terça-feira, 16 de março de 2010

Nunca mais seremos os mesmos

Photo By Patrícia del Rey

Um tango para ler ouvindo o livro... ou melhor, um livro para ler ouvindo um tango. Daniel Galera passou uma temporada em Buenos Aires, a convite do projeto Amores Expressos, desenvolvido pela Companhia das Letras. O resultado pode ser conferido no livro Cordilheira. A narradora, Anita von der Goltz Vianna, é uma jovem escritora brasileira que é convidada para uma feira literária, na capital argentina. A viagem caiu como uma luva. Anita vivia um momento conturbado em sua relação com Danilo. A moça queria engravidar, para a infelicidade do namorado. A autora promissora põe fim a sua relação e parte pra Buenos Aires. É aí que a história começa.
Em uma conferência sobre Descrições da Chuva, seu livro de estréia, a jovem conhece um argentino chamado Holden, pelo menos esse é o nome que nos é apresentado. Holden também é um escritor de um único e renegado livro. Os dois começam, então, a viver um caso estranho que envolve transas mirabolantes, bem como encontros literários com um curioso grupo do qual Holden faz parte. No início da trama, pouco sabemos sobre essa "sociedade secreta". Basta dizer que ela é responsável pelo desenrolar dos fatos.

Daniel Galera foi finalista do Jabuti com esse romance. Ganhou o prêmio de melhor romance de 2008, pela Fundação Nacional do Livro. Prêmio, aliás, merecido. Isso porque o romance se sustenta, não apenas pela história, regada a vinho e muito tango, na Confiteria Ideal, e passeios na Reserva Ecológica de Buenos Aires, mas também pela sua estrutura.

Depois da leitura, fica a impressão de que o ritmo da narrativa poderia ser um pouco mais lento. Tudo tão bom e acontecendo tão depressa! Mas não me cabe julgar esse aspecto, já que é parte do estilo do autor e da respiração do narrador. A Buenos Aires do livro é também personagem. Enquanto a trama se enrola e desenrola, paralelamente, a cidade vai passando, acariciando e beijando o leitor, com seus cafés e praças, costumes e mates. Mas em primeiro plano o que está em jogo é a experiência vivida por Anita, que perdeu a mãe e o pai muito cedo. A moça possuía uma rara sensibilidade não apenas para a literatura, mas também  para a maternidade – basta ler os fragmentos de seu romance, que aparecem ao longo da narrativa. Anita procura conceber um filho, logo, precisa do sêmen de um macho. Para isso, Holden, o argentino, serviu muito bem. Enquanto as moças preferem abdicar da maternidade, mergulhando na vida profissional e nas experiências amorosas fugidias e vazias, Anita procura inverter esse processo, sendo a mãe que nunca teve. No entanto, o único filho gerado é o livro Cordilheira, ou seja, sua própria história. E Anita nem ficou sabendo disso. O título é uma alusão às montanhas da Terra do Fogo, lugar em que o desfecho da história acontece. A viagem é sintoma de uma transformação pela qual passa a narradora.

Há um fato que gostaria de comentar brevemente. As transformações acontecem também em um outro plano. O livro poderia ser lido como uma reflexão sobre a possibilidade da arte, e não apenas da viagem, transformar os homens. Nem sempre essa transformação é boa. A confraria de literatos intenta fazer algo que escritores como Alfred Jarry tentaram fazer... explodir os limites entre arte e vida, o que de certa maneira os surrealista também almejaram – com sucesso ou sem, não sei dizer. É que cada membro dessa “seita” escreveu um livro e aceitou vivê-lo, chegando a adotar o nome da personagem que inventou. Cada um deveria, assim, repetir todos os passos dessa obra que engoliu as suas vidas. Mas a vida é grande de mais para caber num livro. Anita não aceitaria jamais esse jogo, apesar de ser o outro lado, que é apenas o avesso que é o mesmo, de sua personagem no livro Descrições da Chuva, a jovem Magnólia.

Anita anda, anda, anda em Buenos Aires, mas volta pra casa, para o mesmo lugar, que agora é outro, ou terá sido ela que mudou? Podemos voltar de uma viagem de Buenos Aires, ou da leitura de um livro (que também é uma viagem), mas nunca seremos os mesmos.

(Algum tempo depois de ler o livro de Galera, li o Golpe de Ar, do Fabrício Corsaletti, cuja história também se passa em Buenos Aires. Seria interessante confrontar os dois livros. Fica para outro momento)

c.moreira

Um comentário:

... disse...

Querido Caio,

Gostei das tuas letras. Acompanharam bem o meu auto-retrato. Seja bem vindo ao meu mundo. Vou invadir o teu aos poucos.

Um beijo