sábado, 16 de fevereiro de 2013

Máquina poética (profética) de produzir crítica



De um lado encontramos o anjo (poeta), fazendo da criação o sentido do seu existir, de outro o profeta (crítico), salvando a obra de criação (para usar dois termos caros a Giorgio Agamben no texto "Criação e Salvação"). Agora, no entanto, estamos diante de um profeta que também é anjo, ou de um anjo que também é profeta. Criação e salvação são atos que habitam um mesmo corpo, um corpo que poderíamos chamar aqui, a título de ilustração, de ensaio. Se o poema para Roberto Corrêa dos Santos é ensaio-crítico-teórico-experimental, o ensaio de Pucheu, lendo Roberto, é teoria-crítico-poética-experimental.
Como produzir um ensaio sobre a poesia senão com imaginação e com o tino de poeta? A escrita aqui, repetindo e diferindo, faz ao mesmo tempo poesia-crítica-cinema-teoria-ensaio-experimental. Pucheu encena e filma o seu próprio teatro. 
Alberto Pucheu, no ensaio intitulado Roberto Corrêa dos Santos: O poema contemporâneo enquanto o "ensaio teórico-crítico-experimentak", publicado em 2012, mergulha no trabalho crítico-criativo do professor e poeta/artista Roberto Corrêa dos Santos.  A alusão ao mergulho aqui não pressupõe necessariamente uma licença poética materializada na metáfora, mas uma ação de leitura/escrita que propõe um corpo a corpo com a própria crítica. Nesse sentido, talvez fosse mais pertinente pensar o livro como um mergulho não apenas no trabalho de Roberto, mas também na crítica do próprio Pucheu.
Trata-se de um livro que toma e é tomado por uma experiência poética e crítica que é uma experiência de crítico e poeta. Portanto, o mergulho não é tomado aqui como um trabalho exaustivo interessado em esgotar o seu objeto, dissecando todas as suas partes, mas como uma ação capaz de tornar indiscerníveis não apenas os limites entre crítica e poesia, mas também os limites entre os trabalhos de Roberto e Pucheu. Poeta que fala de poeta, crítico que fala de crítico, poeta-crítico que fala de poeta-crítico. Texto que se contamina e se contagia com texto: "Escrever sobre o que se lê é ir tornando seu e do outro aquilo antes apenas pressentido, mas sem força de existência, de uso ou de intercâmbio".
Ao invés de escrever "sobre" Roberto Corrêa dos Santos, Pucheu escreve "com" ou mesmo "em", fazendo da leitura uma "sobre-escrita", um ensaio de "mais-valia", fazendo do objeto com o qual escreve ou àquele  no qual escreve um corpo tatuado que lhe deve "sobrevida". De um lado o leitor é convidado a experimentar o pensamento de Roberto Corrêa dos Santos, de outros é chamado a vislumbrar a escritura do poeta-ensaísta, que como vimos não fala de fora, mas de dentro do próprio texto que lê. De um lado o leitor é chamado a visualizar os livros-objeto de Roberto, refletindo sobre os limites entre arte e pensamento, de outro é seduzido pelo crítico que, enquanto lê, escreve, presentificando em seu tecido uma concepção de crítica profética (poética) que não apenas "salva" a obra angelical de criação, mas que mantém a inapreensibilidade de seu objeto, no jogo de uma trama que busca ao mesmo tempo o gozo e o conhecimento.
André Monteiro, em um texto sobre o livro, chama a atenção para a "zona de confraternização" que se estabelece entre os textos de Pucheu e Roberto, que poderiam ser considerados anjos e profetas ao mesmo tempo, no sentido que Agamben dá à expressão:

"Quando se entra em textos de Alberto Pucheu-Roberto Corrêa dos Santos, sejam os considerados poéticos, sejam os considerados ensaísticos, sejam os falados e performados em palestras, encontros acadêmicos, encontros não acadêmicos, percebe-se, neles, uma propositada e impura “zona de confraternização”, como quer Alberto Pucheu, entre o poético e o teórico, o poético e o filosófico, o filosófico e o ficcional, o teórico e o ficcional, o ensaístico e o literário, o literário e o não literário, o literário e o plástico, o plástico e o não plástico, a palavra e a não palavra, a fala e o silêncio, o silêncio e o grito" (MONTEIRO, 2012).

Nota-se que essa "zona de confraternização" não é inerente apenas ao livro sobre Roberto, mas também em ensaios de Pucheu, como aquele interessado na obra de Antonio Cicero. Trata-se de um projeto que já é vislumbrado nos trabalhos especificamente teóricos do poeta-ensaísta, já que as próprias fronteiras entre o artístico e o teórico são por ele questionadas.
Aquilo que Pucheu detecta em Roberto Corrêa dos Santos é o que poderia ser também encontrado em seu próprio trabalho: "Uma indecidibilidade entre o ensaio e a ficção, uma inseparabilidade entre o ensaio e o poema, um desguarnecimento de fronteiras entre o ensaio, a ficção e o poema, entre o gesto e o conceito, entre conceito e a imagem e o ritmo". Dessa forma, à medida que Pucheu discute o trabalho de Roberto Corrêa dos Santos, vai tecendo, ensaiando no ensaio, suas considerações acerca da especificidade do trabalho crítico, sempre com força poética. Por isso, o elogio maior é à imaginação como combustível para a máquina de produzir crítica: "A imaginação é uma aceleradora dos processos de conhecimento, que ela antecipa. Sem a imaginação, não há crítica, comparação, discernimento". 

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