Caio Ricardo Bona Moreira
A literatura é mesmo uma máquina de costurar. Um
livro, consequentemente, o objeto de sua tessitura. Na colcha de seus retalhos
imperam sempre os restos de outras peças, ou pedaços de variados tecidos não
cerzidos até então. O cinema também guarda na sua essência essa vocação para o
corte e para a costura. Foi justamente nesse quesito que o filósofo Giorgio
Agamben demarcou a relação entre a poesia e a arte cinematográfica. Aprendemos
com o filósofo italiano, em seu ensaio sobre Guy Debord, que o homem é um
animal que vai ao cinema - e por que não dizer à literatura? - porque como
nenhum outro ele se interessa pelas imagens mesmo depois de reconhecê-las como
tal.
Pensando não apenas em Guy Debord, mas também em
História(s) do Cinema, de Godard, Agamben observa que o princípio constitutivo
do cinema é a montagem, pautada pelos procedimentos de repetição e paragem,
fundamentais para a construção de sentidos de suas cenas. Como na poesia, a sua
força dependerá principalmente da capacidade do artista em manejar cesuras e
encadeamentos, como um alfaiate cerze o linho, a seda ou o algodão. A mesa de
trabalho, tanto para cineastas quanto para escritores, nesse sentido, se
caracteriza de fato como uma ilha de edição ou um ateliê de confecção. Essas
são ideias que me chegaram durante a leitura da reunião de contos "Quem
costura quando Mirna costura", de Fabiano Vianna. Trata-se de seu primeiro
livro, lançado em 2021, pela Arte & Letra. O escritor, no entanto, há uns
bons anos já vem publicando em jornais e revistas os seus contos.
Penso que o primogênito livro de Fabiano (recentemente, ele lançou a coletânea de contos "A inesperada gravidez da casa de lambrequim", também pela Arte e Letra) deveria ser incluído em uma série imaginária que poderíamos chamar de "Obras de sobrevivência", a saber, aquelas que parecem ser tocadas direta ou indiretamente pela experiência da pandemia. As publicações que integram esse conjunto, além de serem fruto de um contexto histórico bem específico, formam uma textualidade que imagino ter ajudado seus agentes, escritores e leitores, a atravessar os dias e as noites da peste com menos tristeza e um pouco mais de prazer e alegria. Sem tais elementos, inclusive, a leitura não passaria de exercício monótono. O livro de Fabiano é um desses trabalhos emblemáticos que consegue fazer experiência em um mundo destroçado pela crise pandêmica. Escrever ou ler suas páginas é uma forma de lidar com a crise, bem como um jeito de matar a saudade da rua, da cidade e das pessoas. Sob essa perspectiva, a literatura pode ser encarada como uma máquina capaz também de transformar a solidão em felicidade, ou de manter a tristeza à distância, ou ainda de adiar a morte. Não tem sido assim desde tempos imemoriais? Sherazade tecia histórias para não morrer, assim como Penélope tricotava produzindo um adiamento perpétuo de seu próprio luto. Em boa parte dos contos de Fabiano, assistimos ao encontro inusitado entre vivos e mortos.
Poderia falar aqui da potência pictórica da sua literatura, atravessada por sua atividade como ilustrador, aspecto já apontado por Jonatan Silva, que por sinal caracterizou o autor como um "cronista do invisível", do irreal, "daquilo que está nas ruas, nos terreiros e nas lembranças de várias gerações". A dimensão espiritualista embutida aí parece aguçar os sentidos do artista, numa vocação quase rimbaudiana para a vidência, assim como a dimensão de cronista da cidade, à la João do Rio, parece estar presente tanto em seus sketches urbanos quanto em seus contos, assim como a presença da memória de uma Curitiba retrô tende a alimentar também a sua mesa de edição. Aliás, para Waly Salomão, a memória é por si só uma ilha de edição.
No livro de Fabiano, o saudosista encontra o autor inventivo, assim como numa mesa de montagem o cineasta encontra o poeta. O livro é sobre tudo isso misturado e também sobre gestos que só podem ser capturados com eficiência no ato de leitura. É quando sua escritura escapa do comentário se instalando em um espaço que transcende a própria razão, e a tudo aquilo que se liga a ela, diga-se de passagem, a interpretação, a crítica, a caracterização de seus gêneros etc. É quando também o escritor faz suas mandingas para seduzir o leitor afinal de contas, como no universo popular, costurar é uma forma mágica de curar uma rasgadura por meio de benzimento.
Estamos diante de um livro que
correlaciona as dimensões do visível e do invisível em seu sentido sobrenatural
- muitas personagens que figuram nos contos são tanto emblemáticas como fantasmáticas
-, bem como em seu sentido rememorativo, já que sua narrativa, em especial a do
texto "Ana e o Espelho" (um dos mais bonitos do volume), produz
imagens dialéticas nas quais passado e presente se interpenetram sem cessar.
Nesse conto, uma jovem, enfadada pelo isolamento, volta no tempo depois de
entrar em um espelho da família, indo parar em uma Curitiba de décadas atrás.
Há uma série de imagens recorrentes no livro que
apontam para a literatura entendida como uma máquina não apenas de produzir
imagens, tal como em Bioy Casares, mas também de salvar o mundo - entenda-se
aqui o mundo dos narradores. Uma máquina capaz de costurar os retalhos de um
presente dominado pelo medo da morte e da destruição. Certos signos vão
apontando para essa perspectiva ao longo de sua escrita, como, por exemplo, na
aparição de um crânio, que "segura a porta para não bater com o
vento" ou de um assoalho carcomido, ou de algum mofo numa roupa ou numa
determinada parede.
A pandemia inclusive chega a aparecer de forma praticamente
explícita em alguns textos que compõe a obra. O sentimento dessa decadência tem
valor sintomático (basta lembrar das revistas Lama e Lodo, editadas por
Fabiano, com uma pegada pulp).
O escritor tece a si mesmo como uma espécie de colecionador (sem saber o porquê sinto aqui a presença de Arthur Bispo do Rosário e seus mantos costurados). Isso porque o livro é um lugar capaz de ficticiamente armazenar o que está aqui do lado de fora. Ali, no texto, quem escreve guarda pedaços do mundo, em várias caixas que vão aparecendo ao longo dos contos. A máquina de costura encontra correspondência em outra imagem recorrente no livro, a do taxidermista, que pode ser lida como símbolo do autor compreendido como ente capaz de embalsamar e consequentemente preservar na obra os restos do mundo. Ao lado de signos da decomposição, figura o formol. O espelho, outra imagem recorrente nas histórias, sinaliza não apenas para a presença do duplo, facilmente encontrada na literatura latino-americana, mas também de uma máquina do tempo. Entrar no espelho é aqui uma forma de proliferar não apenas imagens, mas também lembranças, tudo margeado pelo filtro do enigma.
Na Curitiba de Vianna, desfilam as balas Zequinha, a figura do
lambe-lambe, o dirigível a lembrar uma baleia ou vice-versa, os antigos
estabelecimentos e suas paisagens, o Rio Juvevê, o Cine Avenida, a Casa Roskamp
etc.
A escrita de certos autores familiares a Fabiano ecoa
nas narrativas curitibanas do livro. Valêncio Xavier, Manoel Carlos Karam e
Dalton Trevisan parecem conversar com Cortázar, García Márquez e Italo Calvino
nos jardins do Passeio Público ou nos bancos da Praça Osório e suas calçadas
petit-pavé. No livro, a tradição visual de um Poty pervive não apenas nas
ilustrações realizadas pelo próprio Vianna, mas também nos curiosos Potypos,
esses estranhos gigantes que outrora habitaram a cidade. Tais personagens,
assim como certos autômatos, bonecas e fantasmas dão a dimensão criativa de seu
nonsense.
A prosa de Fabiano, abolindo os limites entre a vida e a morte (invertendo as polaridades da existência, o que nos leva a concluir, por vezes, que os mortos somos nós, como no pequeno conto "Os intrusos"), ressignifica a ideia da literatura como uma forma não apenas de enganar a morte, mas também de congelar (conservar) a vida, sem privá-la necessariamente de seu inerente movimento. Nesse sentido, sua costura devolve vida a uma imagem bastante presente no imaginário da literatura curitibana, a do Frankenstein, como um dia Valêncio Xavier já foi tratado. Tal monstro costurado há de estar passeando, feito um vampiro, pelas ruas noturnas dessa cidade, até porque, todos sabemos, os mortos não morrem mais. Nos tempos recentes de uma crise sanitária, o livro parece dar vida àquilo que julgávamos há muito extinto, assim como problematizar o nosso tempo como um lugar também de morte, creditando à literatura o poder de driblar os fantasmas de nosso presente.
Em
"Quem costura quando Mirna costura", quem cura é o pajé que chega de
helicóptero no hospital para ministrar suas ervas ao convalescente. Nessa cena,
para além do absurdo, a literatura de Fabiano parece se revestir dos sentidos
mais profundos de cura. E sobrevivemos graças também às suas histórias.
Texto publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória, no dia 30 de outubro de 2023.
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