma dona branca que estava se banhando no açude. Ele se defende inutilmente e é torturado pelo senhor no pelourinho. Depois de uma alteração tonal (signo de uma mudança temporal no enredo da música), surge um segundo narrador que se diz herdeiro tanto do escravo quanto do senhor de engenho, ou seja, estamos diante de um narrador mestiço, que é o próprio brasileiro. O próprio Chico? Ressignifica-se a primeira parte da canção. Se o segundo narrador é herdeiro da casa grande e da senzala, isso significa que provavelmente o escravo tenha, no açude, enfeitiçado a sinhá. Somos, no Brasil, todos filhos desse idílio, isso sem contar o recorrente estupro sofrido pelas negras e índias, e tantas outras violências que geraram o que chamamos hoje de país. Brasil: Ame-o ou deixe-o!? Como em um poema de Drummond, o leite ao misturar-se com o sangue, formou o terceiro tom a que chamamos aurora. A imagem pode ser bela, mas não deixa de ser trágica.

 


Kosmic Blues - A voz de Janis Joplin vem do Éden (que fica próximo ao rio Mississippi), dá pra perceber ao ouvirmos Kosmic Blues. Perfumada de patchouli, abraça o espaço, depois o rasga e encanta. É alada e azul como o blues, mas ferve avermelhando o vazio da imensidão. Faz os seus feitiços para não ficar sozinha, mas, como sua dona, sofre astuta e angustiada sempre com a solidão. Anda de mãos dadas com o céu e nele tenta se agarrar para não cair. Nem Jimi nem Hendrix sabem de seu sal a queimar a pele em meio a algumas lágrimas que chovem ácidas e com atropelo pelo branco de seu lindo rosto.

 


Aquarela Brasileira - Meu Brasil é o Brasil de Leci Brandão, de José Datrino, vulgo Gentileza, de A.B. do Rosário, de Pixinguinha e Noel, Milton Santos, tia Ciata, Cruz e Sousa, João Maria, dos Sertanejos de Taquaruçu. Meu Brasil é o dos pobres e miseráveis, de Santa Cruz do Piauí, onde conheci o forró e a cajuína, do pinhão do Paraná, de Riobaldo e Diadorim. Meu Brasil é o profundo, de Tom Jobim, Villa-Lobos e Pedro Archanjo, do fandango, do pandeiro, da embolada, da vanera e catimbó! Dos novos baianos e dos velhos marinheiros. De Estamira e de João Lopes, bicho do Paraná. Meu Brasil é o que amo. Das novenas e benzeduras, com arruda ou cera quente, da dona Josefa lá no bairro São Cristóvão. Do Saci e Antônio Conselheiro, do Sururu ou Vatapá, dos encantados, Jamelão e Carcará. Na minha reza de amém-jesus-maria-e-josé, contra quebrantos e inveja, sou mangueira e portela, menino da porteira, a Deus dará... O Brasil do meu amor, terra de nosso Senhor. Não me venham, generais, com a história de indolência negra ou indígena, que, como Vinícius, sou o branco mais preto dessas cercanias... quem é homem de bem não trai o amor que lhe quer!


Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), no dia 06 de maio de 2021


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