Em
1999, Leónidas Lamborghini, um dos mais curiosos poetas argentinos contemporâneos,
lançou o livro "El jardín de los poetas" (Editora Adriana Hidalgo),
inspirado no tríptico de Bosch, "O Jardim das Delícias", pintado no início do século XVI. Vinte anos depois do livro e mais
de quinhentos depois da pintura, os dois jardins continuam vivos.
No
quadro, o pintor retratou o jardim das delícias terrenas ao lado do paraíso e
do inferno. A cena é bem conhecida. Personagens interagem de forma luxuriosa,
divididas entre o bem e o mal numa vida de pecados, embora aparentemente
desinibidas e sem sentimento de culpa. Mas há uma cena que me chama a atenção.
Ela é menos conhecida, mas não menos importante. É a imagem do tríptico fechado,
que representa o mundo no terceiro dia da criação. Roland Barthes chegou a
enxergar nessa imagem uma figuração do neutro, (in)definindo-o com as
expressões "rebento", "ovo ainda não eclodido", ou seja,
antes do sentido.
Três
cenas: A imagem daquilo que ainda está se fazendo, o mundo rebento, tal como se
nos apresenta no terceiro dia da criação, e o ovo ainda não eclodido. Três
configurações semelhantes em sua dissemelhança.
No
prefácio, Lamborghini observou que o livro foi escrito durante um exílio no
México, entre 1977 e 1990. Ele nos informa que o que está em jogo neste jardim
é a Humanidade de poetas. Poetas que são como heróis, ou melhor, anti-heróis,
da épica de um só terrível e cômico desejo: “escrever o poema”.
Trocando muitas vezes a vida pelo êxtase, ou antes, buscando na vida uma experiência de êxtase por meio da palavra, os poetas são esses arúspices que veem nas vísceras do texto o sangue da vida, ou que veem nas vísceras da vida o sêmen do texto. A poesia é este jardim de delícias margeado pelo inferno ou pelo paraíso: “loucura, absurdo, perda de tempo ou, simplesmente, vaidade. E a busca da beleza?”
Anárquica por natureza, a
política da poesia é sua despolítica. E antes mesmo do poeta ser contra o
Estado, o Estado foi contra o poeta. Platão chegou e foi logo banindo o tal:
“Se algum homem assim”, diz ele”, “vier até nós para nos mostrar sua arte, nós
nos ajoelharemos diante dele como um ser raro, santo, maravilhoso: mas não
permitiremos que fique. Nós devemos ungi-lo com mirra, colocar uma guirlanda de
lã sobre sua cabeça, e mandá-lo embora para outra cidade”.
Quem escreve ou se entrega profundamente aos prazeres da poesia sabe a dor e a delícia de fazer o que faz. Lamborghini afirmou também no prefácio que ao longo do processo de criação - e é justamente o processo de criação do livro que me chamou a atenção - buscou para a obra um "padrão de escritura" que teve como horizonte inconfessável o que de inconfessável tem a própria arte: o desejo de fazer tudo com nada. O processo que o moveu, parece-me, foi o de buscar a Forma. E se o livro é a materialização dessa busca, isso significa que seu resultado não nos apresenta mais do que um rebento, um ovo ainda não eclodido, o mundo no terceiro dia da criação, ou seja, um tríptico, ou um neutro - note-se na capa do livro a reprodução da pintura de Bosch. Para escrever, o poeta teve que visitar o fogo do purgatório: "Experimentei, nesse momento – paradoxalmente – uma inesperada felicidade: a de ter encontrado nesse mundo, um lugar, este Jardim, esse local para ficar e permanecer: em suma, no meu tempo, uma casa do meu jeito onde o riso e o horror intercambiam e confundem, reciprocamente suas máscaras”.
Dividido
em três partes, como o tríptico de Bosch, "El Jardín de los poetas"
apresenta um "Poetario de la espera" (como aquela do mundo no
terceiro dia de criação), um "Poetario de los sueños" (como aquele
que subjaz no universo do próprio Bosch) e um "Poetario de las
metamorfosis" (como aquelas metamorfoses operadas entre plantas e animais
no Jardim das Delícias). Muitas outras relações entre a pintura de Bosch e o
poema de Lamborghini poderiam ser imaginadas. Contento-me apenas em apontar
para o fato de que o poeta produz um jogo de escritura como quem estabelece
conexões inusitadas e combinações curiosas entre um determinado conjunto de
versos, repetindo com diferença imagens poéticas, ou melhor dispondo versos em
recorrência em outras sequências, propiciando efeitos de sentido e de sons no
mínimo curiosos.
No
livro, Lamborghini passa o tempo apresentando inúmeras ações realizadas pelos
poetas, ações que dizem respeito à espera e ao sonho na maior parte das vezes,
como: “Poetas soñando su poema / antes de revelar una foto” ou “Poetas soñando
su poema después de secarse la cara”, ou “Poetas soñando su poema / mientras
arreglan un lavarropas”.
Essa
experiência gerada entre som e sentido talvez possa ser chamada de hesitação -
ou excitação, sensorialidade, ou sensualidade que nos leva novamente ao Jardim
de Bosch. Esse procedimento, tão caro a Lamborghini me fez lembrar outros
livros dele como "El riseñor", que gosto bastante, e "Siguiendo
el Conejo" (uma releitura curiosíssima de Lewis Carroll). Repetir com
diferença faz parte do jogo paródico de Leónidas Lamborghini.
Neste
Jardim, podemos descobrir o que esperam os poetas inspirados pela musa, ou o
que fazem os poetas enquanto esperam a inspiração da musa, ou o que sonham os
poetas inspirados pela musa, ou o que fazem os poetas enquanto estão inspirados
pela musa, ou no que se transformam os poetas enquanto esperam a inspiração da
musa, ou o que fazem os poetas enquanto se transformam em poetas inspirados
pela musa, ou o que esperam os poetas enquanto sonham, ou em que sonham os
poetas enquanto esperam a inspiração da musa, e por aí vai...
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