sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Fortuna Crítica


O professor Everton Grein escreveu uma bela apreciação dos meus livros Fábrica de Flores, Papele e Oriki Daqui. Ele apresentou este texto na noite de lançamento das obras, no Espaço Cultural da Estação Ferroviária de União da Vitória, numa noite de dezembro de 2019. Transcrevo aqui o texto pela beleza e agudeza da leitura. 


Senhoras e Senhores,

Boa noite.

Sr. Caio Moreira.

 

Gostaria de endereçar essas breves considerações para um terreno mais pessoal, enfatizando os laços de amizade que nos unem. Importa destacar, em vossa biografia, os vigorosos princípios éticos que a norteiam, e a correlata manifestação de tais valores que transcendem não somente vossa produção literária, mas diria, sobretudo, seu completo e competente trabalho. 

Numa célebre definição sobre o espanto Ferreira Gullar disse “a súbita constatação de que o mundo não está explicado e, por isso, a cada momento nos põe diante de seu invencível mistério. Tentar expressá-lo é a pretensão do poeta”.

Assim não é sem espanto, também, e ao mesmo tempo, tomado por uma grande honra que aceitei seu convite e o desafio de apresentar brevemente os textos de sua lavra. De antemão, digo-vos, uma proposta inovadora abraçada pela Editora Medusa com todo cuidado e delicadeza aos textos que lhes são meritórios. Nomeadamente ORIKI-DAQUI, FÁBRICA DE FLORES E PAPELE.

Caio ORIKI, que em língua yorùbá pode ser traduzido de várias maneiras, sendo as mais recorrentes: texto ou literatura; mas também pode ser usada como nome e sobrenome: oruko-oriki (oruko = nome da pessoa / oriki = diz quem a pessoa é). Ainda os Oríkì (do yorùbá, orí = cabeça, kì = saudar) são versos, frases ou poemas que são formados para saudar o orixá referindo-se a sua origem, suas qualidades e sua ancestralidade. Os Oríkì são compostos para mostrar grandes feitos realizados pelo orixá. Por outras palavras são também formas de reverência aos Orixás.

Em ORIKI-DAQUI na medida em que me entregava ao deleite de sua leitura, a percepção da textualidade sagrada africana personificava cada vez mais os espíritos ancestrais. Como que num grito vindo do fundo da floresta, embalado pelo ritmo do afoxé, cuja sincronia só poderia ser quebrada pelo intermitente repicar do agogô. Em suas linhas mais profundas, Caio, nos conduzia não somente ao ato de ler, mas também a introspecção da oração, cujas formas variadas da expressividade poética impressa pelo seu texto mais que poesia deixavam entrever o poeta.

A justeza do espírito poético de Caio Moreira em Oriki-Daqui parece elevar-se de forma apoteótica na defesa das culturas de axé, desenhando de maneira sublime ao mesmo tempo uma profunda e contemplativa religiosidade, ladeada por uma fúria combativa na firmação das identidades negro-africanas. Seu discurso poético representado nessa dupla perspectiva pode parecer aos olhos mais desatentos, absolutamente contraditórios, mas é justamente aqui que reside seu argumento: a tessitura dos elementos religiosos marcadamente distintivos das identidades africanas não são de modo algum contraditórios, pelo contrário, são esses mesmos elementos que forjam nossa natural e indiscutível herança.

Caio lembra-nos de forma incisiva os pontos que cirzem nossos caminhos, que nos tornam ao mesmo tempo diferentes e iguais uns aos outros. Talvez aqui, salvo uma leitura equivocada, esteja a pedra fundamental de sua poética: Oriki fostes fiel ao título, demonstrando aquilo que és, respeitando a ancestralidade de seu passado e a vigorosidade de seu presente. Exu, Santo Antônio, Nanã, Preto Velho, Oxum, Iemanjá, Ogum, Oxóssi, Oxalá, Xangô, Iansã, Euá, Ibejis, Iroco, Ossain, a todos, SARAVÁ!

Já em FÁBRICA DE FLORES, de sua poética, Caio, tomo por empréstimo dois elementos: a percepção e a sensibilidade. Com as flores buscou a ruptura com a fria e indiferente resistência da técnica. O ato de escrever tornou-se, para além da técnica, um ato espontâneo, que encontrou na natureza nua e clara das formas alvas das flores o significado mais sublime. Da percepção, eu leitor, tornara-me uma gota de orvalho, correndo despreocupadamente de flor em flor, sentindo suas formas, seus gostos, seus cheiros.

A flor símbolo da natureza tornou-se também significado.

Eu-leitor percorri cada uma delas. Percebi suas cores, seus aromas. A sensibilidade Talvez fosse eu mesmo enquanto gota de orvalho. Ao final do meu caminho caí nas pequenas mãos do menino.

Vi o menino sentado com uma flor na mão, declamando seu poema. Esse menino dedica o poema às flores e a todos os meninos que tiveram que engolir o choro e se fazer fortes mesmo sendo frágeis. O menino Caio tem alma de flor.

Em PAPELE o manifesto ato da observação. Conhecer só no observar. Sentir sem precisar invadir. Reconhecer sem precisar olhar. Ouvir sem precisar falar.

Em seu texto Caio exige do leitor uma postura de observador. O leitor torna-se o poeta cego. Um aedo diriam os gregos. A lembrança é "poética" - é o artista que cria o exemplo e modelo das ações e personagens, sob a inspiração das musas. As musas contam ao poeta, o que foi, é e será. O poeta prefere não "ter visto", mas "ter ouvido" diretamente das musas, que tudo vêm.

Caio tens tua musa. Sois vós o poeta. Ela te fala com seus olhos, te inspira com seus gestos. Ela também é poema, sem sê-lo em poesia, mas em eterna inspiração. És musa como a que cantou Caetano: ah Bruta-flor! Onde queres o ato, seu poeta é o espírito.

Papele mais que um misto de sentimentos, é um misto de sentidos, aguçados pelo ato de observar.

Papele nos priva da visão, e ficamos a espera da musa que nos conte sobre os caminhos a serem percorridos com sua poesia.

Papele nos priva da audição. Não podendo ouvi-la obriga-nos a observar. O poeta observa a musa e traduz dela seus gestos mais poéticos.

Papele nos priva do olfato. Não podemos sentir seu cheiro como nas flores. Apenas observar suas formas, como disse Valéry, e imaginar o que esperamos ver.

Papele nos priva do paladar. Não sentimos seu gosto. Imaginamos sê-lo por suas formas.

Papele no priva do tato. Não podemos tocar. Não somos aqueles que tocam. Somos tocados.

Enfim, Papele, poema que mora no corpo.

Penso, por fim, que de maneira bastante modesta cumpri o destino que me colocou. Caio, não tenho a autoridade de um poeta. Para encerrar dirijo-me a você com as palavras de outro poeta que sei, gostas muito: Manoel de Barros. Celebrando sua inventividade disse Manoel:

“Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc. etc. etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios”.

De um poeta a outro poeta.

Obrigado pelo privilégio.

Ass: Everton Grein



































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