Como num poema de
Ricardo Reis, a vida tem sua cova a nos lembrar que somos todos “cadáveres
adiados que procriam”, ou ainda, esqueletos que perambulam ou dançam à procura
de algum sentido. Em “Nada Fica”, Fernando Pessoa, na voz do mais clássico e
epicurista de seus heterônimos, reflete sobre a fugacidade da vida, concluindo
com o seguinte verso: “Somos contos contando contos, nada”. A frase, penso,
pode nos ajudar a entender as narrativas que compõe o livro “Esqueletos que
Dançam” (Arte e Letra, 2020), de Thiago Tizzot. Tomemos a palavra ao pé da
letra. Somos contos porque temos nossas histórias, histórias que não nos elevam
à categoria de seres superiores, mas que, pelo contrário, revelam a fragilidade com a qual é revestida nossa vida. No entanto, contar um bom conto sobre seres banais
pode ser uma forma de revelar o quanto de especial pode residir no trivial.
Álvaro de Campos, em “Tabacaria”, não muito distante de Reis, escreveu: “Não
sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada”. Mas como o comum
pode ser radiante, o poeta conclui a estrofe engrandecendo sua própria
pequenez: “À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.
As personagens do
livro de Tizzot são pessoas simples, mas que possuem uma rica existência
revelada pela hábil escrita deste que é também autor de literatura de fantasia e editor da Arte & Letra, uma
editora curitibana que se destaca no cenário nacional pela qualidade de suas
produções e pela forma artesanal de suas edições. Na obra em
questão, podemos encontrar o sujeito que deseja ser promovido no trabalho, o
ex-detento que confessa ter sobrevivido a uma prisão injusta graças às palavras
cruzadas que resolvia no cárcere, o escritor que é devorado por uma traça
gigante (seria a própria memória?) na garagem de sua casa, o homem que ao se
deparar com a igreja que já foi um cinema, reencontra proustianamente o próprio
passado, alguém que desconfiando da morte iminente decide não abrir o envelope
que traz o resultado dos seus exames médicos.
Os textos, muito
bem lapidados, fazem lembrar da forma como Cortázar tratou o gênero conto. O
argentino observava que nele é fundamental uma “máxima economia de meios”. É o
que lhe dá intensidade. As histórias trazem sempre o essencial, não se podendo
retirar delas o menor fragmento sem fazer com que os contos percam uma boa dose de sentido. Tizzot
desenvolve com presteza aquela capacidade apontada pelo autor de “Rayuela”, que
é a de recortar um fragmento da realidade, fixando-lhe determinados limites,
mas de tal modo que esse recorte “atue como uma explosão que abra de par em par
uma realidade muito mais ampla (...)”. Por exemplo, no bem orquestrado “A vida
é assim”, o autor de “Esqueletos que dançam” apresenta uma série de personagens
cujas ações vão preenchendo o vazio da vida no intervalo entre o nascer e o
morrer. São pequenas histórias de pessoas anônimas que vão se desdobrando uma
na outra e mostrando que viver é assim. São cenas aparentemente banais, mas que,
além de distraírem, nos lançam a uma reflexão sobre a vida.
Outro conto me
chama muito a atenção pelo mote e arquitetura. É o “União da Vitória”, no qual
o protagonista sonha com uma promoção no trabalho enquanto ouve a misteriosa
fala de um sujeito que aparece repentinamente na trama, dizendo-lhe que conhece
alguém na cidade de União da Vitória que poderá resolver seu problema. Até que
um assassinato acontece. E novamente, a morte aparece no livro como um elemento
(des)norteador.
O livro chama a
atenção para a literatura entendida como jogo, reforçando essa ideia tantas
vezes discutida pela crítica. Aqui, a lógica é semelhante à das palavras
cruzadas, nas quais cada parte tem um papel a cumprir no todo, sendo impossível
retirá-la do puzzle sem lhe prejudicar o conjunto. Tal experiência forma uma espécie
de esqueleto cuja montagem possui níveis variados de dificuldade. Quanto mais o
jogador preencher seus espaços com imaginação e curiosidade, mais sentido tem a
brincadeira. No entanto, o que muitas vezes move ou alimenta a vontade de
continuar jogando é a incapacidade de solucionar certos problemas. O enigma da
arte estimula um pacto de cumplicidade que é também a isca que captura um
leitor. Não sabemos quem é o assassino. Não sabemos por qual crime não cometido
um sujeito foi condenado.
No livro de Tizzot, várias das personagens evocam as palavras cruzadas. Um detento desiste do suicídio e tem a sua vida salva por este passatempo, um criador do jogo é misteriosamente assassinado, outro aparece marcando um encontro com uma mulher que não consegue resolver seus desafios no jornal. O autor tece a trama como quem monta um lego, o que confere à sua escrita a dita experiência do jogo. O leitor atento sempre ganha no final. Diante das narrativas dinâmicas de “Esqueletos que dançam” temos a estranha e fictícia impressão de que certos personagens de determinados contos reaparecem em outros da mesma obra. O livro é esse esqueleto montado, assim como as frases são peças de um quebra-cabeça, ou lego, que tão logo construído se põe a dançar.
Caio Ricardo Bona Moreira
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